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Gustavo Franco: Excessos eleitorais

Temos um ciclo coordenado de alta de juros simultâneo à eleição, a ser enfrentado pelo primeiro presidente do BCB com mandato, no contexto de excessos fiscais e de excessos retóricos

Gustavo Franco: os enredos econômicos ficaram todos muito mais difíceis no mês de junho com a elevação da temperatura eleitoral (Germano Lüders/Exame)

Karla Mamona

Publicado em 6 de julho de 2022 às 11h14.

Última atualização em 6 de julho de 2022 às 11h27.

Os enredos econômicos ficaram todos muito mais difíceis no mês de junho com a elevação da temperatura eleitoral. Indiferente à corrida eleitoral brasileira, e aos andamentos no mundo cripto, o Federal Reserve fez o que dele se esperava, inclusive com alguma sobra, para que não pairassem dúvidas sobre a missão que tem a cumprir. O Fed elevou a taxa de juros em 75 bps, a maior alteração em muitos anos. É a providência lógica diante da maior inflação em quarenta anos, 8,6% no acumulado de 12 meses até maio.

Desde julho de 1994 – ou seja, nos últimos 28 anos em que o Brasil teve taxas de inflação civilizadas, comparáveis, portanto, com as que se observam em países normais –, não houve outra ocasião em que a inflação americana (8,6%) tenha ficado tão próxima da nossa (11,7% pelo IPCA) no acumulado de 12 meses.

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A inflação brasileira não está particularmente baixa considerando os anos posteriores a 1994. Ao contrário. Considerados os novos padrões com que se acostumou o país, está perigosamente alta, novamente acima da meta.

Em 2022, a meta fixada pelo CMN (Conselho Monetário Nacional) é de 3,5%, com intervalo de tolerância de 1,5%, ou seja, a “banda” de resultados aceitáveis para a inflação de 2022 tem como limite 2% e 5%. Para o acumulado até maio, o IPCA já registra 4,78% de variação. A meta está praticamente perdida, e isso será consumado no IPCA de junho prestes a sair.

Em 2021, a meta se perdeu em agosto, quando o IPCA variou 0,87%, elevando o acumulado no ano para 5,67% enquanto a meta era de 3,75% com 1,5% de intervalo. Portanto, com o limite superior em 5,25%, já superado neste momento.

Agora em 2022, a meta se perderá “matematicamente” (como se fala no futebol) em junho. O presidente do Banco Central do Brasil, Roberto Campos Neto, terá de escrever outra “carta aberta” ao ministro da Economia com explicações sobre o “descumprimento” e “providências para assegurar o retorno da inflação aos limites estabelecidos” (Decreto 3.088/99, Art. 4, §único). Seria a segunda carta aberta, em dois anos consecutivos de descumprimento da meta, e a sexta vez que a referência foi ultrapassada pala variação anual do IPCA desde a criação da sistemática de metas para a inflação em 1999: outros cinco episódios de “descumprimentos a maior” ocorreram em 2001, 2002, 2003, 2016 e 2021 (1).

Entretanto, não há a percepção de que o BCB não tenha feito a sua parte. Não houve desestabilização de expectativas, ou “desancoragem”, como se fala no sofisticado idioma com que o BCB se comunica com o mercado. Considerando a temperatura dos sentimentos eleitorais, é um enorme progresso que o BCB tenha conseguido manter-se fiel à sua missão. Se será bem sucedido em fazer a inflação ceder, como se espera, ainda vamos verificar nos próximos meses. Na verdade, é preciso não esquecer que os próximos dois anos depois da eleição terão o mesmo Roberto Campos Neto como presidente do BCB.

Por ora, todavia, resta observar que tudo é muito novo e perigoso, seja pelo desafio, a volta da inflação no contexto de uma eleição extremamente polarizada, seja “teste”, ora em pleno andamento, da ideia de “BCB independente”, ou pelo menos “um pouco mais independente”.

Não tem sido uma jornada muito fácil para o BCB.

No mesmo mês de junho de 2022, quando o BCB e o FED elevaram as taxas de juros, o país foi sacudido por dois escândalos afetando personagens do primeiro escalão do governo, o ex-ministro da Educação, Milton Ribeiro, e o agora ex-presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães. Em ambos os casos, os incidentes ainda não se esgotaram em seus desdobramentos.

É nesse ambiente conturbado que acabou ampliada, ou talvez descontrolada, a PEC dos (impostos dos) combustíveis, cujo propósito inicial era o de empreender alguma “resposta” ao choque inflacionário nos preços de derivados do petróleo. A PEC foi inicialmente concebida para endereçar o problema do impacto inflacionário do aumento do preço dos combustíveis, tendo em vista a dificuldade em se contornar a regra de paridade de preços praticada pela Petrobras. O enredo é conhecido, pois diversas vezes o presidente manifestou sua contrariedade com a regra de paridade, inclusive com a demissão do presidente da Petrobras em duas ocasiões.

A ideia de “imposto regulatório” sobre combustíveis, destinado a se mover de forma “anticíclica” não é nova, e a experiência da CIDE não era um bom antecedente. Também não foi boa a experiência de ressarcimento de receita tributária perdida no âmbito da chamada Lei Kandir. Mas o governo achou por bem tentar novamente, em uma nova arquitetura pela qual a União reembolsaria os estados por perdas em reduções nos impostos estaduais sobre combustíveis, até certos limites de tempo e de valores.

Era uma alternativa complexa e diferente à que era defendida por opiniões técnicas de várias matizes cujo foco residia em programas de subsídio ou transferência direta aos mais atingidos pelos aumentos nos combustíveis. No entanto, o relator da PEC e líder do Governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), fez alternações importantes na redação original.

A versão afinal, votada com sucesso no último dia do mês de junho, acoplava ao mecanismo original dispositivos que a imprensa descreveu como um “pacote de bondades” com valor estimado superior a R$ 40 bilhões, compreendendo aumentos no Auxílio Brasil, no vale gás e novos programas para caminhoneiros e taxistas.

No plano conceitual, o desconforto com a medida decorre tanto da banalização da ideia de “emergência”, ou de “calamidade”, quanto da prática de se fazer políticas econômicas através de Emendas Constitucionais. Notese que não há que se falar em inconstitucionalidades ou ilegalidades, em se tratando de medidas estabelecidas por PECs. O problema é que deixa de haver qualquer limite: uma maioria parlamentar pode impor sua vontadeinclusive contra as leis que estabelecem os ditos pesos e contrapesos da democracia, como a Lei Eleitoral e a de Responsabilidade Fiscal.

O fato é que a manobra governamental teve sucesso. É provável que tenha impacto eleitoral, mas, com tudo isso, a medida contou com o voto de oposição: quem seria capaz de votar contra um “pacote de bondades”? O relatório do senador Fernando Bezerra Coelho teve um único voto contrário em plenário, o do senador José Serra.

É verdade que já havia a disposição de andar com a PEC dos impostos sobre combustíveis, que já atropelava limitações fiscais e da lei eleitoral, de modo que pareceu apenas um pequeno passo para o lado o de acrescentar “bondades” à proposta do governo. Ao fim das contas, é mais estímulo fiscal no ano eleitoral, o que dificilmente haverá de surpreender os observadores mais experimentes, e certamente vai reforçar uma tendência de recuperação da economia que foi muito comentada ao longo do mês face aos números para o mercado de trabalho (desemprego abaixo de 10% e vagas criadas conforme o CAGED).

Em resumo, temos um ciclo coordenado de alta de juros simultâneo à eleição, a ser enfrentado pelo primeiro presidente do BCB com mandato, no contexto de excessos fiscais e de excessos retóricos que são próprios de uma eleição polarizada. O segundo semestre promete.

1.Em 2017 o IPCA cresceu 2,95% situando-se ligeiramente abaixo do limite inferior do intervalo de tolerância de 1,5% em torno da meta da 4,5% ao ano. Uma carta aberta foi escrita também para este
descumprimento “por baixo”.

*Gustavo Franco é sócio-fundador da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do Banco Central do Brasil. Este artigo faz parte da Carta Estratégias de junho relatório mensal distribuído pela Rio Bravo a seus clientes e reproduzido com exclusividade pela EXAME Invest.

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