Economia

É melhor ir atrás do que é certo

Após o fracasso nas reuniões da OMC, o Itamaraty vai se concentrar em "ações que dêem resultado". Mas não deveria ter sido sempre essa a obrigação da diplomacia brasileira na área do comércio?

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Da Redação

Publicado em 10 de outubro de 2010 às 04h11.

Coitado de quem, até outro dia, se arriscasse a dizer que o caminho mais eficaz para o Brasil defender seus interesses comerciais na arena global era trabalhar a sério na busca de acordos diretos com a União Européia e os Estados Unidos e preocupar-se menos em reconstruir o mundo à imagem do Itamaraty. Na melhor das hipóteses, seria chamado de ingênuo pelos mestres de geopolítica que hoje comandam o Ministério das Relações Exteriores ou, então, acusado de não "entender nada de política externa". Na maior parte das vezes, recebia o carimbo de "antibrasileiro" - discordar da linha oficial, que sonhava com a formação de um bloco de potências emergentes capaz de dobrar os países ricos e ansioso por aceitar a liderança do Brasil, era coisa de mentalidades colonizadas, na fronteira do antipatriotismo. Ainda bem que o fracasso do último grande encontro da Organização Mundial do Comércio, em Genebra, durante o qual o Itamaraty imaginava obter um acordo planetário em relação às divergências entre todas as partes envolvidas, veio mudar um pouco essa maneira de ver as coisas. A Índia e a China, que deveriam estar do lado do Brasil, ficaram ao lado de si mesmas; a Índia, especialmente, negou-se a aceitar o último ponto que faltava para se fechar o acordo. Sete anos seguidos de negociações acabaram dando em nada - e daqui para a frente, fechado o caminho de um acerto mundial, o que resta é a possibilidade de tratados bilaterais. "Agora teremos de nos concentrar em ações que dêem resultados", afirmou o ministro Celso Amorim, das Relações Exteriores, ao fim da reunião da OMC. Quem diria?

Um cidadão que não entende nada de política externa poderia imaginar que seria justamente isso - concentrar-se em ações que dêem resultados - a obrigação central da diplomacia brasileira na área do comércio. Não era, mas a partir de agora, segundo nos garante o ministro Amorim, vai ser. É um alívio, pois assim torna-se possível defender a busca desse tipo de ação sem o risco de ser excomungado - e, mais importante ainda, passam a existir chances menos teóricas de que o Brasil consiga, afinal, ganhar alguma coisa com sua política externa. De todas as paradas que disputou até agora, ao longo de todo este governo, não ganhou uma. Ao Itamaraty não ocorreu que seria algo razoável, para o interesse brasileiro, investir na busca de um melhor entendimento com Estados Unidos, União Européia ou Japão, cujas economias consomem trilhões de dólares em importações a cada ano; preferiu hostilizar a todos, na esperança de dividir o mundo entre "eles" e "nós". O problema está nesse "nós". Deveriam fazer parte dele as economias emergentes mais fortes, o Mercosul e uns outros tantos, mas o que pensavam (e às vezes diziam) quando o Brasil falava em "nós" era: "Nós quem?" O resultado é que a diplomacia brasileira perdeu os últimos cinco anos e meio tentando influenciar países que não querem ser influenciados pelo Brasil, nada ganhou deles e andou para trás no seu relacionamento com os ricos. "Desde o início deste governo, não tivemos nenhum acordo substancial, seja multilateral, regional ou bilateral", resume o diplomata Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil nos Estados Unidos. É um fato que discurso nenhum consegue eliminar.

Certamente o presente governo pode registrar, em suas contas externas, um notável avanço das exportações agrícolas brasileiras, um item essencial nas negociações internacionais de comércio. Mas isso pouco tem a ver, ou nada, com a estratégia diplomática do Itamaraty; é fruto da competência, da produtividade e da capacidade de competição do agronegócio nacional. "O crescimento das exportações brasileiras nos últimos dez anos se deu por causa da eficiência da nossa agricultura, e não por acordos internacionais", diz o ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues. O próprio ministro atual da Agricultura, Reinhold Stephanes, disse que a reunião da OMC em Genebra não iria servir para nada e que possíveis melhorias nas condições do comércio agrícola mundial só virão por razões de mercado. O chanceler Amorim não gostou nem um pouco. "O ministro da Agricultura deve achar que eu estou aqui para me divertir", protestou ele. Para o contribuinte brasileiro, que paga os salários tanto de Amorim como de Stephanes, ficou a dúvida: se os dois fazem parte do mesmo governo, dizem o contrário um do outro e o presidente da República mantém ambos em seus cargos, em qual deles se deve acreditar?


 As coisas não melhoram em nada, enfim, quando se leva em conta que a diplomacia brasileira, nestes últimos anos, meteu-se numa das tarefas mais difíceis que podem existir no mundo para qualquer chancelaria: ser amiga da Argentina. Naturalmente, não há nada de errado com a Argentina - um grande país, dotado de um grande povo. Mas há tudo de errado com seus governos, que pelo menos nos últimos 30 anos têm feito o possível para ficar entre os piores do planeta. Na vida prática isso faz, é claro, uma tremenda diferença. No grande plano do Itamaraty para salvar o Brasil através da reorganização do globo terrestre, a Argentina foi escolhida para exercer um papel essencial, pois sem ela não existe o Mercosul - e o Mercosul, na visão da atual diplomacia brasileira, é a coisa mais importante que aconteceu nas relações comerciais entre o Brasil e o resto do mundo desde a abertura dos portos por dom João VI. Nunca deu certo. Seja qual for o governo presente em Buenos Aires, o Brasil só leva na cabeça. Como poderia haver um entendimento melhor, pensando bem, quando justo agora, quando o Brasil se empenha na OMC em defender as exportações agrícolas do Mercosul, a prioridade do governo da presidente Cristina Kirchner é guerrear contra os próprios exportadores argentinos de alimentos? Assim fica difícil.

Também aí, aparentemente, o fiasco da reunião da OMC em Genebra talvez venha a resultar em algum ganho para o Brasil. Da mesma forma como prometeu que o Itamaraty, daqui por diante, vai se concentrar "em ações que dêem resultados", o ministro Amorim acabou por se distanciar da Argentina durante o encontro, por entender que isso era melhor para os interesses do Brasil. É possível imaginar, assim, que em futuras negociações do Mercosul com os Estados Unidos ou a Europa a diplomacia brasileira fique ao lado da Argentina só quando essa opção atender ao interesse nacional; quando não atender, fará o que for melhor para o Brasil. Não deveria ter sido sempre assim? Deveria, mas são águas passadas; o que importa é o que vem pela frente.

O Itamaraty talvez esteja fazendo como o coronel Tamarindo, que, ao dar meia-volta para salvar a própria pele numa das retiradas de Canudos, explicou à tropa: "É tempo de murici, cada um cuide de si". Pode não ser bonito, mas às vezes não há outro jeito.

Aguardando um sinal

O Brasil está com um problema em suas contas externas? Está. Qual o tamanho do problema? Pelos últimos dados disponíveis, há um déficit de quase 17,5 bilhões de dólares na conta total das transações com o exterior durante o primeiro semestre deste ano; nos 12 meses entre junho de 2007 e junho de 2008, o buraco entre o dinheiro que entrou de fora e o dinheiro que saiu do país passa dos 18 bilhões de dólares. O problema é sério? Aí já se começa a entrar no "veja bem". É mais ou menos como o médico diz ao cliente que lhe mostrou o exame de imagem: "É, está aparecendo aqui um ponto que não deveria aparecer. Não é para ficar assustado, porque isso tem tratamento, mas se a gente não cuidar a coisa pode crescer e sair de controle. Aí complica". No caso do balanço de pagamentos brasileiro, é certo que o ponto só tem crescido desde que apareceu. No primeiro semestre de 2007 havia um saldo superior a 2 bilhões de dólares; de lá para cá esse saldo sumiu, transformou-se em déficit e esse déficit está aumentando com muita rapidez. Não é confortável calcular que volume ele terá até o final de 2008.

As causas são bem conhecidas. Dólar cotado cada vez mais baixo, remessas de lucros para o exterior em nível recorde, subida constante dos investimentos brasileiros no exterior e, mais incômodo que tudo, redução no saldo da balança comercial - o grande fator de tranqüilidade, nestes últimos anos, para as contas externas do país. O Brasil deverá fechar 2008 com exportações próximas de 200 bilhões de dólares, um aumento superior a 20% em relação ao número do ano passado. Mas as importações estão crescendo duas vezes mais depressa e vão bater nos 175 bilhões de dólares até o fim do ano. Resultado: um saldo positivo na casa dos 25 bilhões, ante 40 bilhões em 2007.

Nessa toada, onde a coisa vai estar no ano que vem? Os fatos que influem na piora das transações brasileiras com o exterior se ligam uns com os outros, de modo que agir sobre apenas um deles acaba não sendo, realmente, uma opção. A questão que se coloca, agora, é se - ou quando - o governo começará a aplicar o tratamento necessário para resolver um problema que, aparentemente, só tem uma perspectiva pela frente caso não se faça nada a respeito: ficar maior e pior do que é.

O Brasil nunca teve reservas internacionais tão grandes quanto tem hoje. Nunca exportou tanto. Tem uma economia em ascensão e amplas possibilidades de receber investimentos estrangeiros. Na verdade, tem vivido durante todo este governo sem um problema de balanço de pagamentos - situação inédita na sua história econômica moderna. Ainda está distante, portanto, de uma crise externa. Mas os responsáveis pela economia precisam dar algum sinal claro de que entendem a situação e, sobretudo, que têm uma estratégia para lidar com ela. Quanto mais cedo fizerem isso, melhor.

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