Inteligência Artificial

Entre a eficiência e a desigualdade: o avanço da IA no ambiente de trabalho

Cultura de trabalho no Brasil, muitas vezes baseada em relações pessoais e uma abordagem mais humana, pode ser impactada pela automação

Miguel Fernandes
Miguel Fernandes

Chief Artificial Intelligence Officer da Exame

Publicado em 3 de outubro de 2023 às 14h25.

Última atualização em 3 de outubro de 2023 às 14h38.

A adoção da inteligência artificial no ambiente de trabalho brasileiro traz uma série de questões complexas. O país, marcado por desigualdades sociais e econômicas, enfrenta o desafio de integrar essa tecnologia de forma justa e eficaz.

A IA pode otimizar processos e aumentar a eficiência. Pode também aprofundar disparidades ao tornar obsoletas certas funções, muitas vezes ocupadas por trabalhadores menos qualificados ou por grupos já marginalizados.

Imagem gerada por @inventormiguel usando MidJourney com o prompt: Estátua do Cristo Redentor acordando e transformando-se em um robô gigante futurista (MidJourney / Edição @inventormiguel/Reprodução)

A cultura de trabalho no Brasil, muitas vezes baseada em relações pessoais e uma abordagem mais humana, pode ser impactada pela automação, que ameaça substituir a interação humana em diversos setores.

A inteligência artificial está revolucionando o Brasil, trazendo ao mesmo tempo oportunidades e desafios.

Como ela impacta as desigualdades sociais, a cultura do "jeitinho", o empreendedorismo e as nossas complexas leis trabalhistas?

As empresas brasileiras e o nosso sistema educacional estão preparados para esta transformação?

Como a automação massiva das tarefas operacionais pode ameaçar o trabalho informal e as manifestações culturais brasileiras? 

É hora de debater de maneira crítica e construtiva esse presente que já bate à nossa porta.

Semana passada debati esses dilemas com o Cesar Taurion. Foi uma conversa reveladora. Ele é sócio da consultoria Redcore, veterano especialista em IA, com mais de 30 anos de carreira. São décadas de experiência prática com tecnologias exponenciais, tendo ocupado posições de liderança em inovação de grandes empresas.

Tivemos a feliz coincidência de nos encontrar por conta do Rio Preto Tech Summit, que vai acontecer nos dias 3 e 4 de outubro em São José do Rio Preto, no complexo Swift. Vai ser a segunda edição do evento que debaterá grandes assuntos voltados para a tecnologia.

O avanço imparável da IA

Taurion contextualizou o estado atual da IA e as razões para sua aceleração nos últimos anos. Na visão dele, vivemos em uma sociedade cada vez mais dependente de tecnologia. As grandes corporações têm interesse em expandir seu poder e alcance por meio do digital.

Isso explica os maciços investimentos em IA e aprendizado de máquina. As empresas querem usar essas tecnologias para maximizar eficiência, reduzir custos e ampliar os lucros. É um movimento impulsionado pelo capital, não necessariamente para beneficiar a sociedade.

Em paralelo, nos últimos dez anos houve saltos técnicos significativos em áreas como redes neurais profundas e modelos de linguagem que tornaram a IA muito mais capaz. Assim, ela está saindo dos bastidores e invadindo todos os domínios.

“Não vamos deter esse avanço. Mas podemos influenciar a direção. O futuro não é determinado", diz Taurion. Cabe a nós moldá-lo para o bem comum.

O jeitinho brasileiro e a IA

No Brasil, o impacto da IA no trabalho é provável que seja particularmente complexo devido a uma série de fatores. Primeiro, existe uma grande desigualdade social e econômica, com grande parte da população trabalhando em empregos de baixa qualificação e mal remunerados. A automação desses empregos pela IA pode aprofundar ainda mais essas desigualdades, à medida que as oportunidades de trabalho para essas pessoas diminuem.

Uma das primeiras áreas a sofrer impacto será o trabalho de escritório e funções administrativas repetitivas. Atividades que não exigem grande capacidade cognitiva tendem a ser automatizadas rapidamente por meio de IA.

Isso trará ganhos de produtividade e redução de custos para as corporações. Por outro lado, esses funcionários menos qualificados, muitas vezes oriundos das classes C e D, podem ficar sem opções de recolocação no mercado.

"Vejo que esse grupo de pessoas, a classe média baixa, vai acabar tendo um impacto muito grande. Será difícil a ascensão para a classe média e eles vão ficar sem muita coisa", alerta Taurion.

Imagem gerada por @inventormiguel usando Leonardo.AI com o prompt: Um robô caminhando na praia de Copacabana no Rio de Janeiro vestindo uma camiseta amarela de futebol brasileiro. Banhistas olham surpresos à medida que ele passa. (Leonardo.AI / Edição @inventormiguel/Reprodução)

Além disso, a cultura de trabalho no Brasil é muitas vezes baseada em relações pessoais e uma abordagem mais humana do trabalho. A introdução da IA e da automação pode desumanizar essas relações, criando um ambiente de trabalho mais impessoal e mecanizado. Isso pode ser particularmente problemático em um país como o Brasil, onde a interação pessoal e o "jeitinho brasileiro" são componentes importantes da cultura de trabalho.

Menos oportunidades para aprendizado

Outro efeito colateral, na visão de Taurion, será a redução de oportunidades para aprendizado em algumas carreiras. Áreas como direito, contabilidade e auditoria dependem muito do aprendizado prático em escritórios.

Com a automatização de funções administrativas, haverá menos espaço para estagiários e profissionais iniciantes absorverem o "know-how" experiente de profissionais seniores. Isso pode levar a uma escassez de profissionais qualificados no futuro.

Fuga de cérebros: risco para startups brasileiras

Taurion também pontua que a ascensão da IA poderá intensificar um problema já existente: a fuga de cérebros, os talentos do Brasil sendo drenados para trabalhar em empresas estrangeiras ou mesmo prestando serviços remotos do Brasil para outros países.

Isso porque as big techs têm condições de oferecer salários em dólares e vistos que permitem experiências de trabalho no exterior. Já as startups brasileiras enfrentam dificuldades para reter esses profissionais de alto nível.

"Temos uma grande dificuldade de nos inserirmos hoje no mercado. As grandes empresas e startups dos países ricos conseguem impor sua regulação e atrair profissionais pelo salário em dólar", destaca.

Assim, os talentos brasileiros produzem para empresas de fora do Brasil, em vez de empreender ou construir startups locais de alto impacto.

Repensando leis trabalhistas para a era da IA

Questionei Taurion também sobre como a IA pode afetar a discussão sobre reforma trabalhista no Brasil. Ele avalia que o debate sobre regulamentação e adaptação de leis ao contexto atual está apenas começando.

Enquanto se discute regulação, pouco se fala sobre os desafios concretos para o mercado de trabalho. Será necessário repensar os modelos de contratação, permitindo mais flexibilidade sem cair na precarização excessiva.

Taurion cita o exemplo dos motoristas do Uber, que desejam flexibilidade de horários mas também segurança e benefícios como previdência. Outro ponto é investir pesado em capacitação para os profissionais em risco de obsolescência.

"Não vejo programas muito grandes e não vejo ninguém discutindo isso em profundidade", criticou. "Precisamos resolver esse problema. Está muito claro para mim que teremos um problema."

Preparando as futuras gerações

Esse cenário desafiador exigirá mudanças na educação e no treinamento de novos talentos. Taurion questiona: “o que ensinar para os jovens de hoje, nativos digitais, para que prosperem nesse cenário em 15 ou 20 anos”

Com a educação básica e técnica precária no país, e a universidade inacessível para muitos, que rumo profissional seguirão nossos jovens?

Precisamos estimulá-los a adquirir, desde já, conhecimentos técnicos e soft skills – criatividade, trabalho em equipe, comunicação. Assim, estarão aptos a lidar com as profissões do futuro e menos suscetíveis à automação.

Abraçando a tecnologia com responsabilidade

A despeito desses desafios, Taurion se mostra otimista de que a tecnologia pode trazer benefícios se usada com responsabilidade. Cabe às empresas e à sociedade definir um caminho ético para esse futuro.

"A IA vai permitir, pela flexibilidade, tornar os processos mais inteligentes, não apenas automatizá-los", acredita. "Podemos usar essas ferramentas para que o trabalho das pessoas seja mais criativo e humano."

Em outras palavras, devemos explorar o potencial da IA para elevar o ser humano, não para desumanizar o trabalho.

Moldando o futuro com humanidade

Ao fim de nossa conversa, concluo que os dilemas são complexos, com muitas nuances. Legislação e regulação são peças do quebra-cabeça, mas não vamos resolver tudo na esfera política.

Cabe ao setor privado, academia, terceiro setor e a todos nós cidadãos participar ativamente do debate público e apresentar soluções que coloquem as pessoas no centro.

Vivemos um momento decisivo para o Brasil. Temos talento e criatividade de sobra para moldar o futuro da IA e do trabalho com humanidade. Que esse seja o legado da nossa geração de líderes e empreendedores.

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