Ciência

Terapias genéticas deram passo gigante em 2019

Entre elas está a Crispr - uma técnica da terapia genética capaz de editar o próprio genoma, mas ainda em fase experimental

Edição de genoma vem sendo cada vez mais utilizada em casos complexos (sxc.hu/Divulgação)

Edição de genoma vem sendo cada vez mais utilizada em casos complexos (sxc.hu/Divulgação)

A

AFP

Publicado em 26 de dezembro de 2019 às 17h24.

Última atualização em 26 de dezembro de 2019 às 17h27.

No verão, uma mãe em Nashville com um distúrbio genético aparentemente incurável finalmente encontrou um fim para o seu sofrimento - editando seu genoma.

A recuperação de Victoria Gray da anemia falciforme, que lhe causava convulsões dolorosas, ocorreu em um ano de avanços em uma das áreas mais quentes da pesquisa médica: a terapia genética.

"Eu esperava uma cura desde os 11 anos", disse Gray, de 34 anos, à AFP por e-mail. "Desde que recebi as novas células, pude aproveitar mais tempo com minha família sem me preocupar com dor ou com uma emergência inesperada".

Durante várias semanas, o sangue de Gray foi coletado para que os médicos pudessem chegar à causa de sua doença - células-tronco da sua medula óssea que produziam glóbulos vermelhos deformados.

As células-tronco foram enviadas para um laboratório escocês, onde seu DNA foi modificado usando a técnica Crispr/Cas9, uma nova ferramenta informalmente conhecida como "tesoura" molecular.

As células geneticamente editadas foram transfundidas de volta para as veias e medula óssea de Gray. Um mês depois, ela estava produzindo células sanguíneas normais.

Médicos alertam que é necessário cautela, mas teoricamente ela foi curada.

"Esta é uma paciente. Esses são os primeiros resultados. Precisamos ver como funciona em outros pacientes", disse o médico de Gray, Haydar Frangoul, no Instituto de Pesquisa Sarah Cannon, em Nashville. "Mas esses resultados são realmente empolgantes".

Na Alemanha, uma mulher de 19 anos foi tratada com um método semelhante para uma doença sanguínea diferente, a beta-talassemia, que fazia com que ela precisasse receber 16 transfusões de sangue por ano.

Nove meses depois, ela está completamente livre desse fardo.

Durante décadas, o DNA de organismos vivos, como milho e salmão, foi modificado. Mas a Crispr, inventada em 2012, tornou a edição de genes mais acessível. É muito mais simples que a tecnologia anterior, mais barata e fácil de usar em pequenos laboratórios.

A técnica deu um novo impulso ao debate perene sobre a sabedoria da humanidade manipulando a própria vida.

"Tudo está se desenvolvendo muito rapidamente", disse a geneticista francesa Emmanuelle Charpentier, uma das inventoras da Crispr e cofundadora da Crispr Therapeutics, a empresa de biotecnologia que conduz os ensaios clínicos envolvendo Gray e o paciente alemão.

2019, ano de inovações

A Crispr é uma revolução, mas ainda se encontra em fase experimental.

No entanto, isso não tira a relevância de 2019, ano em que a terapia genética se tornou realidade, o que marca uma virada histórica em uma aventura iniciada há 30 anos.

Pela primeira vez, a comercialização desse tipo de tratamento recebeu sinal verde nos Estados Unidos para uma doença neuromuscular e na União Europeia para uma condição sanguínea.

No total, existem oito terapias genéticas disponíveis no mercado mundial, em sua maioria contra diferentes tipos de câncer e uma especialmente desenvolvida contra uma forma de cegueira.

Os cientistas que praticam a técnica inserem um gene normal nas células que contêm um gene defeituoso. Ele faz o trabalho que o original não pôde - como produzir glóbulos vermelhos normais, no caso de Gray, ou criar super glóbulos brancos que matam tumores para um paciente com câncer.

A Crispr vai ainda mais longe: em vez de adicionar um gene, a ferramenta edita o próprio genoma.

Após décadas de pesquisa e ensaios clínicos sobre uma correção genética para desordens genéticas, 2019 teve um marco histórico: a aprovação para comercializar as primeiras terapias genéticas para uma doença neuromuscular nos EUA e para uma doença no sangue na União Europeia.

Elas se juntam a várias outras terapias genéticas - elevando o total para oito - aprovadas nos últimos anos para tratar certos tipos de câncer e cegueira.

Serge Braun, diretor científico da Associação Francesa de Distrofia Muscular, vê 2019 como um ponto de virada que levará a uma revolução médica.

"Vinte e cinco, 30 anos, esse foi o tempo que levou", disse à AFP de Paris. "Demorou uma geração para a terapia genética se tornar realidade. Agora, isso só vai continuar acontecendo mais rápido".

Nos arredores de Washington, nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), os pesquisadores também comemoram um "período de avanço".

"Atingimos um ponto de inflexão", disse Carrie Wolinetz, diretora associada de política científica do NIH.

Essas terapias têm preços exorbitantes, porém, custando até US $ 2 milhões - o que significa que os pacientes enfrentam negociações cansativas com seus planos de saúde.

Elas também envolvem um regime complexo de procedimentos que só estão disponíveis em países ricos.

Gray passou meses no hospital tendo o sangue coletado, passando por quimioterapia, tendo as células-tronco editadas e reintroduzidas por transfusão - e combatendo uma infecção geral.

"Você não pode fazer isso em um hospital público perto de casa", disse o médico dela.

No entanto, o número de terapias genéticas aprovadas aumentará para cerca de 40 em 2022, de acordo com pesquisadores do MIT. Elas terão como alvo principalmente cânceres e doenças que afetam os músculos, os olhos e o sistema nervoso.

Bioterrorismo

Outro problema com a Crispr é que sua relativa simplicidade serviu de gatilho para a imaginação de cientistas desonestos que não compartilham necessariamente a ética médica na medicina.

No ano passado, na China, o cientista He Jiankui desencadeou um escândalo internacional - e sua expulsão da comunidade científica - quando usou a Crispr para criar o que chamou de primeiros humanos com genes editados.

O biofísico disse que alterou o DNA de embriões humanos que se tornaram as gêmeas Lulu e Nana. Seu objetivo era criar uma mutação que impedisse as meninas de contrair o HIV, mesmo que não houvesse razão específica para submetê-las ao processo.

"Essa tecnologia não é segura", disse Kiran Musunuru, professor de genética da Universidade da Pensilvânia, explicando que as "tesouras" Crispr com frequência fazem o corte próximo ao gene alvo, causando mutações inesperadas.

"É muito fácil fazer isso se você não se importa com as consequências", acrescentou Musunuru.

Apesar das armadilhas éticas, a restrição parece ter prevalecido até o momento.

A comunidade está de olho na Rússia, onde o biólogo Denis Rebrikov disse que quer usar o Crispr para ajudar pais surdos a terem filhos sem a deficiência.

Também existe a tentação de editar geneticamente espécies animais inteiras - mosquitos causadores da malária em Burkina Faso ou ratos hospedando carrapatos que transmitem a doença de Lyme nos EUA.

Os pesquisadores responsáveis por esses projetos estão avançando com cuidado, porém, plenamente conscientes da imprevisibilidade das reações em cadeia no ecossistema.

Charpentier não acredita nos cenários mais distópicos previstos para a terapia genética, incluindo "biohackers" americanos se injetando com a tecnologia Crispr comprada on-line. "Nem todo mundo é biólogo ou cientista", disse.

E a possibilidade do sequestro militar para criar vírus ou bactérias matadores de soldados que devastariam as safras dos inimigos?

Charpentier acha que a tecnologia geralmente tende a ser usada para melhor. "Sou bacteriologista - falamos sobre bioterrorismo há anos", disse. "Nunca aconteceu nada".

A cientista mantém a confiança de que a tecnologia tende a ser usada para o bem e que o futuro terá mais casos como o de Victoria do que Lulu e Nana.

Acompanhe tudo sobre:DNAGenética

Mais de Ciência

Cientistas constatam 'tempo negativo' em experimentos quânticos

Missões para a Lua, Marte e Mercúrio: veja destaques na exploração espacial em 2024

Cientistas revelam o mapa mais detalhado já feito do fundo do mar; veja a imagem

Superexplosões solares podem ocorrer a cada século – e a próxima pode ser devastadora