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Análise: a França não é a 'Gália' da democracia global

Resultado das eleições coloca país em limbo político bastante desconhecido e incerto

Publicado em 8 de julho de 2024 às 12h24.

Última atualização em 8 de julho de 2024 às 13h03.

Astérix não é somente um personagem de história de quadrinhos. É quase uma lenda da história francesa. O personagem é um baixinho e de aparência inofensiva que habitava uma aldeia da Gália (território entre França, Itália e Bélgica) por volta do ano 50 antes de Cristo. Na época, o poderoso império romano já havia invadido toda a região, exceto a pequena aldeia de Astérix. Com a ajuda da poção mágica, criada pelo druida Panoramix, Astérix e seu inseparável amigo, Obélix, dotado de enormes poderes, defendem sua aldeia dos invasores.

Em 2024, o presidente Emmanuel Macron, aparentemente dotado de uma poção mágica, resolveu antecipar as eleições da Assembleia Nacional Francesa depois de uma retumbante derrota no pleito do Parlamento Europeu. Estive na França e conversei com todos os espectros políticos locais, com analistas, pesquisadores e eleitores. Ninguém entende plenamente os motivos que levaram o presidente a chamar essa disputa. Talvez nem ele. A probabilidade do seu partido, ou mesmo o país, saírem melhor desse processo eram praticamente nulas. O movimento foi comparado a passar diversas semanas em um casino com expectativa de não sair perdedor.

O resultado final, depois da votação do segundo turno, comemorado por muitos e lamentado por poucos, coloca a França em limbo político bastante desconhecido e incerto. Afinal, o partido de extrema direita, o RN, de Marine Le Pen, ficou em terceiro lugar no número de cadeiras no parlamento. A Nova Frente Popular (NFP), de partidos de esquerda, ficou em primeiro e o partido de Macron, ENS, em terceiro. Ninguém ficou perto da maioria. E uma coalizão vinda desse resultado passa longe de ser óbvia. Instabilidade pela frente é certo. Nesse sentido, vários sinais das urnas francesas dialogam com tendências globais.

Primeiro, a tendência das eleições globais não é nem de direita, nem de esquerda — e muito menos de centro. Quem mais vence atualmente são posições de oposição. Independentemente do espectro político. Nunca foi tão fácil ser oposição. A maioria dos governos é eleito com margens apertadas, e ambientes polarizados. Junta-se à polarização o fato de grande parte dos países democráticos terem restrições fiscais sérias. Ou seja, há pouco recurso para entregas relevantes. As demandas do eleitorado são desproporcionais ao que o mundo político, e orçamentos, podem oferecer.

A oposição venceu ou cresceu em diversas disputas recentes. Vejam os resultados de Argentina, Nova Zelândia, Polônia, Portugal, África do Sul e agora Reino Unido. México, Taiwan e Índia foram exceções. No entanto, tanto em Taiwan quanto Índia as oposições cresceram e, portanto, saíram maiores. No pleito francês, o voto de oposição foi o grande vencedor. O protesto oposicionista veio tanto pela opção pela extrema direita ou pela esquerda. Ganhar votos de protesto é simples, governar é outra história.

Segundo, sob tensão, e polarização, o comparecimento dos eleitores é cada vez maior. São inúmeros os pleitos, nos mais diversos cantos do planeta, em que a presença nas urnas vem superando disputas anteriores. O sentimento de medo (amplificado pelas narrativas de todos os lados na disputa) fez com que os eleitores franceses tivessem o maior comparecimento eleitoral desde 1981. A guerra de narrativas serve muito mais para aumentar a rejeição dos adversários do que por um embate de ideias. Porém, medo é um mobilizador de votos poderoso. Foi o que se viu no país sede das Olimpíadas.

Terceiro, a extrema-direita já é parte do xadrez democrático. Goste-se ou não. Não faltam exemplos do avanço desse segmento político, que claramente representa uma parcela relevante da sociedade (principalmente europeia). O Vox na Espanha, o AfD na Alemanha, a Liga do Norte na Itália, o Chega em Portugal, o PVV na Holanda e o RN na França não foram fruto de um movimento espontâneo, e sim parte de sentimentos enraizados na opinião pública.

Todavia, seguramente não são maioria em seus respectivos países. Em nenhum local, esses movimentos conseguiram maioria para governar. É verdade, porém, que o modelo parlamentarista europeu dificulta esses grupos de chegarem ao poder. Em uma eleição presidencial e com opção somente binária teriam mais chance. No colégio eleitoral americano então, essa chance aumenta muito. E para serem maioria, vivem um dilema complexo para movimentos com posições radicais: moderar para conquistar uma parcela maior do eleitorado pode significar se afastar da base mais estridente. Nos tempos de redes sociais, moderação não gera engajamento. As eleições francesas deixaram isso evidente. Por outro lado, o RN, de Le Pen, seguirá com a forte posição de oposição e antissistema. Certamente serão anabolizantes para o pleito presidencial de 2027. Se será suficiente para chegar à maioria, é muito cedo para saber.

Portanto, apesar do entusiasmo das manchetes globais sobre o resultado francês, os pilares de instabilidade apareceram firmes: narrativas de medo, descrença dos eleitores no sistema político e crescimento de posições extremas e populistas. A poção mágica da estabilidade política ficou com Astérix. Não chegou ainda para a opinião pública e para os eleitores.

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