Como a neurociência explica seu amigo que nega evidências
Livro mostra que, ao contrário da ideia de que a reputação pode ser destruída em segundos, a confiança pode levar muito tempo para ser demolida
Da Redação
Publicado em 16 de setembro de 2017 às 07h12.
Última atualização em 18 de setembro de 2017 às 10h01.
A vida secreta da mente: o que acontece com nosso cérebro quando decidimos, sentimos e pensamos
Autor: Mariano Sigman
Selo: Objetiva
Páginas: 288
Preço: 49,90
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Nesses tempos de polarização ideológica, é comum nos espantarmos com amigos que, apesar de fortes evidências, ainda se prendem a conceitos que formaram décadas atrás. Ante fotos, gravações e delações diversas, insistem em manter uma crença que beira o irracional em políticos ou partidos que apoiaram no passado.
Uma pista para entender o que parece inexplicável vem dos avanços da neurociência . Segundo clamam alguns estudiosos, é exatamente assim que funciona o nosso cérebro.
Tome-se por exemplo uma experiência feita pela neurobióloga americana Elizabeth Phelps. No estudo, voluntários participavam de um jogo em que deviam responder a ações de outras pessoas tratando-as com confiança ou desconfiança. Antes do jogo, eles recebiam descrições das pessoas com quem jogariam, caracterizadas em dois grupos: de boa ou má índole.
Quando jogavam com pessoas descritas como de boa índole, ainda que elas agissem de forma egoísta, os participantes respondiam com benevolência. A conclusão de Elizabeth: ante uma desconexão entre nossas crenças e a realidade, ficamos com as crenças. O cérebro simplesmente ignora as informações que contradizem o ideal que formamos.
“Ou seja, a trama da confiança é robusta e duradoura”, diz Mariano Sigman, no livro A Vida Secreta da Mente: O Que Acontece Com Nosso Cérebro Quando Decidimos, Sentimos e Pensamos. Ao contrário do ditado que afirma que a reputação demora para ser construída mas pode ser destruída em segundos, a confiança leva muito tempo, e traumas significativos, para ser demolida.
Uma das explicações para esse comportamento é que não somos tão conscientes de nossas ações como cremos.
Um dos pioneiros do estudo da consciência, o americano Benjamin Libet mediu a atividade cerebral de pessoas na iminência de tomar uma decisão. Para efeito do estudo, a decisão era simples: apertar um tecla. O que ele percebeu foi que a região do cérebro ligada ao movimento do dedo se acendia cerca de 300 milissegundos antes de a pessoa perceber que havia tomado a decisão.
Um segundo experimento, com duas teclas em vez de uma, ampliou o efeito. Pela atividade do cérebro observada em aparelhos de ressonância magnética, era possível prever com até dez segundos de antecedência que a pessoa iria apertar uma das duas teclas.
Ao que parece, nossa consciência tem muito menos poder sobre nossas ações do que costumamos supor. E um outro experimento de Libet nos informa que ela serve mais para justificar decisões que tomamos do que para chegar a elas.
Neste outro experimento, o voluntário escolhe uma carta e, por meio de habilidades de prestidigitação, lhe é apresentada uma outra. Em vez de dizer “não foi essa a carta que eu escolhi”, a maioria das pessoas constrói uma justificativa para ter optado pela carta apresentada.
A tabelinha de Borges com Maradona
Boa parte do livro de Sigman suscita questões essenciais sobre nossas vidas particulares e em sociedade. Ele toca em temas como o livre arbítrio, a tomada de decisões, o modo como aprendemos.
Sigman não está sozinho nessa missão. De uns tempos para cá, a neurociência vem tentando reivindicar espaço em um campo que antes foi dominado pelos filósofos, psicólogos, sociólogos e – sim, também eles – poetas.
O esforço é louvável, e produziu alguns avanços inegáveis. Um exemplo é o sucesso em estabelecer comunicação com alguns pacientes em estado vegetativo. Pedia-se a eles que imaginassem estar jogando tênis ou passeando por sua casa, e media-se qual região do cérebro se “acendia”, estabelecendo um código binário para a comunicação.
Por outro lado, algumas explicações soam como mero acréscimo de um linguajar empolado com pouca utilidade prática. Assim, por exemplo, explica-se que as pessoas que possuem sistemas de confiança mais precisos (sabem avaliar com mais acurácia o grau de certeza de suas opiniões) têm maior quantidade de conexões de neurônios na região do cérebro chamada 10 de Brodmann (ou BA10), situada no córtex frontal lateral. Ah, bom.
Pelo título, o livro de Sigman se apresenta como um guia dos avanços e dos obstáculos desse esforço da neurociência para explicar os meandros da mente humana. Estão ali, de fato, alguns dos blocos elementares desse esforço: as pesquisas do português António Damásio sobre a importância da emoção na tomada de decisão, as 10.000 horas do economista Herbert Simons (depois popularizadas por Malcolm Gladwell), rudimentos de teoria dos jogos etc.
Mas o livro de Sigman não é tanto sobre a vida secreta da mente em geral, e sim a vida pública da mente de Sigman – ou pelo menos de onde ele aplica sua mente. Trata-se de um passeio por suas curiosidades, suas pesquisas, seus estudos.
Sigman é um neurocientista argentino, que estudou na Espanha e nos Estados Unidos, fundador do Laboratório de Neurociência Integrativa da Universidade de Buenos Aires e um dos diretores do Human Brain Project, uma iniciativa global para entender o cérebro humano.
A qualidade de argentino está bastante presente no livro. Maradona e Messi são exemplos de genialidade. Maradona, como a mistura de genialidade com esforço.
As histórias do escritor anglo-argentino Jorge Luís Borges também sustentam várias páginas. Neste caso, menos pelo ufanismo patriótico e mais pela genialidade de Borges, que de fato antecipou inúmeras questões científico-filosóficas em seus contos (como os limites da memória, a organização mental ou o que significa conhecer algo).
Nada disso retira o interesse do livro. Mas ele não deve ser tomado como uma introdução ao tema. Há outros mais ambiciosos, como o calhamaço Como a Mente Funciona, de Steven Pinker, publicado há dez anos.
Para quem quer, no entanto, um relato divertido e mais atualizado de diversos estudos em algumas das fronteiras da neurociência, Sigman pode se revelar um bom companheiro de indagações. Suas conjecturas sobre a origem do pensamento, a dicotomia entre consciente e inconsciente, o mundo dos sonhos, o modo como aprendemos e nossa resistência a mudanças não apresentam respostas definitivas – porque elas não existem – mas fornecem boas informações complementares a quem já se inquieta com esses assuntos.