Ciência

Vacina da AstraZeneca e Oxford enfrenta agora outro inimigo: a desconfiança

Parte da população -- e até dos médicos -- tem visto a vacina como um imunizante de segunda classe, apesar das evidências sobre a proteção contra casos graves e internações

Aplicação da vacina da AstraZeneca-Oxford: problemas na divulgação dos dados eficácia geraram desconfiança, apesar das evidências a favor da vacina (Gerardo Vieyra/NurPhoto/Getty Images)

Aplicação da vacina da AstraZeneca-Oxford: problemas na divulgação dos dados eficácia geraram desconfiança, apesar das evidências a favor da vacina (Gerardo Vieyra/NurPhoto/Getty Images)

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Filipe Serrano

Publicado em 27 de fevereiro de 2021 às 08h22.

Última atualização em 28 de fevereiro de 2021 às 12h50.

Dezenas de milhões de pessoas em todo o mundo estão tentando desesperadamente colocar as mãos em uma vacina contra o coronavírus que pode salvar suas vidas. Mas um irritado grupo de médicos do setor privado na Itália está apelando ao ministério da saúde do país para evitar ter que tomar a vacina contra a covid-19 que lhes foi oferecida: a AstraZeneca, pois acreditam ser menos eficaz.

Essa objeção mostra a crescente reação na Europa contra a vacina desenvolvida em conjunto pela AstraZeneca e pela Universidade de Oxford. Profissionais que trabalham no sistema de saúde do setor público da Itália receberam vacinas Pfizer e Moderna – ambas demonstraram ser mais de 90% eficazes – e os médicos do setor privado estão indignados por receberem o que, em sua opinião, é uma vacina de segunda classe. “Não estamos agindo como crianças mimadas”, diz Paolo Mezzana, cirurgião plástico, porta-voz de um grupo de cerca de 3.500 especialistas particulares. “Não somos contra a AstraZeneca propriamente dita, mas sabemos que a vacina deles leva mais tempo para obter uma imunização completa. Não somos médicos de segunda classe."

A rejeição pela vacina na Europa é o mais recente de uma série de problemas para a AstraZeneca. Depois de uma acirrada disputa pública entre a empresa e a União Europeia sobre a escassez de oferta em janeiro, que levou os reguladores a apertarem os controles sobre as exportações para fora do continente, o bloco agora enfrenta questões sobre a aceitação do consumidor para com as doses que possui. Após um estudo que mostra que a eficácia foi consideravelmente reduzida contra uma variante identificada pela primeira vez na África do Sul, o lançamento da vacina da AstraZeneca foi temporariamente interrompido. A falta de dados sobre sua eficácia em adultos mais velhos e questões sobre intervalos ideais de dosagem não ajudaram.

A visão da vacina como um produto inferior é particularmente problemática dada a sua importância para os esforços globais de imunização. O CEO da AstraZeneca, Pascal Soriot, disse que a empresa planeja disponibilizar até 3 bilhões de doses da vacina no decorrer deste ano. Ao contrário das vacinas de RNA mensageiro da Moderna e Pfizer e de seu parceiro alemão BioNTech, que devem ser transportadas e armazenadas em temperaturas congelantes, a vacina da AstraZeneca-Oxford só precisa ser refrigerada – o que facilita a distribuição em áreas menos desenvolvidas.

A AstraZeneca também oferece o produto sem lucro durante a pandemia e para países de baixa e média renda para sempre, tornando-o uma das vacinas mais acessíveis. “Uma combinação de erros e má sorte, agravada por alguma superficial cobertura da mídia e comentários de políticos mais velhos, minou a confiança nesta vacina”, disse Martin McKee, professor de saúde pública europeia na Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres. “Uma vez que a confiança se perde, mesmo que injustificadamente, é muito difícil restaurá-la.”

A eficácia da vacina da AstraZeneca-Oxford

Desde que AstraZeneca e Oxford anunciaram seus primeiros resultados no ano passado, os dados sobre a eficácia da vacina na prevenção da infecção sintomática variaram de 60% a 90% por causa das diferentes quantidades de dosagem e protocolos nos ensaios. Uma análise publicada em fevereiro descobriu que a vacina era 81% eficaz com um intervalo de três meses entre as duas vacinas. Mas a Agência Europeia de Medicamentos estima a eficácia em 60%, com base nos dados do ensaio que usou para aprová-lo.

Embora a vacina tenha sido aprovada para todos os adultos pela Agência Europeia de Medicamentos (EMA) em janeiro, pelo menos 10 países da UE não a liberaram para uso em pessoas com mais de 65 anos devido à falta de dados estatísticos para essa população. O presidente francês, Emmanuel Macron, disse que a injeção seria "quase ineficaz" para pessoas dessa faixa etária.

Respondendo à falta de confiança europeia, o ministro da Saúde alemão, Jens Spahn, disse em 20 de fevereiro que as pessoas que receberem a vacina da AstraZeneca poderão receber uma dose diferente mais tarde, se houver suprimentos na quantidade suficiente. Em 22 de fevereiro, apenas 13% das quase 1,5 milhão de doses da AstraZeneca entregues à Alemanha haviam sido administradas, em parte devido as dúvidas quanto à vacina.

Os dados dos Estados Unidos dos ensaios com cerca de 30.000 pessoas esperados nas próximas semanas podem responder a algumas das perguntas em torno da vacina. Cerca de 24% dos participantes têm mais de 65 anos, o que deve fornecer informações suficientes sobre a proteção que oferece aos idosos. Mesmo assim, os testes foram conduzidos em um regime de dosagem de quatro semanas, menor do que o intervalo de 12 semanas que os desenvolvedores dizem ser o ideal. Uma decisão da agência reguladora de medicamentos FDA sobre a autorização está sendo esperada já para abril.

Testes interrompidos

As críticas começaram em setembro, quando testes globais com a vacina foram interrompidos depois que um voluntário do Reino Unido apresentou sintomas neurológicos inexplicáveis. O estudo britânico foi retomado menos de uma semana depois, mas a pausa se estendeu por quase sete semanas nos EUA. Embora tais eventos sejam comuns em períodos de testes, os desenvolvedores foram acusados de falta de transparência na fragmentada divulgação de informações.

Em novembro, quando os parceiros relataram os dados iniciais da vacina, houve ainda mais confusão. Por causa de um erro de fabricação, um grupo de participantes recebeu uma primeira dose mais baixa, que produziu uma leitura de eficácia de 90%, em comparação com 62% para aqueles que receberam duas doses padrão. AstraZeneca e Oxford disseram que isso produziu uma eficácia média de 70%.

Planos para realizar ensaios adicionais para esclarecer esse número foram posteriormente retirados após uma análise mais aprofundada sugerir que a discrepância poderia ter mais a ver com o intervalo de dosagem do que com a quantidade. Em janeiro, Soriot disse que a empresa realizaria um estudo global sobre o intervalo ideal. Uma semana depois, o executivo da AstraZeneca, Mene Pangalos, disse que a farmacêutica provavelmente não faria o estudo. Dados do mundo real de regiões como o Reino Unido, que recomendou um intervalo de dosagem de 4 a 12 semanas, provavelmente fornecerão respostas mais rapidamente do que a conclusão de novos testes.

Um porta-voz da AstraZeneca ressaltou a análise publicada em fevereiro, que mostrou que a vacina é mais de 70% eficaz após uma dose e mais de 80% após duas, usando-se um intervalo de dosagem de três meses.

Proteção eficaz

Apesar da falta de clareza, uma estatística importante continua alta: o nível de proteção da vacina AstraZeneca contra doenças graves, hospitalização e morte. Dados coletados de centenas de milhares de pessoas vacinadas na Escócia na semana de 22 de fevereiro mostraram que a vacina reduziu a hospitalização em 94%.

A eficácia da vacina "não foi transmitida com clareza, com números diferentes relacionados a programações diferentes, intervalos diferentes", disse David Salisbury, ex-diretor de imunização do departamento de saúde do Reino Unido. Mas “a conclusão que precisa ser reforçada é que os destinatários da vacina AstraZeneca estão salvos dessa doença grave e morte, e esse é o aspecto mais importante”.

A ameaça de variantes do vírus afetou ainda mais a vacina. A Oxford disse em fevereiro que a vacina oferece tanta proteção contra a infecção sintomática como contra uma variante identificada inicialmente no Reino Unido, quanto contra a cepa original. Mas os dados da filial sul-africana do estudo de Oxford mostraram que a injeção apresentava apenas 22% de eficácia contra doenças leves e moderadas da variante dominante naquele país.

Não há dados sobre se a vacina oferece proteção contra manifestações graves dessa variante. Um dos principais assessores do governo sul-africano propôs na semana de 15 de fevereiro que o país aplicasse doses a 100.000 pessoas como uma forma de determinar se ela se mostra eficaz para conter a hospitalização.

Apesar de todos os contratempos, a vacina da AstraZeneca-Oxford deve desempenhar um valioso papel em todo o mundo, diz Anna Bezruki, pesquisadora do Centro de Saúde Global do Instituto de Graduação de Estudos Internacionais e de Desenvolvimento em Genebra. “Não temos muitas ferramentas no momento”, diz ela. “Isso não só pode salvar vidas, mas também reduzir a pressão sobre os sistemas de saúde”.

* Tradução de Anna Maria Della Luche

 

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