USP avança em pesquisa e vacina em spray da covid-19 pode chegar em 2021
Desenvolvida na USP, a vacina é mais fácil de ser aplicada, tem custo menor e pode impedir que o Brasil se torne dependente de empresas estrangeiras
Rodrigo Loureiro
Publicado em 14 de agosto de 2020 às 10h23.
Última atualização em 17 de agosto de 2020 às 15h08.
Um grupo de pesquisa da Faculdade de Medicina e Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP) está animado com o avanço do desenvolvimento de uma vacina brasileira em formato de spray nasal para imunizar as pessoas contra o novo coronavírus . Nos últimos testes, os resultados da fórmula da desenvolvida pela USP em parceria com o Instituto do Coração (InCor) foram positivos. Se tudo correr como planejado, a vacina pode estar disponível já em 2021.
O diferencial da terapia de imunização brasileira em relação a outras vacinas que estão sendo criadas no mundo, como a desenvolvida na Universidade de Oxford, no Reino Unido, ou a produzida pelo laboratório chinês Sinovac, é que a vacina nacional não será aplicada em forma de injeção. Em vez disso, será administrada com o uso de um spray posicionado no interior das narinas. A ideia é permitir uma ação mais rápida do composto imunológico.
“A vacina aplicada por um spray nasal permite a criação dois tipos de anticorpos e não somente aquele criado quando a vacina é administrada por injeção”, explica Marco Antonio Stephano, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP e responsável pelo projeto, em entrevista para a EXAME. Segundo o especialista, a aplicação intranasal permite que a vacina chegue nas vias aéreas superiores e nos pulmões, o que faz com que o sistema imunológico atue já no começo da infecção.
Quando estiver pronta, o que pode acontecer no segundo semestre de 2021, a vacina deverá ser administrada em quatro doses (duas em cada narina) com um intervalo de alguns dias entre as aplicações. Isso permite que o composto de nanopartículas possa permanecer tempo suficiente no organismo do paciente, ao ser acoplado na mucosa nasal, para fortalecer o sistema imunológico no combate ao vírus SARS-CoV-2.
Por enquanto, a vacina brasileira ainda está na fase de testagem pré-clínica. Isso significa que os testes das fases 1 e 2 ainda não começaram. A primeira fase de avaliações clínicas deve ser iniciada até o fim de novembro. Se ocorrer como planejado, a segunda fase seria iniciada entre os meses de janeiro e fevereiro de 2021. A terceira fase viria em seguida. É nesta etapa, quando a vacina é aplicada em milhares de pessoas, que muitos projetos naufragam.
Num cenário otimista, em que a vacina possa ser aprovada em todos os testes clínicos necessários e receba o parecer positivo dos órgãos de saúde, os pesquisadores esperam que a terapia de imunização desenvolvida no Brasil possa estar pronta em junho do ano que vem. Dessa forma, o spray nasal contra a covid-19 só chegaria para a população após as vacinas injetáveis, que podem ser disponibilizadas no mercado brasileiro já em dezembro.
“O desenvolvimento é um pouco mais lento do que a vacina injetável porque até hoje existem poucas vacinas aplicadas em forma de spray nasal”, diz Stephano. O pesquisador se refere principalmente à FluMist Quadrivalent, vacina produzida pela farmacêutica anglo-sueca AstraZeneca – que é parceira da Universidade de Oxford na produção de um soro contra a covid-19. A FluMist é aplicada por spray nasal e protege contra o vírus influenza.
Vale lembrar que a vacina em formato de spray também foi utilizada para a imunização do vírus H1N1, nos Estados Unidos. Foi em 2009, durante o surto de gripe suína. Na ocasião, o soro foi produzido pela MedImmune, uma unidade da AstraZeneca.
Já as vacinas que estão sendo desenvolvidas para serem injetadas por seringas e que estão na terceira fase de testes ou que até já têm previsão para serem disponibilizadas, como no caso da vacina russa, o processo de formulação é mais simples. A de Oxford, por exemplo, utiliza como base a criação de imunizantes contra a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) e a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS).
Independência e economia em spray
Há vantagens no uso do spray nasal na administração de imunizantes. “As reações adversas são bem menores do que em vacinas injetáveis”, diz Stephano. Segundo o pesquisador, a reação mais grave que pode ser obtida com o spray nasal é chamada de paralisia de Bell. Quando isso acontece, há uma paralisia dos nervos da face. É considerada uma reação rara, com menos de 150 mil casos por ano no Brasil. O tratamento se dá por fisioterapia.
Efeitos adversos ainda estão sendo estudados nas vacinas injetáveis contra covid-19. Nos Estados Unidos, Ian Haydon, um voluntário que aceitou participar dos testes farmacêutica Moderna, informou que teve uma reação que o impedia de conseguir levantar o braço. Ele também relatou ter sentido enjoo, registrou febre de 39,4 ºC e chegou a desmaiar. Haydon estava no grupo de participantes que recebeu a dose mais alta da vacina.
Com reações adversas menores, o spray nasal pode ser uma forma menos agressiva de aplicar vacinas do que a seringa injetável. Tanto é que a vacina nasal contra a gripe da AstraZeneca, por exemplo, é elegível para pessoas na faixa etária dos 2 aos 49 anos. Por outro lado, os testes para a vacina contra covid-19 da mesma AstraZeneca estão sendo realizados com a presença crianças de 5 a 12 anos. Também serão realizados testes no Brasil, mas somente com pessoas acima de 18 anos.
O lado financeiro é preciso ser levado em consideração. Segundo Stephano, a produção das quatro doses da vacina aplicada por spray nasal custa algo em torno de 100 reais. É um valor relativamente mais baixo que os 40 dólares (214 reais em conversão direta) estabelecidos como referência para o preço da vacina que está sendo desenvolvida pela farmacêutica americana Pfizer com a empresa alemã BioNTech.
A produção de uma vacina no Brasil é importante para permitir que país tenha não seja dependente de laboratórios internacionais. “Se amanhã houver um rompimento diplomático do Brasil com algum mercado que produza a vacina e um bloqueio ao país, temos uma tecnologia que é desenvolvida nacionalmente”, afirma Stephano. “É preciso ter várias vacinas no mercado.”
Em outra frente, a vacina por spray nasal poderia ser uma saída para enfrentar um problema que surge com a demanda mundial por um soro contra o novo coronavírus: a falta de seringas. No fim de julho, a União Europeia fez o alerta de que “pode haver escassez” nos estoques de seringas, lenços, álcool e outros itens e equipamentos utilizados para a aplicação das vacinas injetáveis.
No Brasil, a falta de seringas já preocupa a Associação Brasileira da Indústria de Artigos e Equipamentos Médicos e Odontológicos (Abimo). Segundo o órgão, é preciso que os governos de esferas municipal, estadual e federal se programem para solicitar a compra das seringas. “Seringa não se produz da noite para o dia”, afirmou um porta-voz da entidade. A produção brasileira é de 10 milhões de unidades por mês, mas pode aumentar de acordo com a demanda. Isso, porém, exige um planejamento prévio.
Falta de incentivo
A produção de uma vacina brasileira poderia estar mais avançada. O problema é que, até a parceria com o InCor, faltavam incentivos, principalmente financeiros, para acelerar o processo. Para Stephano, isso é reflexo da crise financeira enfrentada nos últimos anos e que se agravou a partir de 2013. "Quando há problemas econômicos, as áreas de ciência, tecnologia e educação são as primeiras a sofrerem cortes de verbas", diz.
Um levantamento realizado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência aponta que o orçamento para investir em ciência e tecnologia no Brasil era de 4,7 bilhões de reais. O valor, que desconta recursos já comprometidos com encargos trabalhistas e despesas obrigatórias, é 38% menor do que disponibilizado em 2019. O físico Ildeu Moreira, presidente da SBPC, mostrou preocupação. “A situação não é nada animadora. Temos um quadro muito difícil pela frente”, afirmou, em dezembro de 2019.
Stephano cobrou maior participação dos governos estaduais. A crítica maior foi para o governo paulista, que atua por meio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de S. Paulo (Fapesp). Procurada, a Fapesp informou que está apoiando três projetos para o desenvolvimento de vacinas brasileiras contra o coronavírus. Um deles, inclusive, é da própria Faculdade de Medicina da USP. Em junho, a pesquisa entrou em fase pré-clínica de testes com camundongos.
Em nota enviada após a publicação desta reportagem, a Fapesp informou que “o pesquisador Marco Antonio Stephano tem, atualmente, apoio da Fapesp para a realização de duas pesquisas para a produção de antígenos vacinais do vírus influenza dos tipos H5, H7 e H9 através de síntese de proteína animal “cell-free”. Esses projetos, porém, não tem relação com a produção de uma vacina contra o novo coronavírus.
*O texto foi atualizado às 14h19 do dia 14/08/2020 para incluir um novo posicionamento da Fapesp