Bitcoin: a Oferta Inicial de Moedas está impulsionando startups em ritmo impressionante (Benoit Tessier/Reuters)
Da Redação
Publicado em 18 de julho de 2017 às 22h20.
Última atualização em 4 de outubro de 2017 às 16h04.
Há uma série de razões para a abertura de capital de startups (o IPO, ou oferta inicial de ações) estar em baixa nos Estados Unidos, incluindo o fato de que os empreendedores têm hoje à disposição várias outras opções para se capitalizar.
A proliferação de investidores (e a vontade de apostar no próximo Google ou Facebook em seu nascedouro) favoreceu o fenômeno dos unicórnios – startups de capital fechado cuja avaliação, medida por investimentos privados, ultrapassa o 1 bilhão de dólares.
A principal vantagem de contar com dinheiro de uns poucos investidores em vez de recorrer ao mercado de ações é que desta forma os empreendedores mantêm mais controle sobre suas empresas. Têm se tornado comuns os contratos com cláusulas que lhes permitem reter ações de classe superior, com direito a vários votos na convenção (numa lógica semelhante à da distinção entre ações ordinárias e preferenciais, na legislação brasileira, estas últimas sem direito a voto).
Mesmo esses arranjos parecem pouco, ante uma nova onda entre as empresas digitais. Trata-se do ICO, sigla em inglês para oferta inicial de moedas. Feitas as contas na semana passada, o mês de junho teve pela primeira vez mais dinheiro fluindo para startups por ICOs do que por rodadas iniciais de investimento (o “capital anjo” e o “capital semente”).
Para entender o que é um ICO, é preciso lembrar primeiro o que são as moedas virtuais, ou cripto-moedas. Trata-se, basicamente, de um código. Quem resolve esse código passa a ter direito a uma determinada quantia de moedas, que podem ser usadas para comprar bens ou serviços (nos lugares que já as aceitam) ou ser trocadas por dinheiro tradicional (nos vários mercados existentes).
A primeira dessas moedas foi o Bitcoin, que existe acoplada a uma ideia revolucionária chamada Blockchain (ou cadeia de blocos). Por não ter necessidade de um poder central verificador dos negócios realizados em sua rede (a validade é dada quando se decifra o código), o blockchain é visto como uma enorme promessa de facilitação de contratos.
Já há investimentos bilionários – principalmente de bancos e empresas de tecnologia – para desenvolver plataformas de blockchain confiáveis.
Os primeiros ICOs surgiram justamente entre as empresas que tentam desenvolver sistemas de blockchain. O mais famoso deles foi feito em 2014, pela Ethereum, uma plataforma de blockchain com sua própria moeda. A empresa arrecadou 18 milhões de dólares, um investimento muito bem-sucedido: os contratos que usam a Ethereum se disseminaram e as moedas têm hoje um valor de mercado de 35 bilhões de dólares. A prática se alastrou, primeiro devagar, mas agora com rapidez.
Recentemente, companhias que não têm muito a ver com o mundo do blockchain começaram a também lançar suas moedas virtuais. De acordo com a empresa de pesquisas Smith + Crown, dezenas de empresas já realizaram ICOs este ano, e há dezenas com planos de fazê-lo.
A Smith + Crown somou os resultados de 30 ICOs que divulgaram suas arrecadões, e chegou ao número de 540 milhões de dólares. Um consultor canadense, William Mougayar, chegou a um resultado parecido, disse a Bloomberg: 560 milhões de dólares. É mais do que a média mensal de investimentos anjo nos Estados Unidos.
Segundo o Wall Street Journal, o mercado de ICOs ultrapassou a marca de 1 bilhão de dólares com as recentes ofertas de cripto-moedas de EOS (uma nova plataforma de blockchain), Bancor (uma plataforma para gestão de moedas virtuais) e Tezos (uma outra plataforma de blockchain, concorrente da Ethereum).
Essa nova modalidade de captar investimentos para viabilizar o crescimento da companhia parece uma mistura entre crowdfunding, investimento anjo, lançamento de títulos ou ações e… um esquema de pirâmide.
Tipicamente, os empreendedores dispostos a fazer um ICO estruturam uma companhia e anunciam a disposição de vender sua própria moeda. Para convencer investidores, publicam um relatório explicando o que sua empresa fará, como vai atingir seus objetivos e de quanto capital precisam para que seus planos deem certo.
Em seguida, eles lançam sua moeda por meio de um serviço especializado (exemplos: CoinList, Waves). É comum oferecer vantagens aos primeiros compradores, para criar um efeito de pressa e fazer o negócio decolar.
Por que se dar a todo esse trabalho? A lógica por trás dos ICOs é de combater o poder do mundo financeiro. Em vez de oferecer parte da sua empresa para capitalistas, o empreendedor convoca as pessoas que se beneficiariam de sua companhia para semear o negócio. Cria-se então uma rede de cooperadores, uma espécie de comunidade em que os clientes e fornecedores têm participação na empresa.
Deste modo, pelo menos em tese, cada participante do futuro negócio tem interesse em fazê-lo crescer.
Parece um crowdfunding, no sentido da diversidade de fontes que aportam o capital. Mas no crowdfunding em geral os parentes e amigos são os investidores. No ICO, a ideia é que os usuários ou membros da futura rede de negócios invistam.
Também parece um lançamento de títulos ou ações, mas não está sendo vendida uma parte da empresa, nem há uma promissória de resgatar os papéis. Trata-se da criação de um papel que, se tudo der certo, vai criar o seu próprio mercado e aí sim ganhar valor, principalmente dentro da rede de usuários do serviço da empresa. Nesse sentido, o ICO seria aparentado à ideia de uma cooperativa.
O problema é que ele também parece um movimento de pirâmide. “Quando uma companhia é capaz de levantar dezenas de milhões de dólares apenas com um relatório, você sabe que há algo muito errado”, disse Hyun Lee, um dos diretores da startup de gerenciamento de filas Qminder, à revista Inc.
Muitos analistas, como Jeff Garzik, da consultoria Bloq, consideram que os ICOs vão mudar a cara dos investimentos em empresas. Mas não antes de um processo de purgação. “Noventa e nove porcento desses ICOs será lixo”, ele disse à revista Fortune.
É difícil dizer se o fenômeno já atingiu o pico. O que ele tem demonstrado é uma força impressionante de atração de capital. O ICO da Status.im, um aplicativo de navegação e mensagens, levantou 100 milhões de dólares em menos de três horas. A Brave, uma startup do ex-CEO da Mozilla, Brendan Eich, levantou 35 milhões de dólares em menos de 30 segundos. (Sim, você leu direito: 30 segundos).
Mas, como se dizia antigamente, fácil vem, fácil vai. Se há uma qualidade em que as moedas virtuais são praticamente imbatíveis é a volatilidade. Em apenas quatro dias no início do mês, o ICO da Tezos arrecadou 220 milhões de dólares (o total chegou a 232 milhões, depois). Mas quando o valor da Bitcoin caiu, nas últimas duas semanas, os 220 milhões viraram 142 milhões de dólares.
O mercado de moedas virtuais como um todo é o reino da volatilidade. Só no último mês, o valor total delas chegou a 115 bilhões de dólares e caiu para 86 bilhões.
Em boa parte, a queda nesse mercado se deveu às ICOs. A percepção de que o fenômeno tomou ares de uma bolha fez com que vários investidores realizassem lucros, trocando suas moedas virtuais por moedas tradicionais – e fazendo as cotações caírem.
Mas esse pessoal é tão inventivo que já existe até uma startup para reduzir a volatilidade das moedas virtuais. É a Safe, uma moeda “antibolha” criada por um ex-sócio do banco de investimentos Goldman Sachs, que baseia seu preço na raiz quadrada da dificuldade de mineração dos bitcoins (acredite, não vale a pena nem tentar entender).
A volatilidade não é a única razão para que o mercado de moedas virtuais seja tão especulativo. Um motivo no mínimo tão forte quanto ela é a falta de regulação.
Claro, esta é uma das principais vantagens dos ICOs: sem burocracia, transações diretas, possibilidade de criar sua própria moeda nos seus termos. Só que com isso vem o risco.
O maior risco é o governo. Desde o império de Gengis Khan que fabricar dinheiro é uma prerrogativa do Estado. Mesmo títulos, um mecanismo válido para as empresas transformarem promessas em dinheiro, são sujeitos a uma vigilância do Estado. E as moedas virtuais, se encaradas como uma espécie de título, estariam desrespeitando as regras das comissões de valores mobiliários.
Onde há risco legal, obviamente há também advogados.
Eles já estão ajudando a elaborar os termos das ofertas de moedas. Em vários ICOs, os investidores não têm direitos garantidos e as moedas não têm propósito, função ou características. Elas não são investimento, nem moeda, nem título, nem commodity, nem contrato de câmbio por outra moeda – funcionam apenas no ambiente do ecossistema em que foram criadas, ou em ecossistemas de outras moedas virtuais.
Esse linguajar, no entanto, não evita que um grande número de especuladores trate as moedas virtuais como títulos ou moedas ou commodities e as troque por moedas tradicionais. Por isso, também não pode garantir que o governo não vá, em algum momento, intervir nesse mercado.
De muitas maneiras, os ICOs estão intimamente ligados ao nascente mundo do Blockchain, que promete, no dizer de investidores bilionários como Tim Draper, “um mar de mudanças tão grande quanto a própria internet”.
Como afirma o jornalista Robert Hackett, que cobre esses mercados para a Fortune, “uma porção de incentivadores das moedas virtuais compara os dias de hoje ao início da internet: vai haver muito dinheiro, e vai haver cidades-fantasmas”.