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A fronteira México-EUA

Alvaro Bodas Ao assumir a presidência dos Estados Unidos — e contrariando os que achavam pura bravata muitas de suas atitudes — Donald Trump manteve o discurso misógino, racista e polêmico e partiu para a ação, agora como mandatário da nação mais poderosa do planeta. Entre as medidas mais polêmicas estão a deportação de imigrantes em […]

FRONTEIRA COM O MÉXICO: atual muro já tem cerca de 1.130 quilômetros de extensão / David McNew/ Getty Images
DR

Da Redação

Publicado em 25 de março de 2017 às 07h25.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h06.

Alvaro Bodas

Ao assumir a presidência dos Estados Unidos — e contrariando os que achavam pura bravata muitas de suas atitudes — Donald Trump manteve o discurso misógino, racista e polêmico e partiu para a ação, agora como mandatário da nação mais poderosa do planeta. Entre as medidas mais polêmicas estão a deportação de imigrantes em situação ilegal, a proibição da entrada de refugiados de seis países de maioria muçulmana, a saída do Tratado Transpacífico, o namoro com a Rússia e a cruzada contra o “Obamacare” (derrotada na sexta-feira 24). Mas a mais controversa de todas é a construção de um “impenetrável, alto, poderoso e bonito muro” ( sic ) na fronteira entre os EUA e o México, para impedir que o país vizinho continue “mandando traficantes e estupradores para os EUA” ( sic ).

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Na verdade, esse muro já existe em boa parte da fronteira, seja de concreto, em forma de cerca ou pontos sob forte vigilância. Porém, o que Trump propõe é ampliar essa barreira e fazer com que o México pague a conta, estimada por ele mesmo em 10 bilhões de dólares, numa obra que levaria quatro anos para ser concluída. Um estudo feito pelo jornal Washington Post orçou o paredão em 25 bilhões de dólares. O presidente mexicano Enrique Peña Neto, apesar do esforço para manter a boa relação com o vizinho, já afirmou várias vezes que o seu país não gastará um centavo com a obra, cujo projeto tem que ser aprovado pelo Senado americano.

Na opinião do jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva, pesquisador associado do Woodrow Wilson Center (Washington, DC), mais do que o custo, o problema principal seria a desapropriação de terras para a construção do muro. “A maior parte são propriedades particulares ou terras indígenas. Fazer desapropriação nos EUA é complicado, leva tempo e custa muito caro, e isso pode até parar na justiça. E os índios têm direitos constitucionais garantidos, seria um processo difícil e bem demorado.”

Fronteira movimentada

A extensão total da fronteira entre os dois países é de 3.141 km, e estima-se que seja a mais cruzada por pessoas do mundo, com cerca de um milhão de travessias legais diariamente, em ambas as direções. O total de imigrantes ilegais vivendo nos EUA em 2014, de acordo com o Pew Research Center, era de 11,1 milhões, ou seja, 3,5% da população. Entre eles, os mexicanos são o grupo mais numeroso e, conforme dados do PRC, 5,8 milhões deles viviam ilegalmente no país em 2014, o que representa metade de todos os ilegais.

Mas não são só imigrantes que cruzam a fronteira. Estima-se que os ganhos anuais do crime organizado com o comércio de drogas e armas entre os dois países seja de 65 bilhões de dólares. Além de construir túneis por baixo da fronteira, o tráfico atravessa a maior parte das drogas escondidas em veículos ou usando pessoas que cruzam os postos de passagem oficiais. Segundo Paulo Pereira, professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC-SP, “os cartéis mexicanos são hoje as organizações criminosas mais poderosas do continente e controlam grande parte da distribuição de drogas na região, principalmente a entrada nos EUA, que é o maior consumidor mundial de cocaína”.

Na opinião de Geraldo Zahran, também professor de Relações Internacionais da PUC-SP e coordenador do Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU), brechas no sistema de imigração causam problemas como tráfico de drogas e armas, mas também trazem benefícios à economia dos EUA, como a mão de obra barata e impostos gerados. “Os benefícios são muito maiores que os problemas, mas o discurso de ódio, discriminação e xenofobia prevalece. Além disso, tráfico de armas e drogas se combate com operações de inteligência e ações sobre a demanda no mercado consumidor, que é os EUA. Não com um muro.”

Um tijolo de cada vez

A construção de um muro para tentar barrar a travessia de armas, drogas e pessoas começou em 1991, no governo de George Bush, o pai, e foi intensificada em 1994, durante o mandato de Bill Clinton, que implantou a chamada “Operação Guardião”. Além de ampliar a barreira, essa iniciativa aumentou o valor das multas para estrangeiros ilegais e deu mais recursos para a Patrulha de Fronteira. Hoje, a maior parte do muro, que não é uma extensão contínua, tem cerca de 1.130 km e ocupa um terço da extensão total da fronteira, nos estados da Califórnia, Arizona e Novo México. Há poucos trechos no Texas, onde o Rio Grande demarca a divisa e é uma espécie de barreira natural.

Onde não há bloqueios físicos, no entanto, há câmeras de segurança, sensores, alarmes e a atuante Patrulha de Fronteira, que dobrou de tamanho nos últimos anos. Em alguns pontos, é apenas uma parede simples e não muito alta. Em outras partes, é formada por dois muros com um espaço entre eles, por onde circulam veículos de fiscalização, com torres de observação e soldados atentos a possíveis invasores. Há lugares, porém, onde há apenas uma cerca ou barreiras naturais, como desertos, rios e montanhas.

Depois da independência dos EUA, em 1776, a população americana deu um salto gigantesco, indo de 4 milhões de habitantes, em 1801, para 32 milhões, em 1860. Essa explosão de gente aconteceu graças à chegada de imigrantes vindos do Reino Unido, Alemanha, Itália, Espanha, Suécia, Polônia, Canadá e Rússia, no maior movimento migratório internacional da história. De 1850 a 2015, o número de imigrantes vivendo nos EUA foi de 2,2 milhões para 42,4 milhões. Os imigrantes sempre representaram entre 10 e 15% da população do país (hoje o índice é 13%). De acordo com a ONU, 19,8% de todos os imigrantes internacionais em 2013 viviam nos EUA.

Até o final do século 18, o território originalmente ocupado pelas treze colônias americanas era uma faixa de cerca de um terço do território atual, na porção leste do país. No século 19, a chamada doutrina do “Destino Manifesto”, amplamente divulgada pelo governo e pela imprensa, pregava que os descendentes dos colonizadores ingleses, com seus ideais e ética cristã protestante, deveriam se expandir pela América do Norte porque o povo americano havia sido eleito por Deus para ocupar e “civilizar” seu continente, graças a suas virtudes e instituições. A ideologia, juntamente com a pressão populacional e migratória, ajudou a embasar e justificar a conquista de território. Havia também um grande interesse pelas regiões do Texas e da Califórnia, pela forte produção agrícola e pelo acesso ao Oceano Pacífico, respectivamente.

A expansão para o oeste se deu por meio de negociações e compra de terras, anexação de grandes áreas indígenas e a Guerra do México. Já em 1803 os EUA compraram dos franceses a Louisiana, um imenso território na região central do país onde foram formados mais tarde 13 novos estados, por 15 milhões de dólares. Logo depois, em 1819, a Espanha vendeu a Flórida por 5 milhões de dólares. O Estado do Oregon, no Noroeste, foi cedido pela Inglaterra em 1846 e o Alasca foi comprado da Rússia por 7 milhões de dólares em 1867.

A briga pelo Texas

Em 1820 os norte-americanos iniciaram a colonização de parte do México com aval do próprio governo mexicano, que permitiu que latifundiários americanos comprassem terras no Texas (então território mexicano) exigindo em troca apenas a adoção do catolicismo nas áreas ocupadas. No início da década de 1830, o Texas já tinha cerca de 30.000 colonos americanos. Foi então que o governo mexicano interrompeu a imigração americana para a região, azedando as relações. Em 1834 os colonos americanos, que queriam a incorporação do Texas pelos EUA, se rebelaram e deram início à Revolução do Texas. O conflito foi vencido pelo exército texano em 1836 e foi criado um estado independente, a República do Texas.

A Revolução do Texas e a iminente anexação do estado motivaram a Guerra do México (1846-1848), durante a qual os EUA invadiram o Norte do México, o Novo México e a Califórnia, num conflito que deixou cerca de 38.000 soldados mortos, dois terços deles mexicanos. O México perdeu a guerra e também as regiões do Texas, Novo México, Califórnia, Utah, Arizona, Nevada e parte do Colorado, Oklahoma e Wyoming. Com a assinatura do Tratado de Guadalupe Hidalgo, que em 1848 pôs fim ao conflito, ficou estabelecido que os EUA pagariam ao México 15 milhões de dólares pelos territórios anexados. Em apenas três anos, metade do México virou território americano. “O México não teve escolha. Tropas americanas ocuparam o país por semanas até o acordo de paz ser assinado. A cessão do território mexicano para os EUA por 15 milhões de dólares foi uma ficção. Essa ‘compra’ serve apenas à narrativa dos EUA de não ser uma potência conquistadora ou imperialista”, explica Geraldo Zahran.

Apesar de o acordo garantir a cidadania americana para os cidadãos mexicanos das regiões anexadas, muitos não quiseram assumir a nova nacionalidade, pois continuavam se sentindo mexicanos e mantiveram sua cultura. Desde então, já se sentiam discriminados e tratados diferentemente dos colonos anglo-saxões. Até hoje há uma identificação forte com o México nos estados do Sul, já que boa parte dos habitantes, apesar de americanos, são filhos, netos ou bisnetos de mexicanos, falam espanhol ou têm parentes no México.

De bons amigos a “bad hombres”

A nova política de imigração de Trump aperta o cerco e facilita a deportação de imigrantes ilegais. Mas, nem sempre foi assim. Até o início do século 20, a fronteira entre os dois países não impedia a movimentação de mercadorias nem de pessoas. Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1917), inclusive, era interessante para os EUA o ingresso da barata mão de obra mexicana para movimentar a indústria americana, que lucrava produzindo e abastecendo o mercado europeu. Depois de um período de fortes crises econômicas nas décadas de 1920 e 1930, a partir de 1942 milhões de mexicanos voltaram a suprir a escassa mão de obra americana em um período de forte crescimento dos EUA, em função da Segunda Guerra Mundial. Novamente o país abastecia o mercado europeu, destruído com mais uma guerra.

Em 1965 os EUA começam a deter mais rigidamente o fluxo migratório, reforçando o controle na fronteira e deportando quem não tivesse documentos em dia. E, desde 1994, com a já citada Operação Guardião, os EUA iniciam a construção do muro na divisa entre Tijuana e San Diego, que depois se estendeu por outros pontos da fronteira. De acordo com Gilberto Rodrigues, professor de Relações Internacionais da UFABC e pesquisador visitante na American University, em Washington, DC, até o início dos anos 90 o controle na fronteira seca não era tão rígido, pois ainda não havia a ameaça terrorista. Os mexicanos que iam para os EUA, muitos ilegais, acabavam fazendo os trabalhos braçais que os americanos não queriam fazer, eram uma mão de obra barata e conveniente para os dois lados. “Só que isso mudou radicalmente depois dos atentados de 11/09/2001, quando os EUA passam a ver a questão migratória como uma ameaça latente. Essa data foi um marco, e a partir do governo Bush a fiscalização foi reforçada.”

Muro não é solução

Na opinião dos especialistas ouvidos por EXAME Hoje, Donald Trump se elegeu com um discurso chauvinista e escolheu os imigrantes, especialmente os mexicanos, como bode expiatório. “Houve realmente um empobrecimento da classe média baixa americana, que perdeu competitividade e espaço no mercado de trabalho, mas devido principalmente à automação e às novas tecnologias, e não aos imigrantes”, opina Carlos Eduardo. Para Paulo Pereira, o muro teria pouco efeito prático e o consumo de drogas nos EUA não diminuiria. “O narcotráfico vai se adaptar a esse novo cenário, porque a demanda vai continuar existindo. O que pode ocorrer é o estímulo à corrupção na região da fronteira e um aumento temporário no preço das drogas.”

Na opinião de Gilberto Rodrigues, a ampliação do muro pode criar um sério conflito diplomático, favorecer o nacionalismo no México e ainda prejudicar o trabalho de cooperação no combate ao narcotráfico. “Levantar um muro seria uma agressão, e a deportação de imigrantes pode separar famílias. Isso envolve a justiça, a assistência social, a custódia de crianças, enfim, questões complexas com o México e outros países da América Latina.” Carlos Eduardo completa: “O melhor muro seria um México muito bem economicamente, o que em boa parte depende dos EUA. Isso sim reduziria muito o número de mexicanos querendo entrar no país.”

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