Dia da Pessoa com Deficiência: avançamos, mas mercado ainda não normalizou a inclusão
Em entrevista à EXAME, as influenciadoras de beleza e moda Marina Melo e Stephanie Marques contam sua trajetória enquanto pessoas com deficiência na luta pela inclusão no mercado
Repórter de ESG
Publicado em 3 de dezembro de 2024 às 11h23.
Última atualização em 3 de dezembro de 2024 às 12h02.
A carioca Marina Melo, de 21 anos, recebeu o diagnóstico com apenas 8 meses. Portadora de atrofia muscular espinhal II, sofre com fraqueza nos músculos, que gerou um impacto em todo o seu desenvolvimento. Durante a época de escola, a mudança de temperatura entre as estações afetava sua capacidade pulmonar já baixa.
Ela conta que, além da perda de conteúdo, também sentia o impacto na saúde mental. “Perdia a convivência com as pessoas. Eu ia a aula duas vezes por semana, ia embora no meio do período, nunca tive uma boa socialização”, explica.
Durante a pandemia, com as aulas remotas, perdeu ainda mais dessas oportunidades de convívio. Foi quando decidiu criar uma conta no Instagram onde compartilharia sua rotina de estudo, buscando uma motivação para estudar. Não funcionou, mas abriu portas para novas oportunidades.
Marina explica que foi a partir dessa conta que começou a acompanhar os perfis de outras pessoas de deficiência. Foi só com 18 anos que conheceu o termo capacitismo, que explica o preconceito ou aversão à PCDs, mesmo tendo enfrentado ele por toda a vida. “Isso abriu meus olhos, então comecei a compartilhar sobre isso na internet”, afirma.
Compartilhar sua vivência com pessoas que passavam pelos mesmos desafios e limitações deu um “boom” na autoestima de Marina, antes muito afetada pela visão dos outros sobre sua deficiência.
A criadora de conteúdo decidiu falar sobre maquiagens, inspirada nas influenciadoras que acompanhava. Embora gostasse do tema, a fraqueza nos músculos impedia muitas de suas ações dentro do universo. “Precisava de ajuda para abrir a maioria dos produtos”, conta.
Inacessibilidade
A fórmula e o modelo da embalagem de boa parte dos produtos em bastão são inacessíveis para Marina, uma vez que sua deficiência reduz a força necessária para aplicar os produtos ou que ela espalhe os produtos com as mãos. Materiais líquidos ou em pó, que são mais fáceis de serem aplicados e espalhados com pincéis, são seus preferidos. Itens que cortem etapas, como blushes iluminadores, também facilitam sua rotina de aplicação.
Já a skin care, etapa que inclui a limpeza e o tratamento da pele a partir do toque no rosto, ainda não consegue fazer sozinha, sem precisar de ajuda de terceiros.
Foi pensando na solução para suas limitações que Marina criou o movimento # BelezaAcessível, uma campanha para que empresas priorizem a inclusão de PCDs na criação de seus produtos. “A maquiagem ajudou na minha autoestima. Quero que todas as pessoas com deficiência tenham essa mesma experiência”, conta.
Hoje,acumulando mais de 120 mil seguidores nas redes sociais, recebe comentários até mesmo de pessoas sem deficiência alertando que um novo produto de uma marca não é acessível, pedindo para que Marina teste e dê sugestões sobre como tornar o material inclusivo.
Marina ainda criou uma consultoria de diversidade e inclusão, chamada Autonomi, que trabalha com as empresas o desenvolvimento acessível de produtos e campanhas.
Uma das marcas que trabalharam com a consultoria foi a Mari Maria Makeup, da influenciadora Mari Maria. Antes do lançamento de uma nova linha de maquiagens, as duas se reuniram para que Marina pudesse testar cada um dos produtos sob a ótica da acessibilidade. “Debatemos as possibilidades de transformar os produtos pela inclusão da forma mais viável economicamente. Fico feliz de ver que pessoas e marcas estão se abrindo para pensar nessas questões”, conta.
Outras marcas grandes do mercado, como o Grupo Boticário, também lançaram produtos pensando na acessibilidade e inclusão. Uma nova linha de pincéis para maquiagem, lançada no último mês, é articulada, formato que facilita a aplicação e uso por pessoas com deficiência física.
Mesmos obstáculos pela inclusão
Um desafio similar é vivido por Stephanie Marques. Ainda na gravidez, sua mãe soube que o bebê que esperava teria alguma deficiência: no ultrassom, sua filha apresentou um crescimento muito abaixo do esperado para sua contagem de semanas.
Ela convive com a displasia óssea espôndilo epifisária metafisária congênita, má formação congênita que impacta a estatura, sendo o primeiro caso diagnosticado no Brasil. A falta deacessibilidadese tornou parte integrante da sua rotina: em casa, tinha sempre bancos ou escadas para alcançar os pontos mais altos. Já fora de casa, não contava com a acessibilidade — ou algo que forjasse ela.
“Tenho de praticamente escalar para subir os degraus do ônibus, e não consigo apertar o botão da parada. Nos banheiros, não alcanço a pia para lavar a mão. Foi assim que entendi que o problema não é comigo, mas com o mundo ao meu redor”, conta.
A autoestima também sofreu muito do impacto. Por ser de baixa estatura, Stephanie sempre pareceu mais nova do realmente é: mesmo com 28 anos, por muitas vezes é lida – e tratada – como uma criança. “Sempre que me viam andando sozinha na rua questionavam ‘nossa, tão pequena e já passeando sozinha?’, mas eu já tinha 14 ou 15 anos. Outras meninas da minha idade andavam sozinhas, por que comigo gerava um horror?”, explica.
Encontrar seu estilo de roupas foi um desafio que conviveu por muitos anos. Stephanie costuma comprar peças da seção infantil, o que ajuda a infantilizar seu corpo. “Lembro que com 20 anos, tentei comprar um tênis branco, simples. Como calço o tamanho 28, todas as minhas opções tinham borboletas, flores ou arco-íris. Eu sou uma adulta, quero me vestir conforme a minha idade.”
Outra opção é encomendar vestimentas no seu tamanho com costureiras, o que é custoso. Nos últimos anos, com o crescimento da moda infantil similar à adulta, suas opções aumentaram. “Por um lado, é triste, porque para essas crianças isso não deveria acontecer, mas eu finalmente pude usar as roupas que estavam em tendência”, explica.
Em 2019, após um período sem trabalhar, começou a acompanhar as chamadas " blogueiras" nas redes sociais. Sempre muito falante e artística, Stephanie pensou que poderia ter sucesso na profissão que surgia ali, mas sabia que enfrentaria preconceito por se expor enquanto pessoa com deficiência. Escolheu começar falando sobre o que mais amava: a moda.
Passou a criar conteúdo sobre combinação de peças e cores. Passou dos 2 mil para 3 mil seguidores, logo encontrando um grupo que enfrentava problemas similares: como encontrar seu estilo em meio a uma indústria feita para pessoas sem deficiência?
No primeiro momento, viu uma piora em sua autoestima: isso porque a internet cria uma camada de proteção entre os “haters” e os influenciadores. “Um dia fiz um vídeo com meus animais de estimação, que viralizou. A partir dele, comecei a receber vários comentários preconceituosos. Toda vez que um vídeo ganha mais visualizações, sei que vou receber comentários sobre meu corpo”, explica.
Antes, Stephanie não respondia ou apenas bloqueava os perfis com comentários maldosos. “Hoje, respondo ‘querido, presta atenção no que você tá falando’. Não ofendo, mas também não deixo passar, tento levar com bom humor e deixo para trás.”
Hoje, com mais de 320 mil seguidores no Instagram, Stephanie se descreve como “PCD, mas é só um detalhe”. Ela explica que a frase, descrita em sua biografia da rede social, mostra ao seu público que, sim, é uma pessoa com deficiência, mas que esta não é a sua única ou principal característica.
Avanços pela inclusão
Tanto Marina quanto Stephanie contaram em entrevista que percebem, sim, ummovimento de mudança no mercado, buscando a melhoria dos produtos e ações para incluírem pessoas com deficiência desde a sua criação. Mesmo assim, as duas influenciadoras concordam que muito ainda precisa ser feito pela plena inclusão da população.
“Vejo muita resistência do mercado em incluir pessoas com deficiência e acredito que seja por falta de conhecimento sobre o assunto, ter receio de errar e se manchar. O mercado ainda tem muito o que melhorar pela inclusão”, conta Marina.
Para Stephanie, ver a preocupação genuína das empresas com a inclusão ainda é raro. Assim com o cenário de inclusão se abriu mais para grupos diversos nos últimos anos, o mesmo movimento precisa acontecer entre as empresas e as PCDs. “Querendo ou não, o que vemos nas propagandas, redes sociais e na televisão é um reflexo da realidade. Precisamos naturalizar ver pessoas com deficiência em todas as situações. É a sensação de estranhamento que ainda nos afasta”, conta.