Ciência

Paciente recebe cloroquina pelo correio após consulta virtual

O "kit covid", que inclui azitromicina e vitaminas C e D, é prescrito pelos médicos da operadora de saúde Prevent Senior

Hidroxicloroquina: médicos alertam que o uso no tratamento da covid-19 tem riscos (George Frey/Reuters)

Hidroxicloroquina: médicos alertam que o uso no tratamento da covid-19 tem riscos (George Frey/Reuters)

EC

Estadão Conteúdo

Publicado em 15 de agosto de 2020 às 13h16.

Última atualização em 15 de agosto de 2020 às 13h17.

Após diagnóstico clínico feito em consulta realizada pela internet, pacientes da operadora de saúde Prevent Senior estão recebendo em casa, pelos Correios, uma espécie de "kit covid", composto por hidroxicloroquina 400 mg, azitromicina 500 mg e pelas vitaminas Vitacon C + Zinco + Vitamina D e Detem D3. No receituário de controle, assinado por um médico que não faz a consulta, constam as dosagens diárias.

Os pacientes são aconselhados a tomar os medicamentos antes mesmo de fazerem o teste para detecção do novo coronavírus – cujo resultado é informado em cinco dias.

Com um quadro típico de gripe, em que apresentava congestão nasal, estado febril de 37,2°C, indisposição e leve dor no corpo a atriz Lilian Athie, de 58 anos, marcou pelo aplicativo da operadora, no dia 30 de julho, uma consulta virtual. "A médica fez um rápido levantamento do meu estado e disse que provavelmente eu estava com covid, mesmo eu dizendo que não estava com tosse ou falta de ar. Imagino que a conclusão foi baseada na minha informação que tinha perdido o olfato. O fato é que, normalmente, uma forte congestão nasal causa a perda de olfato. Assim que passamos a respirar melhor, o olfato volta a funcionar", disse Lilian.

Durante o diagnóstico, diz a atriz, a médica perguntou se ela morava com alguém, se trabalhava fora e se era cardíaca. "Respondi não a todas as perguntas." Após anotar os dados, informou que ela iria receber mensagem de texto pelo celular com um link para aceitar o recebimento da medicação em casa e também uma ligação informando os procedimentos.

"A médica reforçou que era para eu tomar os remédios assim que os recebesse. E também ligar para a central de atendimento e agendar o teste PCR para detecção de coronavírus. Pediu para repousar e não sair de casa por 13 dias."

Lilian recebeu o kit no mesmo dia da consulta. No dia seguinte, fez o teste pelo método RT-PCR . O resultado, que ficou pronto quatro dias depois, foi informado por uma atendente do convênio que ligou para saber como estava e se tinha tomado o medicamento. "Eu disse que somente tinha tomado a vitamina C. A mesma pessoa me informou que o resultado do teste tinha dado negativo. Perguntou se podiam recolher os medicamentos que eu não havia tomado. Pedi para ficar com as vitaminas", disse.

"Acho que o plano deveria explicar melhor os medicamentos enviados. Senti como se quisessem fazer um teste comigo. Como o convênio prescreve hidroxicloroquina após uma consulta virtual de cinco minutos?", indagou. Além do caso da atriz, o Estadão conversou com outras cinco pessoas clientes da Prevent Senior, que relataram o mesmo procedimento.

Atendimento precoce

Procurada, a Prevent Senior – especializada em idosos, grupo de risco da doença, afirma que "o atendimento precoce de covid –19 tem sido adotado com resultados significativos de redução de internação e taxas de mortalidade" nos hospitais da rede.

Questionada sobre o envio do kit, que inclui hidroxicloroquina e azitromicina aos pacientes após diagnóstico online, a operadora justifica que "todos que recebem o kit assinam um termo concordando em receber os medicamentos em casa, sem nenhum custo adicional". A operadora diz ainda que os pacientes são atendidos e acompanhados por seus médicos e que "a utilização de qualquer remédio, mesmo após orientação médica, depende da vontade do paciente".

O cardiologista Carlos Alberto Pastore, da Sociedade de Cardiologia do Estado, afirma que não se pode considerar o uso do kit como uma forma de prevenção ou tratamento do novo coronavírus. "No início muitas pessoas tomaram hidroxicloroquina mas nunca foi uma conduta definida", alerta. E a coordenadora do programa de Saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Ana Carolina Navarrete, considera grave a decisão da operadora. "Não é o médico A ou B decidindo prescrever. É a instituição estabelecendo um protocolo de tratamento que não tem respaldo em evidência científica. Uma coisa é fazer isso de forma atrelada a um estudo clínico, outra muito diferente é quando não há estudo clínico."

Até a pandemia do novo coronavírus, a hidroxicloroquina era conhecida pelo uso em tratamento de artrite, lúpus eritematoso e malária. Começou a ser administrada em pacientes suspeitos e testados positivos, mas a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) suspendeu os estudos. "A medicação pode interferir no processo elétrico do coração e provocar arritmia cardíaca, o que pode ser fatal", afirma o cardiologista.

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