Exame Logo

Argentinos de classe alta voltam a viajar com 'dólar barato' de Milei

País deixa de ser pechincha para turistas, e jantar para dois pode passar de R$ 900

Economia: O que acontecerá com o câmbio na Argentina em 2025 ainda é uma incógnita (AFP/Getty Images)
Agência o Globo

Agência de notícias

Publicado em 22 de dezembro de 2024 às 09h29.

Nos últimos 12 meses, apesar de ter feito cortes em seu orçamento e mudado hábitos, o custo de vida do brasileiro Vinicius Camelo, que acaba de se formar em Medicina numa universidade de Buenos Aires, duplicou.

Como muitos argentinos de classe média, ele reduziu drasticamente as refeições fora de casa, só faz compra de supermercado nos dias de promoção, cancelou o plano de saúde, trocou de operadora de celular e deixou de consumir alimentos que triplicaram de preço no primeiro ano de governo do presidente Javier Milei.

Veja também

Essa sensação também domina os turistas estrangeiros que visitam o país, até o ano passado considerado um dos destinos sul-americanos mais baratos.

A Argentina voltou a ser um país caro. Sua moeda, o peso, valorizou-se em relação ao dólar após anos de forte perda de valor. Para os turistas brasileiros o efeito é ainda mais forte, já que neste ano o real já se desvalorizou cerca de 20% frente ao dólar.

De outro lado, para as classes argentinas mais altas, a vida melhorou e viagens ao exterior estão mais acessíveis, sobretudo para países limítrofes como Brasil e Chile. Neles, argentinos com bons rendimentos indexados voltaram a sentir o que economistas como Amilcar Collante, da Profit Consultores, chamam de “efeito riqueza do dólar barato”.

"Estamos novamente num ciclo de dólar barato na Argentina. No começo do governo Milei, o dólar se valorizou mais de 100%, mas depois o governo optou por conter a desvalorização do peso, e hoje temos um dólar barato", ele diz. — Esse dólar barato prejudicou os estrangeiros e favoreceu os argentinos que têm acesso à moeda americana.

Os números do turismo interno confirmam a afirmação do economista. De acordo com dados do Indec (o IBGE local), em outubro passado o número de turistas que entraram na Argentina caiu 30,3% em relação ao mesmo período de 2023.

Boicote nas redes

Já as viagens dos argentinos para o exterior aumentaram 24,7%. Cerca de 65% dos turistas que visitaram a Argentina foram cidadãos de países vizinhos, entre eles brasileiros (23%) e uruguaios (17,7%). Mas a diferença entre os que entram e os que saem é a cada mês mais expressiva: enquanto 754,9 mil turistas estrangeiros passaram pelo país, 1,1 milhão de argentinos foi para fora.

"O turismo internacional não teve inflação em dólares. Uma passagem para Miami continua custando em torno de US$ 1 mil, e para o Brasil, em baixa temporada, entre US$ 400 e US$ 500. Para quem tem dólares, ficou muito mais acessível", observa Sebastián Christiansen, da agência CDN Viajes.

Segundo ele, “a desvalorização do real foi um plus” para os argentinos, que agora podem fazer compras no Brasil como há muito tempo não podiam. O mesmo acontece na Espanha e nos EUA. Os viajantes argentinos publicam diariamente posts maravilhados sobre compras no exterior.

Vídeos de mulheres em shoppings brasileiros adquirindo roupas a preços, em muitos casos, 50% mais baratos do que custariam na Argentina, são frequentes. Na contramão, turistas de países de moeda forte protagonizam memes nas redes mostrando etiquetas de produtos que soam muito pesadas para seus bolsos. Eles fazem vídeos escandalizados com os preços da Argentina.

"A Argentina ficou cara em dólares para os estrangeiros, e países do exterior ficaram mais baratos para os argentinos. Muitos gastam dinheiro de suas poupanças, outros são profissionais que tiveram seus salários reajustados em pesos e hoje, em dólares, ganham o dobro ou mais do que ganhavam há um ano", conta o agente de viagens, referindo-se aos reajustes salariais frequentes para acompanhar a ainda alta inflação do país.

Nos comentários dos vídeos dos estrangeiros em lojas de Buenos Aires, internautas argentinos empobrecidos por anos de inflação e o arrocho promovido por Milei concordam e pedem um boicote a produtos nacionais, como roupas e calçados, em muitos casos inacessíveis para a maioria da população.

A empresária têxtil e assessora de imagem argentina Valeria Parodi passou quatro dias no Rio em novembro passado com seu namorado, Guillermo Azar, empresário do ramo da moda. Ambos ficaram impressionados com os preços do Brasil, mesmo em lojas de grifes internacionais.

"Achei tudo muito barato. Comprei um casaco de uma marca internacional que na Argentina custa o dobro, o mesmo. Em redes como a C&A, a roupa está realmente num preço absurdamente barato para o público argentino", conta Valeria, que comprou perfumes de marcas brasileiras por US$ 50 (cerca de R$ 300), um valor, segundo ela, “com o qual é impossível competir na Argentina”.

Promessa era dolarizar

Clientes uruguaias de Valeria costumavam viajar para Buenos Aires para fazer compras. Atualmente, ela diz, “nem pisam nos shoppings da cidade”.

"Hoje nós viajamos mais para o exterior e fazemos compras. Estive recentemente em Punta del Este (no litoral uruguaio), e um almoço no restaurante mais badalado da praia de José Ignácio é mais barato que uma refeição em Puerto Madero", conta Valeria.

Uma das principais promessas de campanha de Milei, em 2023, foi a dolarização da economia e, embora seu governo tenha adotado recentemente medidas que parecem caminhar nessa direção, a moeda nacional continua sendo o peso, hoje muito mais valorizado em relação à moeda americana.

Depois de uma maxidesvalorização em seu primeiro mês de mandato (em torno de 114%, na cotação oficial), no fim do ano passado, o governo Milei passou a implementar o chamado crawlin peg, que são ajustes pequenos e programados da cotação oficial do dólar, em torno de 2% ao mês — que poderia baixar para 1% nos próximos meses, segundo especulações do mercado.

Apesar da pressão de alguns setores econômicos, o presidente argentino já deixou claro que não vai promover uma desvalorização mais forte do peso.

Na visão da Casa Rosada, os custos de ter um dólar barato, como exportações mais caras lá fora, compensam os benefícios, principalmente a contenção da escalada de preços internos. Mesmo desacelerando, entre novembro de 2023 e o mesmo mês de 2024, a inflação acumulada do país atingiu 112%.

Paralelamente, foram mantidas as medidas de controle cambial, entre elas o limite de compra de US$ 200 mensais no mercado oficial — o chamado cepo.

Com a economia num incipiente processo de recuperação, ainda com uma inflação em torno de 3% ao mês, 52,9% da população abaixo da linha da pobreza, e um Banco Central que começou a recuperar sua capacidade de acumular reservas, Milei não quer dar nenhum passo em falso em matéria de política cambial.

Aposta em Trump

Primeiro, seu governo quer renegociar o acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), e para isso conta com a ajuda do presidente eleito americano, Donald Trump, que assume em janeiro.

O que acontecerá com o câmbio na Argentina em 2025 ainda é uma incógnita, mas, no turismo e em outros setores, a maioria dos argentinos aposta que o dólar seguirá barato, o que beneficia a popularidade de Milei.

"Passamos de ter o cafezinho mais barato da região ao mais caro. Os que sofrem são a classe média e os aposentados, entre outros, mas o governo assume esse custo. O que nos preocupa é a tendência, mas não vemos o governo fazendo mudanças antes das eleições legislativas de outubro", comenta Collante.

A quantidade de turistas brasileiros que circulam pela capital argentina se reduziu de forma expressiva, mas agências como a Buenos Aires Tour, criada pelo brasileiro Rickson Tavares, continuam com expectativa de melhora:

"O problema foi a desvalorização forte do real, e a valorização do peso. Antes o brasileiro sentia que as coisas eram muito baratas aqui, e eram. Mas continuamos recebendo muita gente."

Vai visitar o país vizinho? Veja como fazer com o dinheiro

Ainda que a Argentina não seja mais aquela pechincha, muitos brasileiros ainda se animam a encarar preços mais salgados para conhecer as belas cidades do país vizinho, como Buenos Aires, Córdoba, Bariloche e Mar del Plata.

Mas, na situação atual, qual a melhor forma de lidar com o dinheiro por lá?

Rickson Tavares, CEO da agência Buenos Aires Tour, recomenda levar dólares em espécie para obter câmbio mais vantajoso lá e fugir de taxas.

Outras opções são usar cartões de contas internacionais, como Wise e Nomad, ou fazer remessas pela Western Union. Neste último caso, a cotação é muito boa, afirma Tavares, mas muitas vezes é preciso encarar longas filas.

As cidades mais caras para viver no Brasil

Acompanhe tudo sobre:ArgentinaJavier Milei

Mais lidas

exame no whatsapp

Receba as noticias da Exame no seu WhatsApp

Inscreva-se

Mais de Mundo

Mais na Exame