Herança de criptomoedas é complexa e não está garantida por lei; saiba como se proteger
Ausência de leis específicas e dificuldade de acesso às carteiras privadas podem dificultar herança de criptomoedas, mas é possível se proteger
Gabriel Rubinsteinn
Publicado em 10 de agosto de 2022 às 12h07.
O recebimento de herança é um dos temas mais complexos do Código Civil brasileiro. Grau de parentesco, número de filhos, existência de cônjuges e regime de comunhão de bens são apenas alguns dos diversos fatores que podem influenciar na divisão do patrimônio de uma pessoa falecida. Recentemente, um novo "ingrediente" foi adicionado à lista de complexidades para o recebimento de herança: os ativos digitais, como as criptomoedas.
"Estamos no começo do caminho nessa questão de herança digital", disse o advogado Rafael Sette, em entrevista à EXAME, citando que essa categoria engloba outro tipo de ativos além das criptomoedas, como as milhas aéreas e pontos de programas de recompensas. "Até pouco tempo, as milhares eram o tema mais importante, mas agora isso começa a mudar", completou seu sócio no escritório Madrona Advogados, Rodolfo Tamanaha.
Com relação ao investimento em criptomoedas, existem diversos fatores que podem dificultar a transmissão de herança, alguns relativamente simples de resolver, outros nem tanto. "Atualmente, existem muito mais dúvidas do que respostas. Mas, mesmo sem uma lei específica, se tem valor econômico, os herdeiros têm direito. E cada tipo de bens digitais têm dificuldades diferentes", explicou Rafael.
O primeiro e mais óbvio fator complicado em relação às criptos está ligado à natureza descentralizada da tecnologia blockchain. No caso de um investidor que faz a própria custódia, por exemplo com uma carteira cripto como a MetaMask, mesmo que os bens sejam declarados e incluídos em testamento, não é possível acessá-los sem a chave privada que dá acesso aos ativos.
Diferentemente de uma conta bancária, que pode ser movimentada pela instituição financeira, ou de quaisquer ativos de investimento do mercado tradicional, que também podem ser movimentados pelos herdeiros, uma carteira cripto não-custodial como a MetaMask só pode ser acessada pelo seu proprietário e quem mais tiver suas chaves privadas.
Então, investidores que fazem esse tipo de custódia e não querem os seus ativos perdidos numa carteira para sempre após a sua morte, devem garantir que terceiros tenham acesso às chaves privadas no seu falecimento. "É preciso tomar essa precaução", explicou Rafael Sette. "Compartilhar as chaves com alguém confiável, como filhos ou cônjuge, ou então fazer um testamento cerrado", completou, em referência ao testamento registrado em cartório e que só pode ser aberto após a morte do autor.
A ausência de regulamentação sobre as criptomoedas também é outro problema, já que a lei brasileira impede o acesso à herança de bens deixados fora do país. Isso significa que, se a pessoa falecida utilizava uma corretora cripto internacional, que não é registrada no Brasil, dificilmente os seus herdeiros conseguirão acessar esse patrimônio, exceto se entrarem com processo no país onde a empresa está sediada.
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Uma outra situação, menos provável mas ainda assim possível, diz respeito às corretoras cripto registradas no Brasil, mas que fazem a custódia dos ativos com empresa estrangeira terceirizada. Neste caso, a empresa pode alegar que os bens são mantidos no exterior e, assim, tentar impedir os herdeiros de acessá-los.
Ao mesmo tempo, como os ativos estão na rede blockchain, e não em um servidor ou um território específico, é preciso aguardar o entendimento jurídico sobre o assunto - a chamada jurisprudência, que pode servir como guia para decisões judiciais futuras até que uma lei determine as regras definitivas sobre o tema.
"Não tem na lei, hoje, uma resposta para herança de um ativo que não tem local definido. Mas o Judiciário tem uma tendência protetiva, e outras situações mostram que possivelmente irá entender que, neste caso, o ativo que está na rede e é oferecido por uma empresa registrada no Brasil, está no Brasil também", disse Tamanaha.
Outro ponto relevante diz respeito ao processo de divisão de bens. Quando o patrimônio de uma pessoa falecida é levantado, deve ser considerado o valor dos ativos no dia do falecimento, inclusive para fins de pagamento de impostos. Este processo, entretanto, pode demorar meses para ser finalizado e, com a volatilidade do mercado cripto, há o risco de, no momento da transmissão dos bens para os herdeiros, o valor ser totalmente diferente daquele inicialmente levantado.
"A dinamicidade do mercado cripto é problemática quando se fala em herança. Por isso, a melhor forma de se precaver é passar o acesso aos ativos para alguem de confiança, que possa assumir a gestão imediatamente após o falecimento, inclusive liquidar a posição rapidamente, se for o caso, informando os valores no inventário, mas evitando assim os riscos da volatilidade", sugeriu Rafael.
Por último, existe ainda o risco de desconhecimento do investimento pelos herdeiros. Apesar da Instrução Normativa da Receita Federal que obriga a declaração de posse e movimentação de ativos digitais, tanto por parte dos investidores quanto das corretoras, a ausência de controle sobre operações P2P, de pessoa para pessoa, e também do monitoramento de carteiras mantidas por cidadãos brasileiros, faz com que muita gente ainda não declare seus criptoativos. Em caso de morte, os herdeiros poderão nunca ficar sabendo da sua existência.
Para o advogado, o planejamento é a única solução possível: "Não faz parte da cultura do brasileiro pensar na própria morte, dizem que atrai, que dá azar. Mas quando você tem um patrimônio relevante, é preciso pensar nisso. Quem faz a própria custódia precisa tomar garantias. Pode eleger alguém e compartilhar as chaves, ou então fazer o testamento cerrado. Mas é preciso se precaver de alguma forma, ou o investimento ficará perdido".
Herança de criptomoedas exige mudanças e adaptações
A ausência de leis, de jurisprudência e de respostas definitivas sobre a herança de criptomoedas é reflexo da incipiência do setor. O mercado cripto, criado há pouco mais de 12 anos com o surgimento do bitcoin, só se proliferou de forma considerável nos últimos quatro ou cinco anos, tempo relativamente curto para que todos os problemas fossem mapeados e as soluções desenvolvidas.
Agora, com uma indústria mais robusta, milhões de investidores e trilhões de dólares movimentados todos os anos, as mudanças e adaptações começarão a acontecer. "No caso do Direito, tem o compasso mais lento, porque costuma olhar para o passado, e não para o futuro. Mas está acontecendo, e conforme os casos surgirem, surgirão as jurisprudências. Ao mesmo tempo, legislações e regulamentações também têm caminhado", disse Rafael.
Os advogados também ressaltaram que o Projeto de Lei 4401/21, em tramitação avançada no Congresso, não ajudará a resolver a questão: "Esse PL é muito mais dirigido à criação de regras e procedimentos para quem faz a gestão dos criptoativos, como as corretoras ou exchanges, do que para as criptomoedas em si. Mas, à medida que o setor amadurece, esses dispositivos vão sendo criados", afirmou Rodolfo.
"O ideal é que haja disciplina dos bens econômicos. Alterar o Código Civil, especificar abertamente [as criptomoedas]. Até lá, a jurisprudência vai delinear e, depois, virão novas leis, eventualmente esse reforma do Código Civil. Mas, enquanto existe um cenário de insegurança, é importante ter planejamento e organização familiar", finalizou Rafael Sette.
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