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Acreditar no governo é coisa de principiante

Na maioria dos países minimamente sérios, ordens de presidentes são seguidas à risca. Não é o caso, claro, do Brasil, como se viu no episódio do pacote tributário de janeiro. Por aqui, qualquer pessoa com um pingo de experiência já aprendeu a ignorar os c

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Da Redação

Publicado em 10 de outubro de 2010 às 04h11.

O Brasil continua mostrando, cada vez mais, que não é mesmo um país para principiantes. Na maioria das nações com um grau razoável de organização, faz parte das regras do jogo acreditar no que o governo diz em público, sobretudo quando quem diz é o presidente da República. Não no Brasil, e menos ainda no Brasil de hoje. Nada mais arriscado, aqui, do que tomar ao pé da letra o que se ouve nas declarações oficiais. É um problema. No jogo do bicho, vale o que está escrito. No mundo da política brasileira, não vale o que está falado -- e, muitas vezes, nem o que está escrito. O governo pode não fazer o que diz, fazer o que não disse ou, então, fazer o contrário do que havia dito, como acaba de acontecer com o aumento do imposto sobre operações financeiras (IOF) e da contribuição social sobre o lucro líquido (CSLL) dos bancos. Não existe, para o público, uma defesa realmente eficaz contra isso. Os principiantes ficam no papel de bobo, por acreditarem na mentira que ouviram. Os mais experientes podem não ter acreditado, mas, tanto quanto os outros, ficam sem saber o que está acontecendo.

É disso, no fim das contas, que se trata: a palavra do presidente da República deixou de ter valor como informação segura. Ao longo dos seus cinco anos de governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou realizações que não realizou, fez promessas que não cumpriu e divulgou providências que não providenciaram nada. Elogiou até o último minuto ministros que logo em seguida foram mandados embora e dá ordens que são ignoradas pelos subordinados. No caso do último aumento de impostos, Lula veio com uma variante mais avançada desse comportamento: prestou uma desinformação em estado puro. Poucos dias antes do fim do ano, ao comentar as opções do governo após a extinção da CPMF, afirmou que "ninguém" faria a "loucura" de aumentar a carga tributária. Qual é a única conclusão que um cidadão normal pode tirar dessas palavras? Que o governo não iria aumentar impostos para compensar a perda da CPMF. Conclusão de principiante, é claro, como rapidamente se viu. Logo no primeiro dia útil do ano, o governo fez exatamente o oposto do que Lula havia dito: aumentou o imposto para milhões de pessoas que pagam alguma importância no crediário e um dos impostos que incidem sobre o lucro dos bancos.

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Consumado o aumento, o mundo oficial não fez maiores esforços para explicar a quebra da promessa. Ficou, vagamente, na alegação de que o presidente Lula não chegou a dizer, letra por letra, que não haveria aumento de impostos. Disse, sim, que fazer isso seria uma "loucura"; mas não garantiu expressamente que a loucura não seria feita. Ou, então, tentou-se apresen tar o compromisso presidencial como um produto perecível, e com prazo de validade extremamente curto. Foi o que fez o ministro da Fazenda, Guido Mantega. O ministro Mantega, que parece ter desenvolvido um talento realmente especial para soar ofensivo cada vez que vem a público explicar alguma medida do governo, disse que a promessa de Lula só valia para aqueles últimos dias que ainda sobravam em 2007; não valia mais a partir de 1o de janeiro de 2008 e, assim sendo, não havia nada a reclamar. Com argumentos dessa qualidade, sempre será possível alegar que, de um ponto de vista estritamente técnico, não houve mentira. Mas, sendo assim, o que houve foi uma decisão clara de ocultar a verdade -- algo tão parecido com mentir que não dá, realmente, para dizer qual a diferença prática entre uma coisa e outra.


Como o governo raramente perde uma oportunidade de piorar o que já está ruim, o aumento de impostos foi embalado na fantasia de que "os bancos" pagariam a conta. Como assim, "os bancos"? Eles não têm rigorosamente nada a ver com o IOF, um imposto que é pago direta, única e exclusivamente pelo cidadão ou empresa que compram alguma coisa a prazo ou assumem qualquer tipo de dívida com uma instituição financeira. Quanto à CSLL, os bancos não precisaram mais do que 10 minutos para descobrir como o aumento do imposto será incluído, e pago pelos clientes, no custo geral das operações de crédito. É algo que deverá ficar perfeitamente claro quando se constatar, nos balanços de 2008, que os bancos não terão perdido um real de lucro nessa história toda.

Para o presidente Lula, de qualquer jeito, o assunto está mais do que encerrado -- tanto que ele já partiu para promessas novas em folha. A área escolhida foi a da energia elétrica. "Não me venham com cortes para os consumidores", determinou o presidente a seus ministros; ele diz que não vai aceitar, simplesmente, que haja racionamento. Acredite quem quiser.

Porteira aberta

Depois de nove meses de procura, o governo finalmente descobriu que, entre os 190 milhões de brasileiros atualmente vivos, o mais indicado para chefiar o Ministério de Minas e Energia é o senador maranhense Edison Lobão. Ninguém diria isso conhecendo um pouco de minas, de energia e da obra do senador, mas aí está: é ele mesmo o novo ministro. Oficialmente, o governo não encontrou, dentro dos limites do território nacional, após todo esse extraordinário tempo de busca, nenhum outro cidadão mais capacitado do que ele para exercer o cargo. Se tivesse encontrado esse nome, por que faria a escolha que acabou fazendo? Ficamos todos informados, assim, que o senador Lobão, jornalista em suas origens e político profissional desde 1979, atividade na qual já está em seu quinto partido -- o atual é o PMDB --, é quem o presidente da República e seus auxiliares mais íntimos consideram o gestor público ideal para a área de energia no Brasil.


O problema nisso tudo é um só: na vida real o senador Edison Lobão não é o gestor público ideal para a área de energia no Brasil. Por mais virtudes que tenha, não tem, segundo a lógica comum, a virtude essencial para ocupar o cargo que recebeu -- conhecimento do setor colocado sob a sua responsabilidade. Se tiver de responder a dez perguntas sobre energia, o senador Lobão corre o risco de não acertar nenhuma; o máximo que prometeu ao público em geral, em matéria de qualificação para o cargo, é que iria "ler" alguma coisa sobre o assunto. Naturalmente, tanto ele como seu partido e o próprio governo disseram que o conhecimento da área não tem importância nenhuma. Afinal, deverão permanecer em postos-chave do Ministério de Minas e Energia técnicos que, supostamente, farão um contrapeso à ausência de talentos profissionais do novo ministro. Mas, do ponto de vista do interesse público, ministros e seus principais assessores não estão lá para brigar, negociar entre si quem manda no quê ou vigiar uns aos outros; estão lá para fazer o que é certo. Além do mais, o ministério ficou nove meses sem titular e ninguém notou a mínima diferença. Para que, então, nomear um ministro que não tem capacitação técnica para melhorar nada? Seria mais prático, e mais barato, deixar como está.

A verdade é que a nomeação do senador Lobão não tem nada a ver com o dever governamental de prover a melhor administração possível para o setor. Tem a ver, apenas, com a decisão de atender aos interesses particulares dos chefes de um partido, o PMDB, em troca de seu apoio político. O que realmente interessa, aí, não é a questão pública da energia. O que interessa são contratos com fornecedores, empregos para amigos e aliados, aquisição de influência política e negócios em geral. É a prática aberta, mais uma vez, da privatização do Estado, em que blocos inteiros da função pública são transformados em propriedade privada de chefes partidários, como sociedades comerciais por cotas; fala-se, sem a menor cerimônia, em "porteira aberta" e "porteira fechada", como se um ministério da República fosse uma fazenda colocada à venda no interior do Brasil. É, também, uma das provas mais clássicas do subdesenvolvimento de um país, como a circulação de moscas e o câmbio negro do dólar.

A privatização do Estado brasileiro não começou com Lula e o PT. Mas de Lula e do PT, que passaram 20 anos fazendo sua denúncia, e prometendo preencher os cargos públicos com os mais qualificados, esperava-se pelo menos algum esforço contra essa calamidade. Assim que chegaram ao governo, entregaram-se a ela com um entusiasmo capaz de fazer inveja a qualquer dos seus antecessores. Explica-se. O presidente Lula, num momento de franqueza, já disse que "principismo" é coisa que se tem na oposição; quando se assume o governo, revelou ele, a história é outra. Nada melhor que a escolha do novo ministro para confirmar isso.

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