Dólar americano: como os argentinos estão driblando a inflação (AFP/AFP)
Agência O Globo
Publicado em 8 de agosto de 2022 às 16h14.
Última atualização em 8 de agosto de 2022 às 16h15.
O argentino Eduardo Rabuffetti esteve nos Estados Unidos uma única vez, durante sua lua de mel em Miami, na Flórida, em 1999. No entanto, ele provavelmente conhece uma nota de cem dólares muito melhor que a maioria dos americanos.
Ele afirma conseguir identificar uma nota falsa só de tocar nela. E sabe exatamente como é uma pilha de pequenos maços somando US$ 100 mil. Mais que isso: em diversas ocasiões, Rabufetti já caminhou pelas ruas de Buenos Aires com dezenas de milhares de dólares nos bolsos de sua jaqueta.
Isso ocorre porque ele trabalha como incorporador imobiliário, tendo construído duas torres de escritórios e uma casa na capital argentina. Para isso, comprou os terrenos para cada um dos empreendimentos pagando em notas de US$ 100.
— Aqui, se o dinheiro não é literalmente visto, ninguém assina nada — disse ele. — Após as tantas crises pelas quais já passamos, nos acostumamos a isso.
Rabufetti não é um caso isolado. Quase toda compra de maior valor feita na Argentina — terrenos, casas, carros, obras de arte — é feita na moeda americana.
Para fazer economias, os argentinos vão guardando maços de dólares nos bolsos de roupas, embaixo do assoalho de casa e em cofres ultra-seguros.
Os argentinos detêm tantos dólares americanos — talvez mais do que qualquer outro lugar fora dos EUA, segundo especialistas — que, em alguns casos, acabam jogando algumas notas fora por engano. No mês passado, foram encontradas dezenas de milhares de dólares em um lixão.
O banco central do país estima que os domicílios e as empresas não financeiras do país detenham mais de US$ 230 bilhões em ativos financeiros estrangeiros, principalmente em dólar americano. A maior parte desse dinheiro está em contas bancárias internacionais, mas há uma porção em cofres e esconderijos espalhados por todo o país.
Essa predileção pela moeda americana vem do fato de o valor do peso estar derretendo. Há um ano, US$ 1 era comprado por 180 pesos no mercado negro. Agora são 298 pesos. Com a moeda argentina em colapso, os preços não param de subir. Economistas estimam que a inflação no país, que já está em 64% ao ano, poderá chegar a 90% até dezembro.
A crise econômica atual é uma das piores enfrentadas pelo país em décadas. E mostra que, num cenário em que países de todo o mundo se esforçam para controlar a alta de preços, é possível que não exista uma grande economia que entenda como viver em meio à inflação melhor que a Argentina.
O país vem lutando com a acelerada escalada de preços pelo menos ao longo dos últimos 50 anos. Num período caótico no fim dos anos 1980, por exemplo, a inflação bateu em inacreditáveis 3.000%, fazendo com que os argentinos corressem para comprar alimentos antes que os supermercados remarcassem os preços. Agora, a inflação agora está de volta, ultrapassando 30% ao ano desde 2018.
Para entender a estratégia dos argentinos para lidar com a inflação, a equipe do NYT passou duas semanas em Buenos Aires, ouvindo economistas, políticos, produtores, agentes imobiliários e trabalhadores como barbeiros, motoristas de táxi e artistas de rua, além de desempregados.
A estratégia passa por gastar os pesos o mais rápido possível assim que recebidos. Os argentinos compram tudo parcelado. Eles não confiam nos bancos e dificilmente usam crédito. Depois de tanto tempo com constante alta de preços, já não fazem ideia de quanto as coisas deveriam custar.
O publicitário Ignacio Jauand, de 34 anos, compra tudo o que pode com parcelamento, incluindo sua cama, roupas, um PlayStation 5 e até mesmo um descascador de batatas.
Não é que ele não tenha dinheiro para bancar essas compras. Mas aposta que o valor do peso vai cair, reduzindo de forma significativa o custo final do produto. A estratégia, diz ele, sempre funcionou.
— O último parcelamento que paguei pela TV ou a geladeira custou o equivalente a dois ou três combos do McDonald’s — destacou ele. — Comprar coisas é uma forma de vencer a inflação.
A situação se mantém razoavelmente sob controle. Os salários para grande parte dos empregos sobem perto de 50% ao ano. Locatários podem reajustar os alugueis cobrados em taxas similares. E milhões de argentinos usam o mercado negro para fugir a restrições impostas pelo governo para comprar dólares americanos.
O resultado disso é que nas áreas mais ricas de Buenos Aires, o setor imobiliário segue avançando em ritmo acelerado e bares e restaurantes estão lotados. Para se ter uma ideia, a próxima janela para fazer uma reseva de jantar para dois no Anchoita, um dos resturantes mais badalados da capital argentina no momento, é em janeiro.
Nas regiões mais pobres, por outro lado, as pessoas catam papelão para vender, juntam dinheiro para comprarem comida de forma coletiva e trocam mercadorias usadas para evitarem o uso do peso. É uma camada da população que não tem rendimento reajustado automaticamente e que, certamente, não têm rendimento extra para comprar dólares.
Isso significa que aos mais pobres resta trabalhar por poucos pesos enquanto tudo vai ficando cada vez mais caro. Cerca de 37% dos argentinos vivem na pobreza atualmente, um salto na comparação com a taxa de 30% registrada em 2016.
No último dia 2 de julho, o ministro da Economia argentino renunciou ao cargo. Nos últimos 26 dias, o pelo se desvalorizou em 26%. O presidente Alberto Fernandez reestruturou seu gabinete, levando à saída da nova ministra, Silvina Batakis. Foi a 21ª vez em que alguém ficou menos de dois meses nessa posição.
A crise da Argentina com a hiperinflação está ligada aos mesmos fatores que elevaram os preços em todo o mundo, incluindo a guerra na Ucrânia, restrições na cadeia de suprimentos e grandes aumentos nos gastos públicos.
Economistas, porém, acreditam que a inflação argentina se retroalimenta. Em resumo, o país gasta muito mais do que tem em receita para para bancar os serviços de saúde, educação, energia e transporte público. Para compensar essa lacuna, emite mais pesos.
O Fundo Monetário Internacional (FMI), com quem a Argentina tem uma dívida de US$ 44 bilhões, pediu ao governo para reduzir o déficit público e aprovar rígidas políticas monetárias. Na última semana, o novo ministro Sergio Massa deu um dos mais importantes passos em anos nesse sentido: se comprometeu em suspender a impressão de nova moeda para financiar gastos públicos.
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Os preços estão oscilando tanto que nas últimas semanas diversas companhias suspenderam vendas esperando que venha alguma estabilidade, fazendo com que alguns itens comecem a faltar no mercado, a exemplo de óleo de cozinha e peças da indústria automobilística. Alguns produtores também estão retendo trigo e soja, apostando no aumento dos preços — e derrubando benefícios econômicos que o boom de commodities poderia trazer a um exportador como a Argentina.
Em uma pequena loja no Centro de Buenos Aires, Noelia Mendoza vendia seu último estoque de papel higiênico. Seus fornecedores informaram que o produto estava esgotado, então ela teve de subir os preços. Um pacote com quatro rolos agora custa 290 pesos, o equivalente a US$ 1, alta de 50% na comparação com um mês antes.
— Vai haver escassez — disse ela.
(Agência O Globo)