Ciência

Por que algumas línguas do passado são indecifráveis até hoje?

Línguas históricas podem ter registros, mas, sem ligações com línguas já conhecidas, se tornam um enigma para historiadores

Egípcio antigo: língua foi decodificada após a descoberta da Pedra de Roseta e com comparações com o copta (Divulgação/Divulgação)

Egípcio antigo: língua foi decodificada após a descoberta da Pedra de Roseta e com comparações com o copta (Divulgação/Divulgação)

Paloma Lazzaro
Paloma Lazzaro

Estagiária de jornalismo

Publicado em 26 de dezembro de 2025 às 14h56.

Nem toda língua antiga desaparece sem deixar vestígios. Muitas sobreviveram em inscrições, tabuletas ou objetos rituais.

O problema começa quando esses registros não podem ser associados a nenhuma língua viva ou já decifrada. Sem traduções, gramáticas ou continuidade histórica, essas línguas se tornam um desafio quase impossível de resolver para linguistas e arqueólogos.

Decifrar uma língua perdida equivale a receber um código sem manual de instruções. Em alguns casos, esses idiomas acabam sendo decodificados. O egípcio antigo, por exemplo, deixou de ser um enigma após décadas de pesquisa e a descoberta da Pedra de Roseta.

A esperança é a última que morre, e, torcendo para que o caso egípcio seja replicado, o mistério ainda hoje mobiliza pesquisadores de todo o mundo.

Quais são as línguas que ainda são enigmas?

Entre os casos mais conhecidos de línguas perdidas está a escrita do Vale do Indo, ligada à civilização Harappa, no atual Paquistão e noroeste da Índia. Os textos preservados aparecem principalmente em selos e fragmentos de cerâmica, quase sempre muito curtos. Isso impede a identificação de padrões claros, como frases completas ou estruturas gramaticais.

Outro exemplo é a escrita epiolmeca, usada na costa do Golfo do México. As inscrições conhecidas são raras e o contexto arqueológico é limitado. Já a rongorongo, da Ilha de Páscoa, é uma escrita pictográfica encontrada em poucas tábuas de madeira, muitas danificadas pelo tempo.

Na Europa, o linear A, da civilização de Creta, segue indecifrado. Apenas o linear B foi compreendido, por representar uma forma antiga do grego.

O mesmo ocorre com os hieróglifos cretenses e com o Disco de Festo, um objeto único, sem textos semelhantes para comparação.

Há também línguas parcialmente legíveis, mas semanticamente obscuras.

O etrusco, por exemplo, usa um alfabeto derivado do grego, mas não pertence a nenhuma família linguística claramente identificada. A protoelamita, do antigo Elão, no atual Irã, aparece em tabuletas administrativas fragmentadas e não se conecta a nenhum idioma conhecido.

Segundo a linguista Svenja Bonmann, da Universidade de Colônia, em entrevista à DW, o grande problema é a escassez de material. “Estamos sempre trabalhando com fragmentos ou pedaços do passado”, afirma.

Como uma língua pode ser decodificada

Para que uma língua antiga seja decifrada, os pesquisadores precisam de pontos de apoio linguísticos.

Um deles é a existência de textos bilíngues, que apresentam o mesmo conteúdo em uma língua conhecida e em outra desconhecida. Outro caminho é a continuidade histórica, quando uma língua antiga evolui para outra posterior.

Os linguistas também recorrem à linguística histórico-comparativa, método que compara sons, palavras e estruturas gramaticais entre diferentes línguas para identificar possíveis parentescos.

Quando uma língua pode ser ligada a uma família linguística, como indo-europeia ou semítica, torna-se possível formular hipóteses testáveis.

Alguns termos técnicos são centrais para entender esse processo. Pictogramas são sinais que representam objetos ou ideias por meio de imagens. Fonéticos são sinais que representam sons da fala. Já cartuchos são formas ovais usadas em hieróglifos egípcios para destacar nomes de reis ou divindades, detalhe crucial para a decifração do egípcio antigo.

Mesmo sem traduções diretas, a repetição de símbolos, a posição dos sinais e o contexto arqueológico ajudam a restringir interpretações.

Ainda assim, quando os textos são muito curtos ou isolados, as hipóteses raramente podem ser confirmadas.

Como a Pedra de Roseta ajudou a decodificar o egípcio antigo

O caso mais famoso de sucesso é o do egípcio antigo, graças à Pedra de Roseta. O artefato, datado de 196 a.C., contém o mesmo decreto inscrito em três sistemas de escrita: hieróglifos, demótico e grego antigo.

Tudo começou pelo grego. A língua é uma das poucas que preservou boa parte do seu alfabeto inalterado, além de ter sido adotada por grandes impérios como o macedônico, o romano e o bizantino.

Ou seja, além de ser um idioma conhecido, ele também foi utilizado em parte significativa da Europa, Ásia e norte da África durante milênios. Uma espécie de "língua-franca" da Antiguidade.

Após a descoberta da Pedra de Roseta em 1799, estudiosos puderam usar o grego como referência. O inglês Thomas Young demonstrou que alguns hieróglifos representavam sons, especialmente em nomes reais como Ptolomeu.

Pouco depois, o francês Jean-François Champollion provou que os hieróglifos combinavam sinais fonéticos e simbólicos.

O conhecimento do copta, língua descendente do egípcio antigo e ainda utilizada por cristãos ortodoxos da região, foi decisivo. Em 1822, Champollion anunciou a decifração, estabelecendo as bases da egiptologia moderna.

Com isso, a história e os artefatos de uma das mais antigas sociedades do mundo finalmente puderam ser estudadas mais a fundo.

Há esperança para as línguas perdidas?

A maioria das línguas indecifradas sofre com a ausência da sua "Pedra de Roseta". Sem textos comparáveis, nomes reconhecíveis ou continuidade histórica, testar hipóteses se torna extremamente difícil.

Além disso, diferentemente do egípcio antigo, diversas dessas línguas não estava inserida em um contexto tão bem documentado quanto o Mediterrâneo antigo.

A escrita do Vale do Indo, por exemplo, existiu milênios antes do sânscrito, que é até hoje uma língua conhecida no subcontinente indiano. Se os idiomas fossem contemporâneos, como o grego e o egípcio, a probabilidade da existência de um artefato bilíngue seria maior.

A inteligência artificial tem sido apontada como uma possível aliada. Ela pode identificar padrões, comparar frequências de símbolos e reconstruir trechos danificados.

No entanto, Bonmann ressalta que a IA depende de grandes volumes de dados, que é justamente o que falta nesses casos. “É improvável que programas consigam operar com tão poucos registros”, afirma à DW.

Além disso, há o risco de leituras enviesadas, influenciadas por expectativas modernas. Para muitos especialistas, parte do fascínio dessas línguas está justamente no fato de resistirem à explicação.

Como resume Bonmann, refletir sobre as sociedades do passado é essencial para compreender a condição humana. Mesmo que alguns códigos jamais sejam compreendidos, eles são lembretes de que nem toda história pode ser plenamente recuperada.

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