Economia

A escravidão está mais próxima do que você imagina

A escravidão nunca foi tão lucrativa e permeia toda economia global, alerta um dos maiores especialistas no assunto em entrevista para EXAME.com

Há 21 milhões de escravos no mundo, segundo a Organização Mundial do Trabalho (Janduari Simões/Reprodução)

Há 21 milhões de escravos no mundo, segundo a Organização Mundial do Trabalho (Janduari Simões/Reprodução)

João Pedro Caleiro

João Pedro Caleiro

Publicado em 10 de agosto de 2017 às 06h00.

Última atualização em 10 de agosto de 2017 às 10h36.

São Paulo – A escravidão não é coisa do passado e de países pobres, e pior: nunca foi tão lucrativa.

O alerta vem do advogado, autor e ativista Siddharth Kara, um dos principais especialistas do mundo em tráfico de pessoas e escravidão, temas que estuda e leciona na Universidade de Harvard.

"Nenhum país é imune e somos todos cúmplices. A escravidão permeia a economia global mais do que em qualquer momento do passado", diz ele para EXAME.com.

Americano com raízes indianas, Kara já publicou dois livros sobre escravidão. O terceiro sai em outubro e traz o que ele define como "o mais abrangente e detalhado modelo econômico" do problema.

A estimativa é que a indústria da escravidão gere lucros de até 150 bilhões de dólares por ano. Há 21 milhões de escravos no mundo, segundo a Organização Internacional do Trabalho.

Nos últimos 17 anos, Kara entrevistou mais de 5 mil pessoas que estão ou estiveram nestas condições em mais de 50 países.

Seus planos de vir ao Brasil não deram certo, mas ele diz estar ciente do histórico do país com o assunto e de suas “iniciativas inovadoras” para combatê-lo.

Kara diz que o processo de criar laços locais para encontrar os focos de escravidão é longo, arriscado e muitas vezes infrutífero, além de exigir cuidado extra para não colocar as próprias vítimas em risco.

O autor também escreveu e produziu um filme de ficção com Ashley Judd chamado “Trafficked” e que estreia em novembro. Veja sua entrevista para EXAME.com:

Siddhart Kara, especialista em escravidão moderna

EXAME.com – É possível apresentar uma imagem do que é a escravidão moderna, em contraste com a escravidão que conhecemos de outros séculos?

Siddhart Kara – Claro que não é mais permitido em nenhum lugar do mundo ter a posse de um ser humano. Mas ainda há dezenas de milhões de pessoas tratadas como propriedade e exploradas por lucro.

A escravidão continua porque os exploradores conseguem gerar lucros enormes com um risco muito pequeno explorando uma subclasse altamente vulnerável de seres humanos marginalizados, empobrecidos e quase inteiramente ignorados pela sociedade dominante.

Escravos não são só um tipo de pessoa de uma região. Há centenas de milhões de pessoas que se encaixam nos critérios principais de vulnerabilidade.

A maior parte dos escravos é muito pobre e tende a ser parte de uma minoria ou casta étnica. As mulheres estão em posição desfavorável para escravização, especialmente para prostituição forçada, claro.

Eles podem ser analfabetos, podem sofrer marginalização econômica em seus países de origem e podem ser imigrantes forçados em deslocamento por causa de alguma catástrofe ambiental, militar ou outra.

Eles talvez nem existam aos olhos do Estado por pertencerem a alguma minoria oprimida que não é registrada no nascimento.

E daí existe a realidade estrutural como corrupção e falta de lei que colocam essas pessoas à mercê de recrutadores ou traficantes. E por que isso continua acontecendo mesmo sendo ilegal?

Pelo fator relacionado à demanda por mercados de trabalho exploradores e sem regulação. Tem a ver com aumentar o lucro e ser competitivo em preço encontrando o trabalho mais barato possível no contexto de uma economia global.

Em que locais do mundo e setores da economia o problema é maior?

Escravos podem ser encontrados em quase qualquer país do mundo, mas claro que alguns têm muito mais que outros: sem dúvida Sul e Sudeste da Ásia, por causa dos imensos níveis de pobreza e marginalização.

Mas você também poderá achar nos Estados Unidos, Alemanha, Austrália, qualquer país desenvolvido. Nenhum país é imune e os cidadãos também estão conectados, somos todos cúmplices.

A escravidão permeia a economia global mais do que em qualquer momento do passado e de uma forma que nunca aconteceu antes.

A maior parte das pessoas no Ocidente participa de alguma forma no sistema econômico que a promove e perpetua, sabendo ou não, comprando as coisas produzidas de forma barata por escravos: nossas roupas, eletrônicos, comida, móveis, etc.

Como é possível combater esse problema?

O livro detalha uma iniciativa de 10 pontos para (quase) erradicar a escravidão. Não há uma solução única porque diferentes forças atuam em diferentes lugares e setores: as que promovem prostituição forçada são bem diferentes da que promovem escravidão na agricultura, por exemplo.

Atualmente o negócio da escravidão tem baixo risco e altos lucros, então tornar esse um negócio mais arriscado e custoso é o que terá mais impacto no curto prazo.

Isso significa criar um sistema mais rigoroso de aplicação de lei e penalidades em empresas que tem escravos na sua cadeia de fornecimento, e em exploradores da prostituição forçada, e por aí vai.

O livro afirma que a escravidão é hoje mais lucrativa do que em qualquer outro ponto na história humana. Como foi feito esse cálculo?

A tendência geral é essa, ainda que um escravo explorado na agricultura no Nepal seja mais ou menos tão lucrativo quanto um escravo na agricultura no Nepal há 3 séculos atrás. São outros setores que aumentaram a lucratividade, em particular a prostituição forçada.

Outro fator é a queda do preço por causa da velocidade e a acessibilidade do transporte. Adquirir e mover alguém para o local de exploração já não requer semanas no mar e a morte de 25% dos escravos no caminho.

O custo deste processo caiu pelo menos 90% nos últimos dois séculos, então por definição é mais lucrativo. Você recupera isso muito rápido na construção, mineração, fabricação de têxteis ou prostituição, e depois já está gerando lucros.

Para comparar, peguei dados disponíveis sobre escravos de dois séculos atrás em várias regiões para criar médias globais. Naquela época um escravo traficado da África para a América poderia ser vendido por 5, 10 ou 20 mil dólares (valor atual) dependendo da idade, saúde, etc.

Pessoas nascidas na escravidão ou vendidos como crianças no Oriente Médio ou em partes da África valiam poucos dólares há alguns séculos. Há registros no Sul da Ásia de crianças vendidas por um copo de chá. A variação de preço é muito alta hoje e no passado, mas as médias caíram.

A crise dos refugiados significa que há mais pessoas vulneráveis à escravidão?

Sem dúvida. Quando você tem grandes eventos de stress e ondas de migração em massa, traficantes e contrabandistas de pessoas entram em cena com uma atitude predatória.

Normalmente você adquire uma pessoa vulnerável do ponto A e a movimenta, absorvendo o custo e risco, para um ponto B onde podem ser explorados.

Em momentos de crise migratória, esse custo ou risco já foi absorvido total ou parcialmente pelo próprio indivíduo, então é ainda mais atraente para o traficante entrar em cena para completar a jornada ou recrutar a pessoa e a escravizar.

Porque elas são vulneráveis, não tem para onde ir, não tem direitos como refugiados, ou não podem trabalhar.

Com furacões, terremotos ou guerras, os primeiros socorristas são quase sempre traficantes de pessoas e não as Nações Unidas, a Cruz Vermelha ou a Otan. Eles vêm muito depois.

O aperto das políticas contra imigrantes também não os torna vulneráveis?

É complicado. Não acho que exista uma resposta clara de como moldar uma política de imigração de forma a combater o tráfico humano.

Se você torna mais difícil e custoso para as pessoas imigrarem, você as empurra para contrabandistas que prometem fazer isso acontecer por um preço, e sabemos qual será o resultado de muitas dessas jornadas. É óbvio e acontece toda hora.

Mas se você abre as fronteiras (como no caso da União Europeia, ou Índia e Nepal), isso é bom para os imigrantes se moverem, mas cria um cenário que os traficantes também podem explorar para movimentar as pessoas mais facilmente.

É desafiador. Acredito em tornar a imigração mais fácil, mas recorrer a mecanismos para garantir a segurança deles de forma mais efetiva.

Legalizar a prostituição seria positivo ou negativo para combater o tráfico sexual?

O argumento teórico é que legalizando a prostituição e a deixando às claras, isso coloca proteções para que nenhuma mulher ou criança seja explorada. Soa bem, faz sentido. Mas eu nunca de fato vi isso acontecer desse jeito no mundo real quando um país ou território tentou.

Eles nunca conseguem de fato regular e executar adequadamente, por qualquer razão: a vontade política ou os recursos não estão lá, ou alguém está no bolso do crime organizado. Nunca funciona daquele jeito - talvez poderia, mas nunca vi, e pesquisei muito.

O que você acaba tendo é uma aparência legal por trás da qual acontecem níveis mais altos de tráfico, escravidão sexual e exploração. Já que é declaradamente legal, você não precisa fazer perguntas, "todo mundo está aqui por escolha", e por trás de uma ou duas portas há mulheres sendo forçadas e traficadas.

Minha abordagem se alinha com o chamado “modelo nórdico”, iniciado pela Suécia em 1999 e hoje adotado por muitos países, como França e Irlanda. Você tira a penalidade da mulher, que pode ter sido traficada ou coagida, e coloca ela no homem que está fazendo a compra.

Você criminaliza a aquisição da mulher ou criança por sexo e cria penalidades para a demanda, sem a qual não há porque fazer o tráfico.

E ao mesmo tempo você descriminaliza a venda, porque quando a prostituição é ilegal, mulheres e crianças acabam sendo presas por descumprirem estas leis – mesmo que tenham sido traficadas, pois ninguém nem pergunta se forem, e isso acaba gerando novas rodadas de violações.

Como foi sua transição de banqueiro para pesquisador e ativista?

Tenho formação em Finanças e Direito. Eu era um banqueiro de investimentos em Nova York e refletia em como contribuir para o mundo ao invés de só ganhar muito dinheiro. Fiz uma virada brusca de rumo e quis me envolver com direitos humanos.

Em 2000, passei 5 meses tentando fazer pesquisa na Ásia e Europa Ocidental e aquilo mudou minha vida. Vi, documentei e aprendi coisas que me tiraram o chão e percebi que talvez eu pudesse fazer uma contribuição, e ao longo dos anos espero ter feito.

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