Imunidade coletiva pode ser alcançada com 20% de infectados, diz estudo
Caso a projeção dos cientistas se confirme na prática, o risco de contágio pode diminuir, mas o número de mortes tende a ser alto
Estadão Conteúdo
Publicado em 25 de julho de 2020 às 15h30.
Última atualização em 25 de julho de 2020 às 18h12.
Um estudo publicado em 24 de julho na plataforma medRxiv, ainda sem revisão por pares, estima que o limiar de imunidade coletiva ao novo coronavírus (SARS-CoV-2) - também conhecida como imunidade de rebanho - pode ser alcançado em uma determinada região se algo entre 10% e 20% da população for infectada.
Caso a projeção se confirme na prática, os desdobramentos tendem a ser positivos em dois aspectos. Primeiro porque significa que é pequeno o risco de ocorrer uma segunda onda avassaladora da pandemia nos países que adotaram medidas para conter a disseminação da covid-19 e hoje já registram queda no número de novos casos. Em segundo lugar porque indica ser possível para uma cidade, um estado ou um país alcançar o limiar de imunidade coletiva mesmo tendo adotado medidas de distanciamento social que ajudam a evitar o colapso do sistema de saúde e a minimizar o número de mortes.
"Nosso modelo mostra que não é preciso sacrificar a população deixando-a circular livremente para que a imunidade coletiva se desenvolva. Por outro lado, sugere que também não há necessidade de manter as pessoas em casa durante muitos e muitos meses, até que se aprove uma vacina ", afirma à Agência FAPESP a biomatemática portuguesa Gabriela Gomes, atualmente na University of Strathclyde, no Reino Unido.
O modelo matemático ao qual a pesquisadora se refere foi desenvolvido em colaboração com cientistas do Brasil, Portugal e Reino Unido. Entre os coautores do artigo estão o professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) Marcelo Urbano Ferreira e seu aluno de doutorado Rodrigo Corder.
"Temos trabalhado juntos com Gabriela Gomes há alguns anos usando essa abordagem para descrever a dinâmica de transmissão da malária na Amazônia brasileira, com apoio da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Ela também já havia feito alguns estudos sobre tuberculose. O modelo que usamos é diferente dos demais, pois leva em conta o fato de que o risco de contrair uma determinada doença varia de pessoa para pessoa", conta Ferreira.
Como explica Gomes, os fatores que influenciam o risco de um indivíduo contrair a COVID-19, por exemplo, podem ser divididos em duas categorias. Em uma delas estão os de ordem biológica, como a genética, a nutrição e a imunidade. Na outra se inserem os fatores comportamentais, que determinam o nível de contato com outras pessoas que cada um de nós tem no cotidiano.
"Isso tem relação com o tipo de ocupação, o local de moradia, os meios de deslocamento e até o perfil de personalidade. Uma pessoa que prefere ficar em casa lendo um livro tem um risco menor de se expor ao vírus do que quem sai com muita frequência e se relaciona com muitas pessoas", diz a pesquisadora.
De acordo com Gomes, os modelos que estimaram o limiar de imunidade ao SARS-CoV-2 variando entre 50% e 70% consideram que o risco de infecção é o mesmo para todos os indivíduos.
"Temos visto que, no caso da COVID-19, quanto maior é o grau de heterogeneidade da população, mais baixo se torna o limiar da imunidade de grupo", afirma Gomes.
Métodos
Medir em cada indivíduo de uma população cada um dos fatores que influenciam a suscetibilidade de contrair o novo coronavírus para então calcular qual seria o chamado "coeficiente de variação" - parâmetro-chave do modelo descrito no artigo - seria algo inviável. Por esse motivo, os pesquisadores optaram por fazer o caminho de trás pra frente.
"Sabemos que se alterarmos o coeficiente de variação há um impacto na curva epidêmica projetada pelo modelo. Decidimos então fazer o reverso: usamos a curva epidêmica de países em que a epidemia já estava em fase avançada para calcular o coeficiente de variação", explica Gomes.
A versão mais recente do trabalho se baseia em dados de incidência (número de novos casos diários) da Bélgica, Inglaterra, Espanha e Portugal. "Pretendemos em breve estudar os dados do Brasil e Estados Unidos, onde a epidemia ainda está em evolução", diz a pesquisadora.
Segundo os autores, embora o coeficiente de variação seja diferente em cada país, de forma geral, o limiar de imunidade coletiva tende a ficar sempre entre 10% e 20% e isso é extremamente relevante para a formulação de políticas públicas.
"Em locais onde o limiar de imunidade coletiva já foi alcançado, a tendência é que o número de novos casos continue a cair mesmo se a economia for reaberta. Mas, caso as medidas de distanciamento sejam relaxadas antes de a imunidade coletiva ser alcançada, os casos provavelmente voltarão a subir e os gestores devem estar atentos", afirma Corder. "Conceitualmente, após atingir a imunidade coletiva, a transmissão tende a se prolongar caso as medidas de controle sejam retiradas rapidamente", alerta.
Segundo o relato de Gomes, em Portugal é possível observar duas situações distintas. A região norte, por onde o vírus entrou no país, foi bem mais impactada no início da pandemia e agora, mesmo com a economia reaberta, o número de casos novos permanece em queda. Já no sul, onde se localiza a capital Lisboa, os casos seguem tendência de alta.
"Por enquanto são surtos localizados, em bairros de Lisboa, que estão sendo localmente contidos por meio de testagem e isolamento de infectados. As pessoas só foram liberadas para voltar ao trabalho em Portugal após fazerem testes", conta a pesquisadora.
Situação parcialmente semelhante ocorre no Brasil. A região de Manaus (AM), no Norte, aparentemente atingiu o pico da curva epidêmica em maio, quando houve o colapso do sistema de saúde. Depois disso, o número de novos casos tem caído mesmo com a economia aberta e as escolas retomando as atividades presenciais.
Estudos sorológicos indicaram que em cidades como Manaus e Belém, no Pará, mais de 10% da população já tem anticorpos contra o novo coronavírus. Já a região Sul, que registrou um pequeno número de infecções no início da epidemia e onde o índice de soroprevalência na população estava em torno de 1% em maio, tem registrado um aumento no número de casos novos à medida que as atividades estão sendo retomadas. Diferentemente de Portugal, o investimento em testagem e rastreamento de infectados no Brasil ainda permanece aquém do considerado ideal.
Como ressaltam os autores do artigo, o fato de o limiar de imunidade coletiva ser menor que o inicialmente previsto não diminui a importância das medidas de saúde pública para conter a disseminação do vírus e reduzir o número de mortes.
"Se algum gestor defende a imunidade coletiva como política pública ele está equivocado. As medidas de controle são importantes para não sobrecarregar o sistema de saúde. Mas o novo entendimento da dinâmica de transmissão da COVID-19 que nosso modelo traz aponta para um cenário mais otimista", diz Corder.
Na avaliação de Gomes, a adesão às medidas de isolamento tende a ser maior se as pessoas souberem que o sacrifício será necessário por um período mais curto. "Quando dizemos que a epidemia só será superada quando a vacina chegar, as pessoas começam a pensar em desrespeitar as normas, pois já não aguentam uma vida tão pouco sociável, com tantas restrições", diz.
Próximos passos. Alimentar o modelo com dados do mundo real é a melhor forma de tornar suas simulações e estimativas mais realistas. Com esse objetivo, Ferreira pretende testar em um estudo de campo no Acre dois pressupostos usados nos cálculos do grupo: o índice de detecção da doença (a diferença entre o número real de infectados e o número de casos diagnosticados) e o tempo de duração da imunidade contra o SARS-CoV-2.
"No trabalho, consideramos que em torno de 10% dos casos reais são detectados pelos serviços de saúde e que a imunidade contra o vírus dura ao menos por um ano. Vamos ver se isso se confirma em uma população que acompanhamos já há alguns anos na cidade de Mâncio Lima", conta o pesquisador.
O grupo do ICB-USP tem realizado a cada seis meses inquéritos domiciliares com uma amostra da população da cidade acriana situada na fronteira com o Peru. Além de aplicar questionários, os pesquisadores coletam amostras de sangue. A ideia é acompanhar como evolui a soroprevalência ao SARS-CoV-2 nessa população ao longo do próximo ano e observar por quanto tempo os anticorpos podem ser detectados no sangue. O trabalho conta com apoio da Fapesp.