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Setor privado pode acelerar inclusão de pessoas em situação de refúgio, diz executiva da ONU

Em visita ao Brasil, Kelly Clements, Vice-Alta Comissária das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), falou com exclusividade à EXAME e explicou como as empresas podem ganhar com a contratação de pessoas em situação de refúgio, além de auxiliar com doações, serviços, inovação, entre outras ações

Kelly Clements, da ACNUR, visita pessoas em situação de refúgio no Brasil (Miguel Pachioni/ACNUR/Reprodução)

Kelly Clements, da ACNUR, visita pessoas em situação de refúgio no Brasil (Miguel Pachioni/ACNUR/Reprodução)

Marina Filippe
Marina Filippe

Repórter de ESG

Publicado em 20 de maio de 2023 às 08h05.

Última atualização em 31 de maio de 2023 às 19h22.

Covid-19, conflitos e mudanças climáticas. Estes são os "três C's" que agravam a situação humanitária no mundo e coloca 1% da população em situação de refúgio, de acordo com Kelly Clements, Vice-Alta Comissária das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).

"Estamos em um momento no qual há conflitos internos por território, guerras entre países como Ucrânia e Rússia, além de inflação e outros desafios econômicos causados por fatores diversos, mas também pelas mudanças climáticas, que tira as pessoas de suas casas por enchentes e fome, por exemplo", disse Kelly Clements, em entrevista à EXAME.

Em maio, a executiva da Organização das Nações Unidas (ONU) esteve quatro dias no Brasil para acompanhar as inciativas locais de acolhimento das pessoas em situação de refúgio. Segundo ela, o país pode ser um exemplo para o mundo em termos de organização e segurança.

Atualmente, cerca de 65.000 pessoas vivem reconhecidamente em situação de refúgio no Brasil . Destas, 70% são venezuelanas, 5% são sírias e 4% senegalesas. Por aqui, há 121 nacionalidades reconhecidas. Em relação à faixa etária, a maior parte das pessoas tem entre 18 e 45 anos.

Para avançar, é preciso mais engajamento do setor privado. "Estamos falando de oportunidades de contratação para os adultos de famílias inteiras, mas também contribuições com prestação de serviços, acesso à educação para as crianças, doações financeiras, entre outras iniciativas", afirma. Confira a entrevista completa:

Qual o cenário atual das pessoas em situação de refúgio no mundo?

O tema é sempre um enorme desafio. Cerca de 1% da população no mundo é formada por pessoas que estão fora de seus lares, de modo forçado, por conflitos, mudanças climáticas, perseguição, desigualdades, entre outros motivos. Essas pessoas são forçadas a sair e não escolhem as condições.

O que estamos vendo é que não são pessoas que estão se mudando por semanas ou meses, mas são gerações de refugiados fora de seus países por décadas.

Quando pensamos em pessoas originárias de países como Síria, Venezuela e Myanmar, por exemplo, são aqueles que querem voltar e reconstruir suas vidas, mas a situação global é tão complexa que as pessoas continuam nos locais de refúgio.

Infelizmente, quando falamos de conflitos, são muitos os problemas e poucas as soluções. No Sudão, por exemplo, dois generais lutam pelo controle do país e os civis são os que mais sofrem com mortes e todos os péssimos reflexos de uma guerra. Com isto, estamos vendo pessoas em busca de segurança e proteção.

Da nossa parte, trabalhamos para realocar os cidadãos e buscar ajuda humanitária em diferentes comunidades para promover uma acolhida. Isto é feito por meio de parcerias e das ações em mais de 135 países, coordenadas por sedes da ONU em locais como Geneva e Nova York.

Como o Brasil atua neste cenário?

Temos boas práticas no Brasil, ajudando os governos locais e o federal, para dar suporte às pessoas em situação de refúgio. As pessoas precisam de proteção para se expressar, para receber documentações, serem legalizadas, terem serviços básicos e informações.

As pessoas em situação de refúgio são homens, mulheres e crianças de todas as idades, formações e crenças, e trabalhamos para protegê-las de violências e preconceitos. Neste sentido, o Brasil tem boas práticas. Vemos isto, por exemplo, com a Operação Acolhida que tem recebido e realocado venezuelanos, além de materiais de saúde e higiene.

Uma parte importante do nosso trabalho é assegurar que as pessoas em situação de refúgio que chegam no Brasil fiquem no país de forma protegida até serem realocadas para onde passarão a viver de fato. Isto significa garantir escola para as crianças, oportunidades de trabalho e acesso aos serviços públicos.

Na minha estadia no Brasil tive a oportunidade de conversar com famílias sírias que disseram ter sido bem acolhidas aqui. O mesmo aconteceu com famílias afegãs. Estive também em Guarulhos conversando com pessoas que estão aqui por algumas semanas ou que vieram buscar uma mudança de vida.

Infelizmente, não temos um cenário 100% ideal e nos falta recursos para ampliarmos as ações como gostaríamos, mas trabalhamos com o possível para dar suporte para as comunidades.

O Brasil é um país realmente receptivo para pessoas em situação de refúgio? E os relatos de xenofobia?

No geral, o Brasil tem um bom trabalho de acolhida de pessoas em situação de refúgio. Visitei o abrigo em Guarulhos, como disse anteriormente, e sabemos que há um entendimento, por alguns, de que os estrangeiros estão competindo pelos recursos limitados no país. Mas, no geral, temos líderes locais que incluem as comunidades e mostram o valor das pessoas em situação de refúgio.

Nos quatro dias que estive no Brasil, ouvi muitos relatos sobre afeto, generosidade e boas-vindas. Posso afirmar que no Brasil vemos menos discriminação do que em outras partes do mundo.

Qual o papel do setor privado na inclusão de pessoas em situação de refúgio?

O setor privado pode contribuir com a melhora da situação de muitas formas. Primeiro, precisamos de soluções inovadoras para conectar as pessoas com as oportunidades de trabalho de forma mais assertiva. Além disso, precisamos do suporte financeiro para organizações como a nossa, que tem um custo operacional de 10 bilhões de dólares ao ano globalmente.

Um dos exemplos de parceria é com a Latam Airlines, que em março transportou gratuitamente Mais de 2 toneladas de itens de ajuda humanitária de Boa Vista (RR) para Rio Branco (AC). A parceria firmada em 2022 assegura o transporte gratuito de cargas e passageiros para os 54 destinos atendidos pela LATAM no Brasil.

Em 2021 tivemos 76 companhias no Brasil que nos buscaram para estar envolvidas de alguma forma. Digo isto porque um trabalho é bom, formal ainda mais, mas as companhias podem ajudar as pessoas a conseguirem oportunidade, melhorar o idioma, ter um abrigo, uma vaga na escola para as crianças e mais. Na prática, a ideia é que para além das vagas, o setor privado use sua expertise para gerar soluções.

O banco Itaú, por exemplo, nos deu uma substancial ajuda financeira e contribuiu para a construção de hospitais emergenciais na pandemia da covid-19. O setor bancário é importante para a inclusão financeira, para a abertura de contas de pessoas refugiadas, o acesso ao capital, etc.

Quais os benefícios para as empresas que contratam pessoas em situação de refúgio?

Além da diversidade em si, as pessoas tem habilidade culturais distintas, empatia, senso de time e são muito trabalhadoras. Eles entendem que as oportunidades são limitadas e estão ansiosas para promover melhores condições para suas famílias, o que gera muito comprometimento com o emprego.

Participei aqui no Brasil de um evento com executivos do setor privado e conheci boas histórias. A companhia de experiência do usuário Foundever, por exemplo, já contratou 700 pessoas em situação de refúgio e quer chegar a 1000 até o fim do ano. Já a Lojas Renner não só emprega, mas também capacita mulheres que vieram de outros países.

Parte das pessoas em situação de refúgio se tornam empreendedoras. A ACNUR acompanha esse movimento?

Sim, temos o caso de uma empreendedora, a Yilmary, que vive com a família em São Caetano do Sul e saiu da Venezuela após conflitos. Ela fez  diversos cursos sobre a gastronomia e empreendedorismo fornecidos pelo ACNUR e seus parceiros para entender como gerir seu próprio negócio. Agora, ela não só tem tido bons resultados, como empodera outras mulheres com negócios na gastronomia.

Este é apenas um dos casos de pessoas que, com um pouco de capital financeiro e suporte, conseguiram mudar suas vidas a partir do empreendedorismo num local seguro. Mas, sabemos que todos precisam estar envolvidos. Governo, setor privado e sociedade civil podem trabalhar mais para transformar os países em locais receptivos e diversos de modo a melhorar a economia e acolher pessoas em situação de refúgio.

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