Ciência

Como o exercício físico melhora eliminação de proteínas tóxicas

Estudo encabeçado por pesquisadores da USP mostra a importância do exercício físico para o bem-estar do indivíduo e na prevenção de doenças musculares

Pesquisadores encontraram relação entre a prática de exercício físico e a prevenção da disfunção muscular (Reprodução/Thinkstock)

Pesquisadores encontraram relação entre a prática de exercício físico e a prevenção da disfunção muscular (Reprodução/Thinkstock)

Mariana Martucci

Mariana Martucci

Publicado em 6 de setembro de 2018 às 10h37.

Última atualização em 6 de setembro de 2018 às 12h19.

Os benefícios que a atividade física traz para a saúde são bem conhecidos, mas os processos celulares responsáveis por esses ganhos só começaram a ficar mais claros há pouco tempo.

Um deles é a relação entre a prática de exercício físico e a prevenção da disfunção muscular. Um tipo bastante frequente de disfunção muscular ocorre quando as células do músculo esquelético —  que compõe a maior parte do corpo humano —  param de receber estímulos.

Isso ocorre, por exemplo, em casos de lesão no nervo isquiático —  geralmente observada em indivíduos que passam muito tempo sentados, como motoristas de ônibus —  ou quando se está acamado por longos períodos. Nesse sentido, intervenções capazes de minimizar ou mesmo reverter a disfunção muscular oriunda da falta de estímulo são necessárias para a melhora da qualidade de vida desses indivíduos.

Um estudo publicado na Scientific Reports por pesquisadores da USP, em parceria com colegas dos Estados Unidos e da Noruega, mostra que a falta de estímulo ao músculo, nesse caso induzida por uma lesão no nervo isquiático em ratos, resulta no acúmulo de proteínas mal processadas dentro das células musculares e consequente prejuízo na função do órgão.

Os pesquisadores observaram que esse acúmulo decorre do prejuízo na maquinaria celular responsável por identificar e remover tais “lixos” celulares, conhecido como sistema autofágico. Eles demonstraram que o exercício físico é capaz de manter o sistema autofágico em alerta, facilitando sua ação quando necessária, como na disfunção muscular induzida por falta de estímulo. Os processos degenerativos decorrentes da falta de estímulo muscular são retardados em ratos previamente exercitados.

“A atividade física diária sensibiliza o sistema autofágico, facilitando a eliminação de proteínas e organelas pouco funcionais no músculo. A remoção desses componentes mal funcionais é muito importante, pois quando acumulados tornam-se tóxicos e contribuem para a disfunção ou mesmo a morte da célula muscular”, disse Julio Cesar Batista Ferreira, professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB-USP) e coordenador do estudo.

Para explicar a autofagia no músculo, Ferreira faz uma analogia. “Imagine o músculo trabalhando de modo semelhante a uma geladeira, que precisa receber eletricidade para funcionar. Quando esse sinal é cessado, ao retirar a geladeira da tomada ou bloquear o neurônio que inerva o músculo, rapidamente observamos que a comida (na geladeira) e a proteína (no músculo) começam a estragar em diferentes tempos, de acordo com sua composição”, disse à Agência FAPESP.

“Nesse momento, um mecanismo de alerta presente na célula, mas ainda inexistente na geladeira, aciona o sistema autofágico. Esse sistema vai identificar, isolar e incinerar o material estragado, evitando a propagação do dano. Entretanto, se o músculo deixa de receber o sinal elétrico adequado por períodos prolongados, esse sistema de alerta para de funcionar corretamente, contribuindo então para o colapso celular”, disse.

Os alimentos estragados, no caso, são proteínas que deixam de realizar sua função e formam aglomerados tóxicos, que começam a matar as células. A autofagia trata de isolar essas proteínas e incinerá-las no lisossomo —  organelas celulares que digerem substâncias orgânicas.

“Sem a autofagia, há um efeito cascata que resulta na morte celular”, disse Juliane Cruz Campos, primeira autora do artigo e atualmente fazendo pós-doutorado sob supervisão de Ferreira, com bolsa da FAPESP.

O trabalho é parte de seu doutorado. Anteriormente, ela e Ferreira já haviam publicado um trabalho sobre o papel do exercício físico na autofagia das células cardíacas.

Para chegar aos resultados de agora, foi feita uma cirurgia em um grupo de ratos de modo a induzir uma lesão no nervo isquiático de uma das pernas, em efeito equivalente em humanos do chamado pinçamento do nervo isquiático. Isso causa bastante dor, o que faz o indivíduo poupar a perna prejudicada e, consequentemente, perder tamanho e função do músculo.

Dias antes da cirurgia, os ratos foram divididos em dois grupos. Enquanto um se manteve sedentário, o outro fez um treinamento em que corria em 60% de sua capacidade aeróbica uma hora por dia em uma esteira, cinco vezes por semana.

Após quatro semanas dessa rotina, foi feita a cirurgia. O resultado foi que a disfunção muscular induzida pela lesão no nervo isquiático se mostrou menos agressiva nos animais previamente exercitados quando comparados aos não exercitados. Nesse tempo também foram avaliados parâmetros funcionais e bioquímicos dos músculos afetados.

“O exercício foi capaz de aumentar o fluxo autofágico e, consequentemente, reduzir a quantidade de proteínas mal funcionais no músculo dos animais operados, o que se associou à melhora das propriedades contráteis do tecido”, disse Campos.

“O exercício é um estresse transiente que deixa uma memória no organismo, nesse caso por meio do sistema autofágico. Quando surgem outros estresses, ele está mais preparado para respondê-los e combatê-los”, disse Ferreira.

Prova de conceito

Para tornar ainda mais precisa a correlação entre prática de exercícios e autofagia, os autores do estudo fizeram outros dois experimentos. Em um deles, um terceiro grupo de animais teve o gene ATG7 desligado no músculo esquelético.

O ATG7 é responsável por fabricar uma vesícula (autofagossomo) em volta das organelas disfuncionais e transportá-las para o lisossomo, onde são incineradas. Esse experimento foi importante para provar que a autofagia é importante na biologia muscular, uma vez que animais saudáveis (sem cirurgia) com o gene desligado apresentaram disfunção muscular.

No outro experimento, foi administrada aos ratos que tiveram a lesão no nervo isquiático e ratos do grupo controle (sem lesão) uma droga, a cloroquina, que aumenta o pH (acidez) do lisossomo. Dessa forma, ela prejudica a autofagia ao impossibilitar a incineração das proteínas defeituosas.

“Os testes mostraram que o músculo dos animais do grupo controle tratados com a droga desenvolvia menos força em relação ao grupo não tratado. A cloroquina não teve efeito no músculo dos animais que haviam sido submetidos à cirurgia, provando que a inibição da autofagia é crítica na disfunção muscular induzida pela falta de estímulo”, disse Ferreira à Agência FAPESP.

Os autores do estudo ressaltam que a pesquisa não busca encontrar apenas um tratamento para o pinçamento do nervo isquiático, que ocorre em uma parcela da população.

A ideia é utilizá-lo como um modelo experimental de disfunção muscular induzida por falta de estímulo (desuso) a fim de entender os processos celulares envolvidos na degeneração muscular. Isso facilitará o desenvolvimento de novas intervenções farmacológicas e não farmacológicas capazes de minimizar ou reverter esse grande problema da nossa sociedade: a disfunção muscular decorrente da falta de movimento, principalmente na população idosa.

“Se identificarmos uma molécula capaz de manter seletivamente o sistema autofágico em alerta, semelhante ao que ocorre no exercício físico, poderemos eventualmente desenvolver algum medicamento que possa ser administrado em pessoas com disfunção muscular decorrente da falta de estímulo, como aquelas com membros imobilizados, pacientes acamados por muito tempo ou mesmo portadores de doenças musculares [degenerativas]”, disse Ferreira.

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