Livro traz revelações assustadoras sobre ameaça nuclear
Daniel Ellsberg, responsável por vazar os Papéis do Pentágono, relembra sua atuação no programa de guerra nuclear dos Estados Unidos
Da Redação
Publicado em 17 de março de 2018 às 08h09.
Última atualização em 17 de março de 2018 às 10h26.
The Doomsday Machine: Confessions of a Nuclear War Planner (“A Máquina do Juízo Final: confissões de um estrategista nuclear”, numa tradução livre)
Daniel Ellsberg
Editora Bloomsbury USA
424 páginas
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Desde que Donald Trump assumiu a presidência dos Estados Unidos, em 2017, a ameaça de uma guerra nuclear voltou a assustar o mundo. O alvo de sua ira tem sido a Coreia do Norte, país que reconhecidamente desenvolveu a capacidade de fazer ataques militares com ogivas nucleares . Trump passou boa parte do ano passado dizendo bravatas e recebendo respostas igualmente desafiadoras de Kim Jong-Un, o ditador do país. A briga chegou a tal ponto que o presidente americano disse que seu “botão nuclear” é “maior” do o de seu colega norte-coreano.
Embora o pico das hostilidades tenha passado e o cenário pareça otimista – especialmente depois que o presidente americano aceitou o convite para um encontro com Kim Jong-Un –, a ameaça de um conflito assusta o mundo. E com razão. O livro The Doomsday Machine: Confessions of a Nuclear War Planner (“A Máquina do Juízo Final: confissões de um estrategista nuclear”, numa tradução livre), de Daniel Ellsberg, ex-analista militar americano, mostra que existem diversas razões para perder o sono.
No livro, Ellsberg relata sua experiência com os planos de guerra nuclear do governo americano. Formado em economia em Harvard, Ellsberg prestava serviços para a Força Aérea e dava consultoria ao governo americano como funcionário da empresa RAND (um acrônimo de Pesquisa e Desenvolvimento). Seu acesso privilegiado a documentos secretos foi a base para o vazamento conhecido como Papéis do Pentágono, episódio retratado no filme The Post: A Guerra Secreta, de Steven Spielberg.
Sua intenção, diz ele, era vazar documentos a respeito do programa de armas nucleares de seu país assim que acabasse o julgamento a respeito dos Papéis do Pentágono. Uma enchente na casa de seu irmão, o guardião do material, tornou os documentos inúteis e impediu Ellsberg de divulgar uma gama ainda mais assustadora de segredos. Para escrever The Doomsday Machine, o ex-analista militar se valeu da divulgação de relatórios e memorandos antes secretos, além de suas próprias anotações e lembranças.
As revelações do livro são tão assustadoras que não parecem reais. Em primeiro lugar, Ellsberg explica que a ficção Dr. Fantástico (1964), filme de Stanley Kubrick que retrata uma catástrofe nuclear, poderia muito bem se repetir na realidade. “A chance de que este sistema [nuclear] podia explodir ‘por engano’ ou por uma ação não autorizada em uma crise – bem como pela execução deliberada de ameaças nucleares –, levando grande parte do mundo com ele, sempre foi um risco incondicional imposto pelas superpotências sobre a população do mundo.” O ex-analista revela que existem diversas falhas na concepção e na execução dos planos para a guerra nuclear. “O sistema nuclear estratégico é mais propenso a falsos alarmes, acidentes e lançamentos não autorizados do que o público (e até os mais altos oficiais) sabiam”, afirma.
No filme de Stanley Kubrick, um general de baixa patente, Jack Ripper, provoca a tão temida guerra nuclear entre Estados Unidos e União Soviética e coloca em marcha a Máquina do Juízo Final. O tal dispositivo, conforme o que é explicado no filme, seria disparado automaticamente a partir do momento em que a União Soviética fosse atacada com armamentos nucleares. O general Ripper deu ordens de ataque a aviões B-52 que estavam sob seu comando, mesmo sem receber instruções diretas de seus supervisores ou do presidente dos Estados Unidos. “Eu achava que era a única autoridade que poderia ordenar os ataques”, diz o personagem. No entanto, o mandatário havia se esquecido do ‘plano R’, uma estratégia desenvolvida pelas forças armadas no caso de as principais autoridades da cadeia de comando terem sido mortas pelos soviéticos. Ripper, um anticomunista paranoico e obcecado por seus fluidos corpóreos, usou justamente o ‘plano R’. E era impossível voltar atrás.
Quando Trump evoca a imagem do botão nuclear, uma única ordem vinda de uma autoridade máxima que desencadeia ataques com ogivas nucleares, não está refletindo a realidade. O presidente não é o único responsável por ordenar a ação. Ellsberg explica: “Não era apenas o presidente que poderia tomar a decisão e emitir as ordens, e nem mesmo (como a maioria das pessoas provavelmente presumia) o secretário de defesa ou o Estado-Maior Conjunto no Pentágono, mas comandantes a mil quilômetros de Washington, que achavam que suas forças estavam prestes a ser destruídas”. De acordo com o delator, oficiais de baixa patente possuíam autoridade suficiente para desencadear uma série de ordens que, embora não gerassem um ataque generalizado dos Estados Unidos, culminariam nisso, uma vez que um único bombardeio faria as forças armadas do país executarem o plano de guerra total contra seu maior adversário, a União Soviética.
Outra revelação de Ellsberg diz respeito ao número de vítimas de um possível ataque americano ao bloco comunista – que também incluía bombardeios à China: “O número total de mortes de nossos próprios ataques, nas estimativas fornecidas pelo Estado-Maior Conjunto, era de 600 milhões de mortos, quase inteiramente civis. A maior parte infligida em um dia ou dois, o resto ao longo de seis meses”. Essa era uma conta conservadora, no entanto. O resultado desse tipo de guerra seria a morte de uma parte significativa da humanidade. Uma estimativa mais realista certamente teria, segundo ele, ficaria em torno de um bilhão de mortos ou mais, ou um terço da população terrestre, naquela época de três bilhões.
Pior que isso, os estrategistas militares não levavam em conta os efeitos que as bombas nucleares teriam no meio ambiente. Quando faziam seus cálculos, levavam em conta apenas as mortes causadas pelas explosões e a radiação nas regiões adjacentes. Ataques nucleares, no entanto, são muito mais catastróficos. As ogivas podem gerar, explica, “tempestades de fogo”, que levariam fumaça às partes superiores da atmosfera. O vento levaria milhões de toneladas de fumaça e fuligem à atmosfera, que cercariam o globo, formando um cobertor e bloqueando a maior parte da luz do Sol por uma década ou mais.
Esse impacto na atmosfera, diz Ellsberg, reduziria a luz solar e baixaria temperaturas em todo o mundo até um ponto que eliminaria todas as colheitas e mataria de fome quase todos os humanos e animais que dependem da vegetação para alimentação. A devastação se espalharia para além do Velho Continente, da Rússia e da Ásia, atingindo também o Hemisfério Sul, ainda que a região não fosse o alvo dos ataques.
As autoridades americanas tinham consciência do sistema devastador que guardam na manga por mais de meio século. Diversos presidentes tinham acesso aos dados assustadores. Mas, mesmo assim, escolhiam manter e alimentar esse sistema de guerra. “(O presidente) Dwight Eisenhower optou por aceitar esses riscos, para impô-los à humanidade e a todas as outras formas de vida. John Kennedy – e mais tarde, Lyndon Johnson e Richard Nixon, até onde sei em primeira mão – fizeram o mesmo. Há muitas evidências de que catastróficas ‘grandes opções de ataque’ estavam entre as escolhas oferecidas aos presidentes Jimmy Carter, Ronald Reagan e George H. W. Bush, ou seja, até o fim da Guerra Fria”, escreve Ellsberg.
A piada cínica do filme Stanley Kubrick, então, existiu de fato. E continua a existir. “Aqui está o que sabemos agora: os Estados Unidos e a Rússia têm uma máquina do juízo final”. Essas duas máquinas poderiam “provocar a destruição global da civilização e de quase toda a vida humana na Terra”. O risco, portanto, é real. Embora não haja mais a polarização dos Anos da Guerra fria, as miras do sistema nuclear de ataque dos países detentores desse arsenal continuam funcionando.
A única saída, avalia Ellsberg, é desmontar completamente todas as armas nucleares dos Estados Unidos, na esperança de que a outra grande potência com capacidade de exterminar a civilização, a Rússia, faça o mesmo.
A pergunta mais importante, na opinião do autor, é a seguinte: A existência de tal capacidade nuclear atende aos interesses nacionais ou ao interesse internacional a um grau que justifique seu perigo óbvio para a vida humana? A dominação geopolítica do mundo é mais importante do que a sobrevivência da própria civilização? Embora a resposta não esteja escrita de maneira direta, o livro de Ellsberg mostra que a escolha já foi feita há muitas décadas.