Células de gordura podem ser reservatório do novo coronavírus
Pesquisa feita pela Unicamp pode ajudar a entender por que indivíduos obesos correm mais risco de desenvolver a forma grave da covid-19
Tamires Vitorio
Publicado em 13 de julho de 2020 às 12h04.
Última atualização em 13 de julho de 2020 às 12h05.
Experimentos conduzidos na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) confirmam que o novo coronavírus (SARS-CoV-2) pode ser capaz de infectar células adiposas humanas e de se manter em seu interior. Esse dado pode ajudar a entender por que indivíduos obesos correm mais risco de desenvolver a forma grave da covid-19.
Além de serem mais acometidos por doenças crônicas, como diabetes, dislipidemia e hipertensão – que por si só são fatores de risco –, os obesos teriam, segundo a hipótese investigada na Unicamp, um maior reservatório para o vírus em seu organismo.
“Temos células adiposas espalhadas por todo o corpo e os obesos as têm em quantidade e tamanho ainda maior. Nossa hipótese é a de que o tecido adiposo serviria como um reservatório para o SARS-CoV-2. Com mais e maiores adipócitos, as pessoas obesas tenderiam a apresentar uma carga viral mais alta. No entanto, ainda precisamos confirmar se, após a replicação, o vírus consegue sair da célula de gordura viável para infectar outras células”, explica à Agência FAPESP Marcelo Mori professor do Instituto de Biologia (IB) e coordenador da investigação.
Os experimentos com adipócitos humanos estão sendo conduzidos in vitro, com apoio da FAPESP, no Laboratório de Estudos de Vírus Emergentes (Leve). A unidade tem nível 3 de biossegurança, um dos mais altos, e é administrada por José Luiz Proença Módena, professor do IB e coordenador, ao lado de Mori, da força-tarefa criada pela Unicamp para enfrentar a pandemia (leia mais em agencia.fapesp.br/32861). Os resultados ainda são preliminares e não foram publicados.
Como explica Mori, não é em qualquer tipo de célula humana que o SARS-Cov-2 consegue entrar e se replicar de forma eficiente. Algumas condições favoráveis precisam estar presentes, entre elas uma proteína de membrana chamada ACE-2 (enzima conversora de angiotensina 2, na sigla em inglês) à qual o vírus se conecta para invadir a célula.
Nas comparações feitas in vitro, os pesquisadores da Unicamp observaram que o novo coronavírus infecta melhor os adipócitos do que, por exemplo, as células epiteliais do intestino ou do pulmão.
E a “dominação” da célula de gordura pelo vírus torna-se ainda mais favorecida quando o processo de envelhecimento celular é acelerado com uso de radiação ultravioleta. Ao medir a carga viral 24 horas após esse procedimento, os pesquisadores observaram que as células adiposas envelhecidas apresentavam uma carga viral três vezes maior do que as células “jovens”.
“Usamos a radiação UV para induzir no adipócito um fenômeno conhecido como senescência, que ocorre naturalmente com o envelhecimento. Ao entrarem em senescência, as células expressam moléculas que recrutam para o local células do sistema imune. É um mecanismo importante para proteger o organismo de tumores, por exemplo”, explica Mori.
O problema, segundo o pesquisador, é que tanto nos indivíduos obesos como nos idosos e nos portadores de doenças crônicas as células senescentes começam a se acumular no tecido adiposo, tornando-o disfuncional. Tal fato pode resultar no desenvolvimento ou no agravamento de distúrbios metabólicos.
Ainda de acordo com Mori, o envelhecimento acelerado do adipócito induzido pela radiação UV mimetiza o que costuma ocorrer no tecido adiposo de indivíduos obesos e nos idosos.
“Recentemente, começaram a ser testados em humanos alguns compostos capazes de matar células senescentes: são as chamadas drogas senolíticas. Nos experimentos com animais, esses compostos se mostraram capazes de prolongar o tempo de vida e reduzir o desenvolvimento de doenças crônicas associadas ao envelhecimento”, conta Mori.
O grupo da Unicamp teve então a ideia de testar o efeito de algumas drogas senolíticas no contexto da infecção pelo SARS-CoV-2. Em experimentos feitos com células epiteliais do intestino humano, observou-se que o tratamento reduziu a carga viral das células submetidas à radiação UV.
“Alguns compostos chegaram a inibir em 95% a presença do vírus. Agora pretendemos repetir o experimento usando adipócitos”, conta Mori.
Até o momento, foram usados nos testes adipócitos diferenciados in vitro a partir de um tipo de célula-tronco mesenquimal (pré-adipócito) isolada de pacientes não infectados e submetidos a cirurgia bariátrica. Após a diferenciação, as células foram expostas a uma linhagem do novo coronavírus isolada de pacientes brasileiros e cultivada em laboratório por pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (leia mais em: agencia.fapesp.br/32692).
As etapas seguintes da pesquisa incluem a análise de adipócitos obtidos diretamente de pacientes com diagnóstico confirmado de COVID-19, obtidos por meio de biópsia. “Um dos objetivos é avaliar se essas células encontram-se de fato infectadas pelo SARS-CoV-2 e se o vírus está se replicando em seu interior.
Também serão conduzidas análises de proteômica para descobrir se a infecção pelo SARS-CoV-2 afeta o funcionamento do adipócito e se deixa alguma sequela de longo prazo na célula. Essa etapa da pesquisa será feita em colaboração com o professor do IB-Unicamp Daniel Martins de Souza.
“A ideia é comparar todas as proteínas que estão expressas nas células com e sem o vírus. Desse modo, conseguimos identificar as vias de sinalização que são alteradas pela infecção e como isso impacta o funcionamento celular”, explica Mori.
Envelhecimento precoce
No Departamento de Bioquímica e Biologia Tecidual do IB-Unicamp, Mori tem se dedicado nos últimos anos a estudar a biologia do envelhecimento. Em seu projeto atual, o pesquisador investiga por que idosos e pessoas com doenças associadas ao envelhecimento são mais suscetíveis às complicações da COVID-19.
“Esse achado de que adipócitos senescentes apresentam maior carga viral aponta um possível link entre doenças metabólicas, envelhecimento e maior severidade da COVID-19”, avalia o pesquisador.
No entanto, ainda não se sabe se a carga viral é mais elevada nessas células porque elas se tornam mais facilmente infectáveis quando expostas ao SARS-CoV-2 em cultura ou se a quantidade de vírus que entra é a mesma, mas o patógeno consegue se replicar mais. “Precisamos fazer novos experimentos e acompanhar a evolução da carga viral ao longo do tempo”, explica Mori.
Caso se confirme que o vírus causa algum tipo de impacto metabólico no adipócito, afirma Mori, as implicações poderão ser grandes. “As células de gordura têm um papel muito importante na regulação do metabolismo e na comunicação entre vários tecidos. Elas sinalizam para o cérebro quando devemos parar de comer, sinalizam para o músculo quando é preciso captar a glicose presente no sangue e atuam como um termostato metabólico, dizendo quando há necessidade de gastar ou armazenar energia. Pode ser que o vírus interfira nesses processos, mas por enquanto isso é apenas especulação”, diz o pesquisador.
Esses aspectos estão sendo investigados em parceria com o pesquisador Luiz Osório Silveira Leiria, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Peto (FMRP-USP). Leiria coordena um projeto – apoiado pela FAPESP – que tem como objetivo descobrir o papel de determinados lipídeos no controle da inflamação causada no organismo pelo SARS-CoV-2.
“A pesquisa também conta com uma ampla rede de colaboradores que integram a Força-Tarefa Unicamp Contra a COVID-19”, ressalta Mori.