Economia

Vai pagar em Libra Esterlina ou de Bristol?

Mariana Prado Zanon Durante uma tarde de verão em um café no centro de Bristol, na Inglaterra, uma fila se formava para pagar dois chás gelados e dois cookies de chocolate. Os 10,90 pounds — algo por volta de 46 reais — marcados no total da conta pareciam uma pequena fortuna mesmo para meu amigo […]

BRISTOL: uso de moeda complementar para estimular restaurantes, bares e mercados locais / Luke Andrew Scowen

BRISTOL: uso de moeda complementar para estimular restaurantes, bares e mercados locais / Luke Andrew Scowen

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Da Redação

Publicado em 27 de agosto de 2016 às 09h14.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h04.

Mariana Prado Zanon

Durante uma tarde de verão em um café no centro de Bristol, na Inglaterra, uma fila se formava para pagar dois chás gelados e dois cookies de chocolate. Os 10,90 pounds — algo por volta de 46 reais — marcados no total da conta pareciam uma pequena fortuna mesmo para meu amigo francês que ganha seu salário em euros. Mas paciência… Esperando pela minha vez de abrir a carteira, conheci pela primeira vez o Bristol pounds. Eram notas coloridas e cheias de desenhos que estavam sendo usadas por algumas pessoas na minha frente. No caixa, pude trocar 20 Libras Esterlinas por 20 Libras de Bristol e, pela primeira vez, testei uma moeda local complementar do Reino Unido.

A Libra de Bristol é uma das representantes — assim com a Abelhas, a Libra de Totne, o Cigalonde, o Eusko e o Sol Violeta — das moedas alternativas que tentam driblar a atual crise econômica da Europa e são cada vez mais frequentes na economia local de cidades da França e da Inglaterra. A Libra de Bristol, estampada com diferentes desenhos de artistas locais, foi criada em 2012 para estimular a economia da cidade. Resistente às possíveis variáveis econômicas, o objetivo principal da moeda é apoiar os comerciantes independentes, garantindo uma quantidade maior de lojas abertas. Esse estímulo é garantido pelo funcionamento da moeda. A Libra de Bristol vale o mesmo que uma Libra Esterlina, mas só pode ser trocada e gasta pela população nos estabelecimentos parceiros.

Administrada por uma instituição sem fins lucrativos, a moeda complementar começa agora também a ganhar o serviço público. A prefeitura passou a aceitar que uma pequena porcentagem dos impostos municipais sejam pagos em Libras de Bristol. A moeda alternativa arrecadada volta a circular por meio do pagamento do salário dos servidores, que recebem uma quantia dos proventos na moeda local. Uma vez com esse dinheiro, os trabalhadores podem usar as Libras Esterlinas para pagar as faturas mais comuns — como água, luz e serviços de televisão — e as Libras de Bristol para frequentar bares, restaurantes, além de realizar compras nos supermercados.

Antes da Libra de Bristol, outras moedas locais já complementavam a economia inglesa em contrapartida da Libra Esterlina, particularmente a pioneira inglesa Libra de Totnes, em circulação desde 2006. Nas notas, nada de imagens de Elizabeth 2ª e sim de ícones ingleses populares como o músico David Bowie, que estampa a nota de 10. A prefeitura de Totnes estima que para cada unidade da moeda local gasta, o impacto total na economia da cidade é de 2,5 Libras Esterlinas — impacto 78% maior do que quando se usa apenas a Libra Esterlina nas transações comerciais.

Do outro lado do Canal

A França não demorou muito para também experimentar o boom das moedas complementares. Hoje, em terras francesas circulam ao menos 30 moedas locais complementares ao euro, entre as mais conhecidas temos a Abelha, a Cigalonde, o Eusko, o Galléco, a Medida, a SoNantes e o Sol-Violeta. Cada uma com sua particularidade, suas regras e uma história diferente.

“As moedas complementares induzem a comportamentos cooperativos e solidários, reforçando o vínculo social e a coesão comunitária de uma cidade”, afirma Hubert Peres, professor de cooperação internacional e desenvolvimento da Universidade de Montpellier, cidade que avança um enorme projeto de moeda local complementar. “Dar ao cidadão o controle sobre a unidade de intercâmbio é valorizar, respeitar e promover a democracia, valores que hoje podem parecem ter sido esquecidos num buraco negro”, complementa o pesquisador francês.

As moedas complementares devem respeitar restrições regionais e a circulação deve beneficiar apenas a redistribuição dos recursos na própria comunidade, não podendo ultrapassar o teto estabelecido pela prefeitura sob pena de serem taxadas. Em outras palavras, a moeda local complementar não deve servir como uma reserva de valor ou riqueza, não deve ser poupada, não deve gerar rendimentos e deve responder somente às funções clássicas de uma moeda: meio de pagamento e unidade de conta.

Seus benefícios parecem saídos de um programa de governo de Bernie Sanders. Elas promovem o comércio local em vez do apetite voraz das franquias de restaurantes e supermercados, libertam o dinheiro de suas tendências especulativas, revalorizam competências não reconhecidas pelo mercado de trabalho e favorecem o meio ambiente ao estimular o consumo consciente e a troca de produtos e serviços locais. Como resultado imediato, diminui-se a emissão de CO2 na atmosfera ao se evitar que bens de consumo viagem longas distâncias, diminuindo, inclusive, o uso de plástico e papel nas embalagens.

Mas é claro que nem tudo é tão idílico assim. Em Toulouse, por exemplo, os consumidores que usam o Sol, que circula nos mercados da cidade desde 2011, têm uma pequena vantagem na hora da conversão. A moeda circula apenas em notas e o troco é sempre voltado em euros.

Como a moeda complementar vale, além da mercadoria comprada, “dinheiro de verdade” é preciso estar atento contra falsificações. Na cidade de Nantes, por exemplo, os pagamentos com o SoNantes, em circulação desde 2014, podem ser feitos apenas por cartão de débito, via SMS ou via Internet. Jacques Stern, diretor do Crédito Municipal da cidade, acredita que a “a moeda física em papel traz custos suplementares e um risco maior de falsificação”. O modelo entra em vigor também para os Euskos, a moeda complementar do País Basco que acredita que a virtualização da moeda local pode garantir um sistema mais sério e seguro para os comerciantes.

Todo mundo pode criar dinheiro?

Na Zona do Euro, 85% da circulação do dinheiro é feita via empréstimos e juros, ou seja, é um dinheiro virtual. O dinheiro físico, notas e moedas, representa apenas 15 %. Por isso, não compramos imóveis e casa com dinheiro vivo e temos um limite de saque nos caixas eletrônicos. O dinheiro vivo não seria suficiente para alimentar toda as transações econômicas. As moedas complementares surgem justamente para ocupar esse vazio.

Há três passos fundamentais para o sucesso da criação da moeda complementar: o primeiro é formar um núcleo, uma rede de associados, uma cooperativa que aceite transações feitas através desta nova moeda. O segundo é escrever a “constituição” da moeda: regras, espírito e finalidades. O terceiro e último é definir o quadro jurídico desta nova moeda. Isso quer dizer, o dinheiro deve circular entre os associados que conheçam e respeitem a delimitação de ofertas disponíveis em moeda local.

Legalmente todos podem fazer sua própria moeda, mas há ressalvas. “Nenhum comerciante pode aceitar somente a moeda complementar como forma de pagamento visto que ela não é reconhecida oficialmente pelo Estado”, diz Emeric Henry, professor e diretor do programa de pós-graduação em microeconomia do Instituto de Estudos Políticos de Paris. “Os padeiros de uma determinada cidade podem aceitar a moeda complementar, mas não podem recusar o euro quando forem vender o pão”, afirma. Assim como os cookies e os chás britânicos, há outras formas de levar os brioches franceses para a casa.

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