Economia

Os gafanhotos estão acabando com a comida do Quênia

As nuvens de insetos consomem diariamente o mesmo volume de alimentos que 35 mil pessoas

Quênia: o país vive o pior ataque de gafanhotos do deserto dos últimos 70 anos (Khadija Farah/The New York Times)

Quênia: o país vive o pior ataque de gafanhotos do deserto dos últimos 70 anos (Khadija Farah/The New York Times)

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Da Redação

Publicado em 4 de março de 2020 às 13h00.

Última atualização em 4 de março de 2020 às 14h16.

Wamba, Quênia – Quando a mancha escura e densa começou a bloquear o céu diurno, muita gente em uma aldeia pastoral tranquila do norte do Quênia achou que fosse uma nuvem anunciando chuvas refrescantes e bem-vindas.

Mas a esperança logo se transformou em horror quando o borrão gigantesco se revelou um exército de gafanhotos-do-deserto que já vem deixando um rastro de destruição pelo país desde fins de dezembro. O tamanho absurdo da nuvem assustou os moradores.

“Parecia que um guarda-chuva tinha coberto o céu inteiro”, descreve Joseph Katone Leparole, que viveu em Wamba a maior parte de seus 68 anos.

Quando os insetos pousaram, a comunidade rapidamente se reuniu para tentar afastá-los, usando um braço para matá-los com pedaços de pau ou bater em panelas de metal, e a outra para cobrir o rosto e evitar as criaturas amarelas que voavam à sua volta.

Na escola local, as crianças gritavam de terror, e os animais dos quais o vilarejo depende para subsistência também entraram em pânico. “As vacas e os camelos não conseguiam ver para onde corriam. Foi uma aflição só”, revela Leparole.

Para aumentar o medo e a confusão, não houve nenhum alerta de que os gafanhotos estavam a caminho. E, enquanto o povoado lutava para se defender da invasão surpresa, Leparole se lembrou das histórias que seus pais contavam dos enxames famintos que uma vez passaram por ali. “Pois o que era lenda se tornou realidade”, constata ele, ainda afastando os insetos que continuam a atormentar Wamba.

O Quênia está combatendo o pior ataque de gafanhotos do deserto dos últimos 70 anos, e a infestação já se espalha pela maior parte oriental do continente e do Chifre da África, acabando com os pastos e as plantações na Somália e da Etiópia, e varrendo o Sudão do Sul, Djibuti, Uganda e Tanzânia.

As nuvens dos insetos altamente móveis, que chegam a conter até 80 milhões de indivíduos por quilômetro quadrado, consomem diariamente o mesmo volume de alimentos que 35 mil pessoas.

As autoridades afirmam que a infestação representa uma ameaça à segurança alimentar, inviabiliza o crescimento econômico e, se não for controlada logo, pode agravar os conflitos comunitários em relação às pastagens.

Além dos doze milhões de pessoas que já sofrem com a grave escassez alimentar na Etiópia, no Quênia e na Somália, a crise do gafanhoto agora ameaça outros vinte milhões com a carestia, segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês).

“É um problema de dimensões gigantescas porque os insetos são alvos móveis. É uma corrida contra o tempo”, revela Cyril Ferrand, líder da equipe montada pela organização para a África Oriental.

Os gafanhotos são particularmente nocivos às comunidades pastorais como a de Leparole, que dependem da vegetação para alimentar a criação. E, embora a disponibilidade atual seja maior graças às chuvas pesadas ocorridas no fim do ano passado, ele teme o que pode acontecer se a infestação persistir.

Depois de servir 18 anos no Exército e uma década como conselheiro local, Leparole passou a se dedicar à criação, vendendo o leite e a carne nas feiras próximas. Com três esposas e 17 filhos, suas dezenas de bois e vacas, ovelhas e camelos representam seus bens e são o único meio de subsistência da família.

“Desde a chegada dos insetos, meus filhos têm de levar os animais cada vez mais longe para pastarem em paz. Os bichos estão em todo lugar e os bois e camelos param de comer quando veem que eles vêm vindo”, conta ele.

Segundo Celina Lepurcha, administradora local de Wamba, embora o Quênia tenha começado a borrifar produtos químicos para combater a invasão em janeiro, com a amplidão e inacessibilidade de áreas como essa, muitos ovos podem escapar da erradicação. E, apesar do número cada vez maior de gafanhotos na aldeia, o governo nacional teve de encerrar a operação na área por causa da falta de pesticida.

“Se os produtos não forem aplicados na época certa, o círculo vicioso não vai acabar nunca”, constata Lepurcha.

Dada a rapidez com que as criaturas podem arrasar áreas inteiras, teme-se também que elas representem uma séria ameaça aos grandes herbívoros do Quênia. Os parques nacionais e áreas de conservação que os abrigam, e também os predadores que os caçam, têm um papel fundamental no setor de turismo do país, que por sua vez representa uma boa fatia da economia nacional.

“Se os gafanhotos permanecerem na região nos próximos meses, aí sim começaremos a ver o impacto que causarão sobre os herbívoros”, confirma Kieran Avery, diretor da gestão de recursos naturais do Northern Rangelands Trust, uma organização de conservação comunitária do norte do Quênia.

Para a ONU, se os insetos não forem combatidos logo, seu volume pode crescer até 500 vezes até junho, o que sem dúvida será um desastre não só para as comunidades pastorais, mas também para os fazendeiros.

Em uma propriedade em Maseki, cidade no leste do Quênia, Mwikali Nzoka se viu totalmente impotente enquanto os gafanhotos devoravam seus campos de painço, feijão e tomate, entre outras culturas. “Eles estão em todo lugar. Estava tudo tão verdinho! Daqui a pouco vai ficar parecendo um deserto”, lamenta ela, abrindo os braços em desespero.

Paul Katee, principal assessor do município, explica que novos enxames continuam a chegar, apesar de as autoridades terem borrifado a área com inseticida no início de fevereiro. Segundo ele, os produtores menores da área consomem dois terços do que plantam e vendem o resto nas feiras locais, ou seja, os insetos ameaçam a subsistência de até 56 famílias.

“Nunca vimos nada parecido; está todo mundo preocupado”, confessa ele, balançando a cabeça.

Embora os produtos químicos sejam eficazes no controle das pragas, o pessoal local teme que contaminem também a água usada para consumo, higiene e irrigação.

A infestação atual no Chifre da África foi agravada pelas fortes chuvas que atingiram a região entre outubro e dezembro de 2019, ajudando a criar condições favoráveis para a reprodução e o desenvolvimento do gafanhoto do deserto, cujo corpo passa por mudanças drásticas em resposta ao meio ambiente.

Embora às vezes aja como criatura solitária, o gafanhoto do deserto pode desenvolver as asas de que precisa para atravessar mares e continentes com a ajuda das temperaturas amenas e a quantidade certa de chuva para fazer crescer as plantas de que precisa para se alimentar.

“O volume anormal das precipitações foi causado pelo dipolo, um fenômeno agravado pelo aquecimento contínuo da porção ocidental do Oceano Índico, causado pela mudança climática”, explica Abubakr Salih Babiker, cientista da Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento, o bloco comercial de oito países no Chifre da África.

Com as temperaturas mais altas, o gafanhoto também atinge a idade adulta mais rapidamente e se espalha em ambientes de maior altitude. Uma vez que o inseto está adaptado às regiões áridas, se o aquecimento global expandir a amplitude geográfica dessas terras, ele aumentará seu alcance.

“Isso significa que, no geral, a mudança climática tornará as infestações mais frequentes e mais danosas”, conclui Arianne Cease, diretora da Global Locust Initiative da Universidade Estadual do Arizona.

Conversando com Leparole em sua casa, vimos grupos imensos de gafanhotos jovens, escuros e sem asas, perto da porta da frente. “Se não acharmos uma maneira de acabar com esses novinhos, daqui a pouco teremos um problemão”, constata ele.

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