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Pacto pela refundação da cultura

Como desenhar uma política de cultura que dialogue com a sociedade, esteja presente na vida do cidadão e seja relevante para o país

A produtividade do país depende de formação continuada e o motor econômico no século 21 é a economia do conhecimento (Buda Mendes//Getty Images)
RC

Rodrigo Caetano

Publicado em 30 de novembro de 2022 às 18h01.

Última atualização em 30 de novembro de 2022 às 18h09.

Entre os vários desafios urgentes que o governo eleito enfrenta para reerguer a agenda da cultura, destaco um que permanece incluso desde a criação do Ministério da Cultura, um pacto por uma política de cultura que seja pública, ou seja, presente na vida do cidadão e relevante para o país.

Desenhar uma política de cultura que dialogue com a sociedade brasileira implica repensar uma estrutura institucional organizada para atender prioritariamente demandas via projetos incentivados e por editais públicos. É evidente a necessidade de garantir a normalização dessa estrutura perdida nos últimos seis anos, mas há uma oportunidade de fazer o que nunca foi feito com clareza pela agenda institucional do setor.

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Destaco quatro pontos que entendo serem relevantes para avançarmos em uma agenda de futuro que não repita erros do passado: cultura democrática, inovação produtiva, diplomacia cultural e política para as artes.

Não precisa muito esforço para entender a importância da política cultural elaborar uma visão programática que colabore com a formação de uma cultura democrática no Brasil. Uma tarefa entregue a nenhuma área de política pública desde a redemocratização do país. E há duas formas bem objetivas da cultura assumir este papel: colocando o sistema cultural (museus, bibliotecas, centros de cultura, editais públicos, programas de formação), a serviço de uma ação de longo prazo que eduque para valores democráticos, e uma ação coordenada com a comunicação pública usando a enorme quantidade de conteúdos artísticos-culturais que o país produz diariamente e contando com a base profissional instalada pelo setor audiovisual. Ou seja, fazer dos meios de comunicação públicos um dispositivo de cidadania cultural.

Ambas as ações encontram fartos exemplos de países que se dedicaram de forma consciente a educar seus cidadãos para a democracia, o que no Brasil engloba também formar para uma cultura antirracista e não violenta. Não existe democracia política sem democracia cultural e isso não pode ser tratado como um exercício retórico, mas como objeto de construção social. Criar um ecossistema que garanta que esses valores continuem a existir e se sobreponham à necessidade de criar muros, de destruir culturas e formas inteiras de existência é uma prerrogativa ética.

O segundo ponto nasce da pergunta, o que as artes e a cultura agregam ao debate sobre educação e inovação produtiva?

Dediquei uma coluna inteira a este tema, mas destaco aqui como a relação positiva entre arte e excelência na educação está amplamente comprovada por estudos como o de James Catterall (1948-2017), professor da Universidade da Califórnia (UCLA) que dedicou boa parte da sua vida para analisar pesquisas que provam como as artes desenvolvem a cognição do indivíduo, habilidade aplicável a qualquer outra área do conhecimento.

Segundo, porque a produtividade do país depende de formação continuada e o motor econômico no século 21 é a economia do conhecimento, impulsionada pelo investimento em inovação e no ensino das ciências básicas, pelo acesso e desenvolvimento das tecnologias e pelos setores das artes, design, gastronomia, moda, entretenimento e todo o conjunto das chamadas indústrias criativas.

Pegando o recorte apenas das atividades culturais, segundo informe divulgado pela Unesco em 2021, elas movimentam 6,1% da economia mundial e geram uma renda anual de US$ 2,25 trilhões e quase 30 milhões de empregos no mundo, “empregando mais pessoas com idades entre 15 e 29 que qualquer outro setor. A indústrias culturais e criativas se tornaram essenciais para o crescimento econômico inclusivo, reduzindo as desigualdades e colaborando para o desenvolvimento sustentável. Elas estão entre os setores que mais crescem no mundo”. [1]

Para que estas oportunidades não fiquem concentradas entre os mais ricos e bem formados, um esforço grande de articulação e inovação institucional vai precisar ser feito entre as áreas da educação e da cultura, com foco prioritário na implantação adequada do Novo Ensino Médio, ampliação das escolas técnicas e de educação artística públicas.

A diplomacia cultural se inscreve no esforço de colaborar de forma estrutural com a projeção do Brasil, orientação já sinalizada pelo Presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. A cooperação cultural avançou muito nos últimos anos e deve ganhar maior protagonismo com agendas renovadas por organizações internacionais. Ações isoladas, mostras, festivais, anos celebrativos ajudam, mas não dão o caráter permanente e estruturado que o país, como uma das maiores economias do mundo, pode ter.

Um caminho com menos musculatura que um agência de cooperação cultural brasileira, mas ainda assim melhor do que as ações fragmentadas de hoje, é discutir com o Ministério de Relações Exteriores um programa que tenha como base um marco legal e institucional criado para garantir a participação do país nos principais fóruns internacionais e o apoio sistemático ao intercâmbio de artistas e criadores brasileiros.

Por último, precisamos avançar em uma política para as artes que apoie todo o ciclo de criação diferenciando de forma lógica processos artísticos tão diferentes como os que as diversas linguagens artísticas sozinhas ou combinadas exigem, ou o tempo de maturidade dos atores culturais, as condições de desigualdade entre as regiões brasileiras e o vício do financiamento em geral no final do processo, obra, montagem, filme.

Desenvolver as artes no país a altura da sofisticação que temos, não pode depender de editais e de um sistema de fomento que privilegia apenas o resultado, obra, montagem, produto, mas que entenda que a exemplo do financiamento às ciências, o processo de pesquisa e de criação, é que abre as portas para a inovação. Defender e apoiar a liberdade artística de forma incondicional, sua diversidade, suas formas transgressoras e disruptivas de agir no mundo contra qualquer oposição, censura e autocensura institucional, popular ou religiosa, é uma tarefa das mais relevantes para uma agenda de peso que colabore para refundar a política cultural brasileira.

*Marta Porto é Jornalista, crítica da cultura e fundadora da Marta Porto Consultoria. Foi Secretária de Cidadania e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura, Coordenadora da UNESCO/RJ e Membro do Comitê que redigiu a Agenda 21 de Cultura


[1] Cultura e Desenvolvimento no Brasil (Unesco, 2021)

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