Ciência

Técnica que altera DNA é esperança no combate a doenças genéticas

Apesar de eficiente, o crisper não é livre de riscos. O principal deles é o de causar alterações em outras partes do genoma, além da mutação alvo

Identificação genética: Criado em 2013, nos EUA, o sistema crisper se tornou um fenômeno global instantâneo, adotado por milhares de laboratórios (./Getty Images)

Identificação genética: Criado em 2013, nos EUA, o sistema crisper se tornou um fenômeno global instantâneo, adotado por milhares de laboratórios (./Getty Images)

EC

Estadão Conteúdo

Publicado em 24 de dezembro de 2017 às 09h56.

São Paulo - Cezar Xavier carregou durante toda a vida o peso genético de uma doença que acreditava ser incurável. Aos 14 anos, viu a mãe desenvolver os primeiros sintomas de uma forma hereditária de esclerose lateral amiotrófica (ELA) e sabia, desde então, que o risco de ter a doença era de 50%. Por volta dos 40 anos, suas pernas e braços começaram a fraquejar, confirmando o diagnóstico que os testes genéticos da época ainda não eram capazes de fornecer: que a mutação responsável pela doença estava, sim, embutida em seu DNA.

Nesse meio tempo, Xavier viu muitos de seus parentes sucumbirem à doença, que ataca os neurônios motores do sistema nervoso central, causando degeneração muscular, paralisia e falência respiratória.

Hoje, aos 74 anos, porém, ele nunca esteve tão esperançoso. "Até pouco tempo atrás, parecia que tudo que estava sendo feito era para os nossos filhos ou netos. Agora, pela primeira vez, estamos nos dando o direito de sonhar como uma solução já para a nossa geração", diz o cirurgião aposentado, falando por telefone de sua "casa na roça" em Ipanema, pequeno município do sudeste mineiro.

O motivo de tanta esperança reside em uma tecnologia revolucionária conhecida como crisper (CRISPR-Cas9, na sigla em inglês), que permite aos cientistas fazer alterações no DNA de forma simples e rápida. Funciona como um editor de texto genético, pelo qual é possível corrigir ou apagar palavras (genes) que estão soletradas erradas no genoma humano - abrindo, assim, a possibilidade de se desfazer ou silenciar mutações relacionadas a doenças.

Criado em 2013, nos Estados Unidos, o sistema crisper se tornou um fenômeno global instantâneo, adotado por milhares de laboratórios ao redor do mundo como ferramenta básica de edição genética. E voltou a ser notícia em agosto deste ano, quando cientistas colocaram em prática a aplicação mais polêmica da técnica: a edição do DNA de embriões humanos.

Um grupo de pesquisadores americanos e chineses utilizou o crisper para corrigir uma mutação no genoma de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro. O trabalho, publicado na revista Nature, alimentou uma série de discussões sobre as limitações técnicas e éticas da manipulação do genoma humano, tornada muito mais simples pelo crisper. Seria este o primeiro capítulo de uma nova era de seres humanos geneticamente modificados pela ciência?

Os embriões "crispados" não chegaram a ser implantados, mas eram viáveis e poderiam, teoricamente, ter gerado bebês livres da mutação.

Em adultos, o desafio é maior, mas não impossível. Vários laboratórios ao redor do mundo já estão trabalhando com o crisper para aumentar a eficácia - e a segurança - das técnicas de terapia gênica, que buscam corrigir mutações em células doentes do organismo. Os primeiros testes clínicos já estão em andamento na China e nos Estados Unidos, para o tratamento de câncer.

Os resultados obtidos até agora em modelos animais são promissores. Em um trabalho publicado na semana passada, também na Nature, cientistas usaram crisper para reverter a surdez congênita de camundongos que nasceram com uma mutação no gene Tmc1.

No caso da família Xavier, o alvo seria uma versão modificada do gene VAP-B, responsável por uma forma hereditária de esclerose lateral amiotrófica chamada ELA8.

A mutação foi identificada em 2004 pelo grupo da geneticista Mayana Zatz, da Universidade de São Paulo (USP). Ela agora coordena um projeto de pesquisa com dezenas de membros da família de Xavier, que envolve o uso de crisper para "nocautear" (desligar) a versão defeituosa do gene em células in vitro e ver o que acontece com elas.

Dependendo dos resultados, poderia se pensar em uma terapia gênica para ELA8 no futuro. "É uma tecnologia extremamente promissora, com um futuro muito grande no caso de doenças genéticas", aposta ela.

Aos 74 anos, Xavier é um sonhador realista. Ele sabe que nocautear a mutação não vai reverter os estragos já causados ao seu corpo nesse estágio da vida. Mas quem sabe numa pessoa mais jovem, em que a doença ainda não se manifestou - como sua filha, de 30 anos? "Não penso tanto em cura, mas pelo menos num controle da doença", diz ele. "Já seria um avanço tremendo."

Há muitas outras mutações associadas a diferentes formas de esclerose lateral amiotrófica; mas, neste caso da doença hereditária, ela é causada pela alteração deste único gene. Cerca de 10 mil doenças desse tipo, chamadas monogênicas, são conhecidas da ciência, e poderiam potencialmente se beneficiar da técnica de crisper.

A possibilidade de se modificar o DNA de embriões humanos com relativa facilidade - graças ao crisper - é vista com entusiasmo e cautela pela comunidade científica internacional, que vem debatendo o assunto intensamente nos últimos anos.

Em uma conferência realizada em 2015, as Academias Nacionais de Ciência, Engenharia e Medicina dos Estados Unidos concluíram que a técnica só deveria ser usada para fins de pesquisa em laboratório, e não para a implantação de embriões no útero. Agora, em um novo relatório lançado no início deste ano, a conclusão é de que ela pode, sim, ser usada para fins de reprodução humana, desde que seja para evitar a ocorrência de doenças graves e sem cura.

Ainda assim, muitos acreditam que a principal aplicação da técnica será para fins de pesquisa, visto que já é possível evitar a transmissão de doenças genéticas pela seleção de embriões sadios, em vez de tentar corrigir aqueles que têm a mutação.

"Como ferramenta de pesquisa é uma coisa extremamente poderosa", diz a pesquisadora Lygia Pereira, do Instituto de Biociências da USP. Para fins reprodutivos, "é mais fácil selecionar do que editar".

A arquiteta Júlia Xavier, de Belo Horizonte, viveu essa situação. Ao saber que tinha herdado a mutação ELA8 do pai, Cezar, ela optou por fazer uma fertilização in vitro e selecionar os embriões livres da doença. Desse processo nasceram os gêmeos Théo e Giovanna.

Ao contrário da maioria de seus parentes, que preferem não saber, Júlia fez questão de se testar para descobrir se era portadora da mutação. Aos 30 anos, ela ainda não tem sintomas, mas sabe que eles vão aparecer. "Conviver com a dúvida para mim era muito pior", justifica.

Sobre a possibilidade de um dia, quem sabe, fazer uma terapia gênica com crisper para desligar a mutação em seu organismo, Júlia diz que "seria cobaia na certa". Ela também participa do projeto de pesquisa da geneticista Mayana Zatz.

Mayana concorda que é mais fácil selecionar embriões, mas lembra que muitas mulheres produzem poucos e, por isso, podem não ter essa opção de escolha. Nesses casos, o crisper seria uma alternativa.

O entusiasmo é justificado, mas a cautela também, diz a pesquisadora Angela Saito, do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas, que utiliza crisper para gerar camundongos com mutações associadas a doenças do sistema nervoso.

Apesar de ser uma técnica bastante eficiente, diz ela, o crisper não é livre de riscos. O principal deles é o de causar alterações em outras partes do genoma, além da mutação alvo. A acurácia, segundo ela, varia de acordo com o gene e o organismo envolvidos na pesquisa. "Tem de pesar os riscos e os benefícios na balança", diz.

Outra preocupação, de natureza ética, refere-se ao possível uso do crisper para fazer alterações no genoma não relacionadas à cura de doenças, mas a razões "cosméticas" ou visando à introdução de vantagens físicas ou cognitivas, tipo força ou inteligência.

"O risco existe e temos de estar preparados", diz o médico Dirceu Greco, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética. "A pesquisa tem de ser incentivada, sempre; mas deve ser feita da maneira correta, com regras claras e com precaução."

"São preocupações importantes, às quais as agências regulatórias precisarão estar atentas", avalia Angela.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo

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