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Real digital está se tornando referência mundial, diz coordenador do projeto no BC

Para Fabio Araújo, coordenador do projeto de desenvolvimento do real digital, o Brasil está se tornando modelo internacional

coordenador do projeto do Real Digital no BC, Fabio Araujo (Banco Central do Brasil/Exame)

coordenador do projeto do Real Digital no BC, Fabio Araujo (Banco Central do Brasil/Exame)

Para Fabio Araujo, coordenador do projeto de desenvolvimento do real digital no Banco Central, o Brasil está se tornando referência mundial em moedas digitais de bancos centrais (CBDC, na sigla em inglês).

Em entrevista exclusiva à EXAME, Araújo explicou como o Brasil está entre os países mais avançados do mundo no desenvolvimento de uma CBDC, e explicou que o real digital vai começar a funcionar a partir do começo de 2023.

"Somos uma referência internacional nas moedas digitais dos bancos centrais assim como já somos com o Pix", salientou Araujo.

O coordenador do projeto do Real Digital explicou que o Brasil está engajado no Banco de Compensações Internacionais para discutir sobre o assunto e "os contatos com os outros países mostraram que a experiência do Brasil é algo meio único".

"O Brasil trouxe em nível internacional a questão da programabilidade das CBDC, e agora está se difundindo internacionalmente", disse o economista

Araujo explicou que as moedas digitais dos bancos centrais garantem uma maior estabilidade das stablecoin, e evitam dessa forma crises sistêmica.

Confira os melhores trechos da entrevista com Fabio Araujo

Como está sendo a implementação da tecnologia do real digital?

Estamos na primeira fase de testes onde chamamos os participantes do mercado financeiro para explicar a ideia de construir uma plataforma de programabilidade para meios de pagamento usando alguns tipos de protocolos que definimos, como protocolos de finanças decentralizadas, protocolos de pagamento contra entrega, protocolos de pagamento contra pagamento, aplicações para internet das coisas, entre outras.

Todas essas aplicações têm a programabilidade com elemento comum. E nessa fase de testes pedimos para o mercado “o que vocês gostariam de fazer?” Recebemos 47 propostas de 43 empresas diferentes, com o perfil bem diversificado, como bancos, operadores de cartão de crédito ou empresas de tecnologia. Escolhemos nove projetos. E agora estamos fazendo simulações de transações.

Essa fase vai acabar no começo do próximo ano, e na sequência, provavelmente no segundo trimestre, começaremos a fase de piloto, com operações reais mas com valores limitados, com participantes limitados, e com cidades que poderão ser escolhidas para esses testes, como por exemplo ocorreu na China.

De certa forma, o real digital já existe e é amplamente utilizado através do Pix. Qual seria a maior mudança com o real digital?

Uma moeda digital do Banco Central, ela tem uma característica específica que difere das moedas digitais que a gente tem acesso atualmente, ou seja, elas são passivos dos bancos centrais. A moeda digital que você usa hoje no Pix é um passivo ou do seu banco, que tem o depósito lá, ou da instituição de pagamento (IP), que também tem um depósito.

Se considerarmos que as instituições de pagamento devem ter obrigatoriamente uma reserva de 100% em dinheiro ou em ativos muito líquidos por cada depósito, já hoje o Pix é praticamente uma moeda digital de Banco Central. Algo que a literatura internacional e o Fundo Monetário Internacional (FMI) chamam de "moeda digital do Banco Central sintética". Isso porque ela tem todas as características básicas de uma moeda digital do Banco Central, mas não é um passivo direto do Banco Central.

Agora, no âmbito da programabilidade, existe uma diferença considerável, pois a programabilidade existente atualmente dentro do ambiente Pix não é tão flexível quanto a programabilidade de um ambiente de Tecnologia de Contabilidade Distribuída (DLT), utilizado para operar com contratos intelligentes (smart contracts). E todos os projetos que o Banco Central recebeu ou são diretamente desenvolvidos em DLT, ou são compatíveis com os sistemas de DLT.

Por isso, a tecnologia de programabilidade baseada em smart contracts é uma diferença fundamental do Pix com o real digital.

Qual é o objetivo do Banco Central do Brasil com essa tecnologia?

O nosso objetivo é usar o real digital para criar uma plataforma programável para liquidações no Brasil. Isso vai interligar os serviços financeiros tradicionais aos serviços financeiros de Web 3.0 que estão aparecendo. Agora, para outros países, o foco é pagamento instantâneo, como é o caso do Pix, então essa questão da programabilidade não é tão importante.

E no resto do mundo, como está esse desenvolvimento tecnológico?

No panorama internacional temos dois países que estão em estágio piloto já há algum tempo: a Suécia e a China. Temos também países pequenos no Caribe que construíram CBDC com foco em pagamento instantâneo. Mas China e Suécia parecem ser os mais avançados na discussão e na experimentação do CBDC. A União Europeia tem avançado rapidamente, e também com um foco em pagamento instantâneo. Estão fazendo testes mas o horizonte é superior a cinco anos para ter um euro digital. O mesmo podemos dizer do Canadá.

Nos EUA o ritmo é bem diferente. Eles estão mais focados na criação de solução de pagamentos instantâneos e ainda estão discutindo o que poderia ser feito com o dólar digital e com relação aos arranjos de pagamentos locais.

A China tem feito arranjos de pagamentos locais no Oriente. Mais ou menos como por aqui temos no Mercosul arranjos de pagamentos locais que esperamos poderiam ser atualizados com as novas tecnologias. Isso significaria poder usar moedas digitais do banco central para aumentar a eficiência do arranjo de pagamentos locais.

A China está avançando nesse ponto para tentar estender o seu sistema de pagamento local para outros países da Ásia e da África com os quais mantém fortes relacionamentos comerciais. Para Pequim seria muito mais conveniente realizar toda a liquidação das transações comerciais com uma moeda própria, do mesmo jeito que fazemos dentro do Mercosul.

O primeiro parceiro comercial do Brasil é a China. Os chineses vieram falar com o Brasil sobre isso? Existe algum tipo de contrato ou acordo para uma moeda digital de banco central comum?

Não temos nenhum acordo com a China nesse sentido. Já tivemos alguns acordos de transferência de reservas cambiais assinados em momentos de turbulência internacional, para facilitar as trocas internacionais. Fora isso, não temos acordos de sistemas locais de pagamento onde a China está incluída.

Existe a possibilidade de criar uma moeda digital de bancos centrais entre os países dos Brics?

Essa é uma questão muito mais complexa. Passar de um sistema de pagamentos locais para para uma moeda única significa atrelar toda a política monetária à essa moeda externa. Isso poderia ocorrer somente em caso de Zona Monetária Ótima. Essa é uma questão que está sempre em discussão, seja no campo econômico, seja no campo acadêmico. Mas é muito mais complexa do que criar uma CBDC.

Estamos vendo os problemas que isso causa para para países muito homogêneos, como é o caso da Europa e da crise do euro ou da Grécia, imagina o que ocorreria com países tão diferentes como os Brics. Sem coordenação monetária e sem política fiscal comum.

Os bancos centrais do mundo inteiro começaram a investir mais nas CDBC após a criação da Libra, a criptomoeda do Facebook em 2019. Além disso, os bancos centrais do mundo inteiro estão preocupados com o risco sistêmico que algumas criptomoedas representam. A alta repentina e a baixa repentina das criptomoedas poderiam levar ao colapso do sistema econômico. O Banco Central do Brasil tem essa mesma preocupação? O real digital visa evitar esse risco sistêmico?

A preocupação dos bancos centrais é quando um criptoativo pode ser usado para pagamento. Quando um criptoativo é utilizado como investimento não gera esse tipo de preocupação. Claro, existe uma questão de adequação para a necessidade do investidor, sobre conhecimento do nível de risco, etc.. Mas é algo muito mais relacionado aos investimentos do que a a moeda propriamente dita.

Agora, por exemplo, as stablecoins que tentam replicar o valor de uma moeda de um país específico geram preocupação e interesse, pois esses tipo de criptoativo já podem começar a ser utilizados para pagamentos, interferindo nas operações monetárias, na estabilidade do sistema monetário, na estabilidade do sistema financeiro, as empresas podem acumular reservas em stablecoin, e caso essas stablecoin entrem em colapso como o caso do Terra-Luna recentemente, pode ser um problema.

Apesar dela parecer estável e poder servir como sistema de pagamento por se parecer com uma moeda, uma stablecoin não tem características suficientes para que seja estável para oferecer liquidez.

As moedas digitais de bancos centrais servem justamente para preencher essa lacuna.

No caso do Facebook, com certeza a criação da Libra foi um sinal para que os bancos centrais atuassem para evitar que a oferta de moeda ficasse unicamente nas mãos da iniciativa privada. Algo que, sabemos, criou uma série de problemas ao longo da história.

No Brasil não temos esse risco?

Não. O ecossistema de pagamentos digitais no Brasil foi criado de uma forma onde existem muitos prestadores de serviço. Começamos a trabalhar no sistema brasileiro há dez anos, e hoje todos os bancos atuam com pagamentos digitais. Hoje temos mais de 500 instituições de pagamento cadastradas. Com isso, é muito difícil que uma empresa sozinha domine o sistema de pagamentos digitais.

Além disso, Pix e obrigou os principais bancos a entrar nessa trilha de pagamento e abriu para que os pequenos pudessem entrar. Nossos sistema é favorável à criação de novos serviços, à inovação e à concorrência no mercado de pagamento.

O jeito que a China desenvolveu o mercado deles acabou criando duas empresas que dominavam 90% do mercado de pagamentos digitais. A preocupação com o excesso de concentração, de excesso de poder, criou uma perda de controle no mercado de pagamentos, criou a necessidade de alguma alternativa. Até para garantir os cidadãos que pudessem continuar realizando pagamentos mesmo se as empresas não quisessem.

Na Suécia a situação era até um pouco mais radical do que na China. Uma empresa só controla mais de 85% do pagamento digital na Suécia. E por isso o governo sueco decidiu atuar, criando uma estrutura pública para garantir que as pessoas tenham acesso ao sistema. Pois, no fim das contas, não se pode obrigar uma empresa a oferecer serviços para uma pessoa determinada.

E isso não é um problema para o Brasil.

Os protocolos brasileiros de moeda digital de banco central poderia se tornar a referência para o Mercosul? Poderia se tornar a moeda comum da região?

Estamos conversando com os países da América do Sul sobre esse tema. Existe um grupo de estudo no Centro de Estudos Monetários da América do Sul e Caribe. Mas as conversas ainda estão muito preliminares.

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