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Na novela do dividendo extraordinário da Petrobras, quem ganha – e perde – com a reserva de capital?

A retenção do lucro excedente voltou a colocar em debate os interesses do acionista controlador frente aos minoritários

Petrobras: quem ganhou e deixou de ganhar com os dividendos extraordinários colocados em reserva (SOPA Images/Getty Images)
Janize Colaço

Repórter de Invest

Publicado em 16 de março de 2024 às 23h00.

Última atualização em 3 de abril de 2024 às 14h51.

A vida às vezes gosta de imitar a arte. “Não imaginam o prazer que é estar de volta” foi a frase mais famosa da protagonista da novela O Outro Lado do Paraíso, mas que poderia muito bem ter sido dita por Jean Paul Prates, presidente da Petrobras (PETR4). Isso porque, embora o sentimento de satisfação nem tenha feito parte da sua fala, um retorno ao que outrora a estatal costumava ser foi anunciado por ele, em teleconferência com investidores, depois da divulgação dos resultados do quarto trimestre. No entanto, o contexto da declaração não foi no melhor momento da companhia: por decisão do conselho, o excedente de R$ 43,9 bilhões dos lucros foi destinado à reserva de capital ao invés de se tornarem dividendos extraordinários – o que levou à queda de 10% das ações ordinárias e preferenciais junto a uma perda de R$ 55 bilhões em valor de mercado somente naquele dia.

Mesmo que R$ 14,2 bilhões em proventos obrigatórios para o período tenham sido aprovados, a quebra de expectativa dos investidores custou mais caro do que o montante que vai para a reserva. No entanto, pistas de que isso poderia acontecer já estavam sendo dadas. Prates havia adiantado, em entrevista à Bloomberg News, que a Petrobras adotaria uma postura “mais cautelosa” em relação aos dividendos, tendo em vista a guinada na direção da transição energética que a companhia busca. “Os acionistas vão entender”, disse ele na ocasião. Mas nem todos ficaram de acordo.

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“Tô certo ou tô errado?”

O que diz o estatuto da Petrobras e a Lei das SAs

A expectativa do mercado era do anúncio de dividendos robustos. Junto ao pagamento referente ao último trimestre do ano passado, analistas previam que por volta de R$ 20 bilhões poderiam ser pagos aos acionistas além do mínimo obrigatório. O BTG Pactual (do mesmo grupo controlador da EXAME), a exemplo disso, escreveu que acreditava nesta tese, tendo em vista a “abordagem pragmática” do governo. “Uma vez que as distribuições das empresas públicas podem reforçar as contas fiscais do país.”

Não foi isso o que aconteceu.

Prates foi questionado por analistas sobre qual seria o destino do montante que vai para a reserva de capital, e ele foi muito claro sobre o que diz o parágrafo primeiro do inciso II do artigo 56 do estatuto da Petrobras: “pagamento de dividendos, juros sobre o capital próprio, ou outra forma de remuneração aos acionistas prevista em lei”. Porém a finalidade da reserva vai além, podendo ser usada para antecipações, recompras de ações autorizadas por lei, absorção de prejuízos e, de maneira remanescente, à incorporação ao capital social da companhia. Neste caso, conforme direciona o artigo 199 da Lei das Sociedades por Ações (6404/76), isso apenas pode acontecer se o montante colocado em reserva ultrapassar o capital social da companhia – que, na Petrobras, corresponde a cerca de R$ 205 bilhões.

Controlador x minoritários

Mas nem sempre foi assim, ao menos no que se refere ao estatuto. A criação da reserva de capital foi proposta em outubro e aprovada no mês seguinte pelo conselho. Na ocasião, também houve a exclusão do parágrafo segundo do artigo 21 do regimento da companhia, permitindo indicações de pessoas políticas como membros da administração. As mudanças fizeram o alerta dos investidores acender, sobretudo com o temor de que a governança corporativa da Petrobras pudesse ser abalada. Ao mesmo tempo, apesar do susto, o movimento não veio exatamente como uma surpresa. Era sabido que a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva para a presidência da República mudaria muita coisa que seus antecessores promoveram na estatal.

Se o capítulo da saída e retorno do Partido dos Trabalhadores (PT) ao comando do Executivo fizesse parte de uma novela, a narrativa poderia se assemelhar ao de Roque Santeiro. A Petrobras seria como o protagonista interpretado por José Wilker, visto como uma figura mítica responsável por gerar a riqueza de Asa Branca e sua população. No entanto, quem ficaria na posição do antagonista Sinhozinho Malta, depende do ponto de vista. Afinal, seja por parte dos investidores, quanto da ala política, cada um enxerga como se o outro quisesse se aproveitar da lenda para lucrar. Esse viés também se aplica ao tópico dos dividendos. “Tô certo ou tô errado?”, diria o personagem feito por Lima Duarte.

A nova política de remuneração mínima anual é de US$ 4 bilhões para exercícios em que o preço médio do Brent for superior a US$ 40 por barril. Outro caminho é pela distribuição de 45% do fluxo de caixa livre (valor que sobra do caixa gerado com a operação depois de descontados os investimentos) quando a dívida bruta for igual ou inferior a US$ 65 bilhões. Porém o especialista em mercado de capitais e sócio da GT Capital, Dierson Richetti, aponta que essa regra vale para os proventos obrigatórios. “No próprio documento que explica a política de dividendos, a Petrobras não menciona quando ela pode pagar os extraordinários. A única coisa que é citada é que, conforme for o resultado apresentado, pagamentos extraordinários poderão ser feitos se for mantida a sustentabilidade financeira da companhia.” Sem parâmetros que estabeleçam quando isso pode acontecer, a decisão de distribuir ou não fica a cargo do conselho. Foi o que ocorreu na primeira semana de março. A justificativa era de que a estatal manteria o dinheiro na reserva, a fim de garantir pagamentos futuros aos acionistas – que a qualquer momento podem ser partilhados – e também como um lastro para investimentos. “Para bom entendedor do mercado, é óbvio que houve interferência neste pagamento”, diz Richetti.

Por outro lado, a decisão de reter o excedente do lucro não foi ilegal sob o ponto de vista jurídico, sobretudo porque nem mesmo a lei (seja das SAs ou das Estatais) entra no detalhe dos dividendos extraordinários. No campo do Direito, uma companhia de sociedade de economia mista, como é o caso da Petrobras, atua na esfera da administração pública indireta. Isso significa que, apesar de ter autonomia e personalidade jurídica própria, ela ainda é um instrumento de ação do Estado para promover o interesse da coletividade. Julia Mota, advogada especialista em direito empresarial com experiência no setor de petróleo e gás do Murayama, Affonso Ferreira e Mota Advogados, destaca que existem duas linhas de pensamentos conflitantes entre os acionistas da petrolífera. “Uma é extremamente liberal, de que a Petrobras tem que investir nas atividades que sejam mais lucrativas, gerando retornos tanto aos minoritários, quanto à União para ajudar nas contas públicas. A outra é a visão do atual governo, em que a companhia é um ‘indutor’ econômico e das potencialidades da indústria brasileira”, diz. Este segundo direcionamento está no Plano Estratégico (24-28+), incluindo também maiores esforços na transição energética – que vão demandar investimentos por parte da estatal.

"É tudo culpa da Rita!"

Quem ganhou e deixou de ganhar com os dividendos extraordinários colocados em reserva

Não importa de qual lado se esteja, quando algo negativo acontece, a tendência é apontar o outro como culpado. Em Avenida Brasil, a vilã interpretada por Adriana Esteves tinha sempre um nome na ponta da língua quando algo abalava os seus planos: Rita. Inclusive, a própria mocinha fugiu do que se é esperado e cometeu algumas maldades a fim de concretizar a sua vingança. E como nem toda novela é apenas sobre o bem contra o mal, na história dos dividendos da Petrobras, quem são os vilões e os mocinhos também dependem do ponto de vista. Segundo contou o presidente da companhia, em teleconferência com analistas, o antagonismo deu o tom no conselho administrativo durante o debate sobre o destino dos R$ 43,9 bilhões.

De um lado, todos os seis nomes indicados pela União votaram para que o montante fosse direcionado à reserva de capital. Do outro, em unanimidade os quatro acionistas privados defenderam a distribuição de dividendos extraordinários. A representante dos funcionários da petrolífera foi favorável à retenção. Ele se absteve de votar. Novamente, o mal-estar entre o mercado e o governo foi instaurado. Mesmo assim, Prates alertou que a decisão não é definitiva e nem há tempo obrigatório para o excedente do lucro ficar retido. “O conselho pode deliberar pela distribuição dos dividendos a qualquer momento. A novela continua”, disse. Mas era tarde demais e as ações ordinárias e preferenciais caíram 10,37% e 10,57%, respectivamente, naquela sexta-feira. E um culpado já era amplamente apontado: Lula.

Houve, ainda, quem apontasse controvérsia visto que o debate da meta fiscal constantemente é pauta do noticiário econômico. O Ministério da Fazenda, inclusive, fará a indicação de seu secretário-executivo adjunto, Rafael Dubeux, para o conselho. Mas aparentemente o próprio chefe da pasta não estava esperando pelos dividendos extraordinários na arrecadação. Rumores dão conta de que Fernando Haddad estaria de acordo com a distribuição dos proventos em linha com o que tem sido praticado pela petroleira. Além disso, nos cálculos da equipe econômica, a arrecadação com dividendos de estatais neste ano é de um ganho de R$ 41,4 bilhões. E essa projeção leva em conta apenas a distribuição do mínimo obrigatório das companhias, incluindo a Petrobras. Junto a isso, como Prates argumentou na call, há outras formas pelas quais a companhia contribui para as contas públicas: pagamentos de tributos, royalties, salários e fornecedores, distribuição de dividendos e seus impactos em nível local, nacional e global. Embora a discussão sobre a arrecadação da União tenha um direcionamento para o futuro, de acordo com o relatório fiscal da petrolífera, apenas no ano passado ela recolheu R$ 240,2 bilhões aos cofres públicos (o que inclui União, Estados e Municípios). De 2018 a 2022, a estatal diz que foi mais de R$ 1 trilhão.

PETR3 x PETR4

Com os dividendos extraordinários retidos na reserva de capital da Petrobras, o governo adiou abocanhar uma fatia de aproximadamente R$ 12 bilhões. Isso porque, apesar de acionista controlador, a União, junto ao BNDES, responde por 36,61% do capital da companhia. Pesa ainda o fato de a sua participação ser maior nas ações que dão direito ao voto no conselho, as chamadas ordinárias (PETR3), em 50,26%; nas que têm preferência no recebimento de proventos (PETR4), a presença cai para 18,46%. Aliás, os investidores com maiores participações nessa classe de ativo, que prioriza a remuneração, são os não-brasileiros (54,92%), seguidos pelos brasileiros (24,48%). Nas ações ON, eles não são a maioria: estrangeiros respondem por 41,94% e locais, por 7,8%. E essa é a configuração acionária justamente porque o ponto da tese de investimento na Petrobras são os seus dividendos, explica o head de research da Terra Investimentos, Regis Chinchila. “Considerando que é uma empresa madura e de forte geração de caixa.”

Entretanto, este também é um capítulo relativamente recente na história da estatal, que nem sempre foi lucrativa para os investidores. Quem não se lembra dos prejuízos contabilizados há alguns anos, embalados pelos escândalos de corrupção da Lava Jato, não devia estar no Brasil entre 2014 e 2018. Só que as coisas mudaram com o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Em 2016, Pedro Parente foi escolhido como novo comandante da estatal e não demorou muito para que a política de Preço de Paridade de Importação (PPI) fosse implementada – considerando a cotação internacional do produto, taxas portuárias e os custos logísticos para os combustíveis. Ela foi criticada (e abolida) pela atual gestão por refletir os custos da volatilidade do petróleo no bolso da população e garantir o que apontaram como “vantagem” aos concorrentes. Porém havia quem defendesse que a medida garantiria às petroleiras privadas um certo incentivo para equilibrar a competição no mercado brasileiro, além de que o lucro da Petrobras tenderia a ser maior. E mais mudanças de postura da companhia foram promovidas pelos presidentes seguintes da estatal, com destaque para os feitos de Roberto Castello Branco, indicado em 2019 pelo então ministro da Economia, Paulo Guedes, e que estava à frente da companhia quando o Plano Estratégico anterior ao que temos hoje foi aprovado. No direcionamento, desinvestimentos e vendas de ativos estavam previstos. Tratou-se de uma continuidade na guinada do acionista controlador para uma linha de estratégia mais liberal, como acima Julia exemplificou, que ia de encontro ao interesse dos acionistas privados. A Petrobras se tornou a maior pagadora de dividendos do mundo no segundo trimestre de 2022. Para quem defendia uma atuação com mais cuidado à função social, houve um culpado: Jair Messias Bolsonaro – embora Michel Temer também tenha a sua participação, mesmo que por um período mais curto.

Do ponto de vista operacional, a Petrobras tem vivido um dos seus melhores momentos. São recordes de produção seguidos por novos recordes. Os lucros também têm atingido dígitos inéditos de 2021 para cá, o que dá sustentabilidade para dividendos robustos aos acionistas vistos nos últimos trimestres. Mas esta é a visão para o curto prazo, segundo o diretor técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo e Gás (Ineep), Mahatma dos Santos. Ele alerta que os lucros de hoje são frutos dos investimentos feitos a partir de 2006, quando o que ele chama de “mina de ouro” foi descoberta e demandava recursos para viabilizar a produção de óleo e gás. Dezoito anos depois, o pré-sal responde por quase 80% da produção brasileira de petróleo. “Naquela época, a Petrobras bateu recorde de investimentos e, para isso, buscou captação no mercado. Não é à toa que hoje estão pedindo dividendos [ extraordinários ], pois em outro momento foram garantidos esses recursos, e gerou endividamento e alavancagem à companhia”, diz. Por isso, ele vê como um ponto conflitante com a função social da empresa, bem como com uma visão de longo prazo para uma petrolífera, os desinvestimentos promovidos. “Na indústria de petróleo, os investimentos que são feitos hoje serão materializados entre cinco e sete anos. Então, os investimentos que deixaram de ser realizados desde 2017, até o último ano, vão começar a ser sentidos no desempenho operacional da Petrobras em breve.”

E no bate-cabeça entre os controladores públicos e investidores privados, quem teve a maior perda foi a bolsa de valores brasileira, que tem ficado no campo negativo nos últimos pregões. Dados da Elos Ayta Consultoria mostram que o valor de mercado de todas as empresas listadas na B3, desconsiderando Petrobras e Vale (VALE3), obtiveram uma valorização de R$ 27,1 bilhões entre 7 e 15 de março. Só que a retenção dos dividendos extraordinários fizeram a petrolífera perder R$ 56,5 bilhões, jogando contra o Ibovespa. Junto dela, a principal mineradora do país, que há menos de 30 anos é privatizada, também acumulou uma queda de R$ 29 bilhões no período – tanto por conta da desvalorização do minério de ferro, quanto por sua sucessão, que foi marcada por rumores de ingerência política e a possibilidade do ex-ministro da Fazenda, Guido Mantega, ser cotado como CEO.

Vale a pena investir de novo?

Mesmo com a fuga de investidores que a companhia enfrenta, ainda há quem recomende a compra das ações da Petrobras, como é o caso do BTG Pactual – mas essa orientação não é unânime no mercado. Não se baseando apenas nos dividendos extraordinários, os analistas acreditam que devem prevalecer os mecanismos de governança corporativa junto a uma forte geração de caixa em 2024. A criação de uma nova reserva de dividendos para investimentos, que circulou extraoficialmente no mercado, foi avaliada como “redundante” pelos analistas, visto que “a reserva de lucros pode ser utilizada para garantir que a Petrobras possa cumprir os seus planos de investimentos ao longo dos anos”, e já foi negada tanto pela companhia, via fato relevante, quanto por seu presidente, no X (ex-Twitter). Ainda que a reserva de capital tenha como destino somente a remuneração aos seus acionistas, especialistas avaliam que o montante seria suficiente para a recompra de 100% da Vibra (VBBR3) e 50% da refinaria de Mataripe, mas Prates nega a intenção. “A tendência é acharem que vamos comprar a BR, refinarias e os tanques de novo. Não é um ' Vale a Pena Ver de Novo ', não. É algo para se olhar o futuro, ainda mais porque ficamos quase dez anos entre vender ativos e não atuarmos em energias renováveis e novos combustíveis. Temos que correr com isso e de forma responsável.”

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