Economia

Lá se foi a simpatia, o algo mais e a alegria

Desmatamento, salários baixos, transgênicos -- o Brasil está na mira da polícia de bons costumes. No campo das palavras, o que se quer com isso é melhorar o mundo. Na prática, servir ao interesse mercantil dos países ricos

EXAME.com (EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 10 de outubro de 2010 às 04h11.

É algo que vai ficando monótono, de tanto que se repete, mas o fato é que pouco do que o Brasil faz hoje em dia, ou se imagina que esteja fazendo, consegue realmente agradar à polícia de bons costumes que fiscaliza, aprova e reprova, a partir do Primeiro Mundo, o comportamento do resto do planeta. A identificação de seus agentes é bem fácil: estão sempre falando em coisas como sustentabilidade, transparência, melhores práticas ou boa governança. Admitem o desenvolvimento econômico de quem ainda não é desenvolvido, desde que seja feito de maneira responsável, madura e civilizada. Recomendam, com severidade, que se preserve quase tudo, de bromélias a costumes indígenas. O crescimento não pode interferir, ou criar suspeitas de que interfere, no clima, na temperatura do mar, nos rios, nas florestas, na fauna e na flora. As leis, horas de trabalho, salários e condições gerais de vida devem ser as mesmas dos países desenvolvidos, ou quase. Reprova-se, de modo enfático, a concentração de renda. O propósito de tudo isso, na esfera das palavras, é promover o bem-estar da humanidade. Na esfera dos fatos é servir ao interesse mercantil dos países ricos.

O Brasil, aí, vai mal. Por mais que faça, nunca está bom, ou é suficiente, para satisfazer as cobranças que são feitas por governos, empresas, ONGs, órgãos de comunicação ou entidades acadêmicas do Primeiro Mundo. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, falando algum tempo atrás a respeito da questão, disse que ninguém pensava em reclamar quando o Brasil era o país do samba etc.; quando começou a ser competidor no mercado internacional, a conversa mudou. É verdade. Desde que deixou de ser apenas a sede mundial da simpatia, do algo mais e da alegria, o Brasil passou a incomodar -- incomodar o bolso, os interesses e o sossego de muita gente boa por este mundo afora. Incomoda pouco, é verdade, pois ainda tem um peso modesto na ordem geral das coisas. Mas incomoda mais do que antes e vai ficando menos modesto do que era -- não se sabe o quanto, exatamente, de uma coisa e de outra, mas o suficiente para chamar as atenções da associação internacional de proteção aos países prósperos. Eis aí o problema formado.

O que estaria errado com o Brasil, nessa ótica? Tudo serve. O Brasil, por exemplo, desperdiça com o plantio de cana-de-açúcar áreas preciosas para o plantio de alimentos; ou desperdiça, com o plantio de alimentos, áreas preciosas de vegetação nativa. Se não é uma coisa nem outra, então é porque utiliza pesticidas demais, produz transgênicos demais, tem agricultura demais. A carne brasileira é um êxito sem precedentes no comércio exterior, mas não é rastreada o suficiente, os bois não são bem tratados o suficiente e os frigoríficos não são fiscalizados o suficiente. Mesmo se isso tudo estivesse em ordem, o rebanho do Brasil é excessivamente grande: onde o mundo vai parar, em matéria de efeito-estufa, se o rebanho continuar crescendo desse jeito? Há trabalho escravo no Brasil, e quando não há trabalho escravo há trabalho infantil. Já os trabalhadores brasileiros que não são escravos ou crianças ganham muito pouco, e estão atrapalhando com seus baixos salários a estabilidade do mercado de trabalho do mundo desenvolvido. O Brasil trata mal as mulheres, as minorias, os índios, os sem-terra, os quilombolas, os deficientes físicos. Os brasileiros não têm a maturidade necessária para cuidar sozinhos da Amazônia. A lista de infrações não acaba mais.

Não faz muita diferença argumentar que o salário mínimo passou, nos últimos cinco anos, de pouco mais de 80 dólares para mais de 240; é pouco, mas é três vezes mais. Também não adianta dizer que, em 508 anos de existência, o Brasil tem na Amazônia apenas 5% de sua população e que nenhum outro país do mundo conseguiu manter uma área de floresta tão grande. Ou, então, que o agronegócio brasileiro tornou-se o que é por ter realizado um extraordinário salto de competência. O que vale, lá fora, é mais aquilo que se diz do que aquilo que acontece. A saída prática, aqui dentro, é continuar cuidando da vida; ficar nervoso não ajuda em nada. É o caso, para tanto, de recorrer ao sistema do presidente Lula, que tem grande experiência e muito sucesso em administrar necessidades que se opõem. Na hora do discurso, fala para agradar à platéia; na hora de tomar as decisões concretas, faz (ou deixa que alguém faça) o que deve ser feito. Até agora tem dado certo.


 Rumo ao traço

A TV Brasil, cuja existência acaba de ser oficializada pelo Congresso com a aprovação da medida provisória que criou a Empresa Brasil de Comunicação, começou do jeito que sempre se soube que começaria: mal. Nada de bom, como se sabe, pode sair de uma idéia ruim, e a nova televisão do governo preenche todos os requisitos, ou quase todos, para dar o grau AAA de ruindade a uma idéia. Nunca ficou explicado, desde o começo da história, por que o governo brasileiro deveria ter uma televisão -- pelo fato básico, e bastante simples, de que não há possibilidade racional de justificar a presença do poder público no controle e na operação de uma empresa de comunicações. Em compensação, sempre esteve perfeitamente claro que a TV Brasil iria gastar uma montanha de dinheiro. As previsões iniciais eram de que seriam 100 milhões de reais no primeiro ano de operação e 150 milhões no segundo; ela já vai começar, neste ano de 2008, com 350 milhões, um mero acréscimo de três vezes e meia sobre o previsto. Sua estréia como entidade legal, na semana passada, não veio por lei, e sim por uma medida provisória, e assim mesmo como resultado de trapaça regimental e voto simbólico.

A TV Brasil está no ar, de maneira mais ou menos informal, desde o dia 2 de dezembro do ano passado. Até hoje praticamente ninguém percebeu isso -- o que serve para dar uma idéia de quanto o público brasileiro estava ansioso, como sustenta o governo, para assistir a uma programação diferente da que existe hoje na praça. A aprovação da medida provisória serve para oficializar a TV oficial, mas não servirá para lhe dar audiência -- a TV Brasil vai continuar no "traço", como diz o Ibope, da mesma forma como sempre viveram no "traço", sem nenhuma exceção até hoje, todas as emissoras dessa espécie já criadas no Brasil. Da mesma forma como ocorreu na questão dos gastos, dá para imaginar o que vai acontecer no item "quadro de pessoal". Será uma completa surpresa se o novo canal não virar um dos mais promissores e duradouros cabides de emprego da República -- duradouro, sim, porque será mais fácil o camelo da Bíblia passar por uma agulha do que os próximos governos, seja qual for sua origem, acabarem com a TV Brasil. Se o governo que suceder o atual continuar com o PT e a "base aliada", não haverá motivo para isso. Se for da oposição, também não -- quem abriria mão, chegando lá, de uma beleza dessas?

O fato é que a TV Brasil, depois de tudo o que foi dito e repetido, não será uma emissora de televisão pública -- será uma emissora de televisão do governo. Vai atender aos interesses de quem manda no governo, dar emprego a seus protegidos e divulgar as notícias da maneira que o Palácio do Planalto entende ser correta. É muito simples. Como resume o jornalista Eugênio Bucci, que dirigiu a estatal Radiobrás de 2003 a 2007, não existe TV pública sem independência, e a TV Brasil não tem independência. Tem um conselho curador, é verdade, mas ele não participa da escolha dos dirigentes da emissora. Está vinculada diretamente à Secretaria de Comunicação Social da Presidência -- esta, sim, é quem nomeia o presidente do conselho de administração, o grupo que efetivamente decide as coisas. Que independência poderá sair disso? Nem haveria como sair, considerando-se que a Secom não faz comunicação pública, e sim comunicação do governo.

A única coisa positiva que se pode dizer até agora a respeito da TV Brasil é que o governo tem força para criar uma repartição pública, mas não para obrigar o público a assistir aos seus programas. Na verdade, por tudo o que se sabe do seu jeito e do seu estilo, vai ser muito difícil pegar o próprio presidente Lula assistindo a algum programa da TV do governo. Nisso, com certeza, estará na companhia de quase todos os demais brasileiros.

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