Por que a Escandinávia é terra fértil para livros policiais
Depois do sucesso avassalador de Millenium, de Stieg Larsson, o mundo se rende à ficção criminal que vem da Escandinávia
Da Redação
Publicado em 3 de agosto de 2011 às 16h45.
O cheiro de podre que Hamlet sentia no reino da Dinamarca se espalhou por toda a região nórdica. Renda-se às evidências. Em Oslo, um serial killer deixa pentagramas em forma de diamantes vermelhos nas pálpebras das vítimas, de quem costuma arrancar um dedo. Na praia de uma cidade da Suécia foi encontrado o corpo de uma jovem; sob o cadáver jaziam mais dois esqueletos de mulheres, assassinadas há décadas. Em Jukkasjärvi, outra aldeia sueca, uma pastora é enforcada em plena igreja. Na Lapônia, lar do Papai Noel, o cúmulo: uma onda de homicídios de velhinhos. Isso tudo em três anos, fazendo da Escandinávia um lugar bem mais perigoso do que o Iraque ou o Congo.
Essas cenas vêm de enredos de romances policiais escandinavos lançados no Brasil. A frente fria pega carona, claro, no sucesso de Stieg Larsson — cuja trilogia Millenium vendeu aqui mais de 350 mil exemplares, 66 milhões no mundo todo (só perde para Paulo Coelho, e escreve muito melhor). O enigma é: por que uma região aparentemente tão pacífica deu ao mundo tantos autores criminais de alto nível? O que tem de diferente na água (ou vodca) que eles bebem? Algumas conjecturas: o longo inverno mantém os escandinavos dentro de casa por muito tempo — estão entre as nações com mais leitores no planeta. E eles amam romances policiais.
Assim, gerações e gerações educadas lendo sobre crimes aprenderam todos os truques do gênero. Outra é que romances policiais vendem. Quase todos os autores agora lançados já se aventuraram em poesia, teatro, romance psicológico e até mesmo ficção experimental, antes de mergulhar nesse gênero com consistência — e com o engenho que caracteriza a cultura nórdica. Talvez o mais peculiar tempero para o sucesso escandinavo esteja na sutil noção de paradoxo. Em quase todos os romances, o cenário evoca a tranquilidade e a ordem que esperamos dessas gélidas sociedades; quando um crime aparece, é o fim do mundo. Uma morte suja contrasta mais com um campo de neve do que com um beco de Los Angeles ou Londres.
O finado Stieg Larsson explorava esse chiaroscuro entre crimes cruéis e lugares bacanas de Estocolmo. Uma cena de A Garota Que Brincava com Fogo se passa numa unidade da Ikea, famosa loja de design sueca. Ele aproxima violentamente um mundo asséptico e cosmopolita, em que as pessoas brincam com iPods, iPads e outros gadgets, a delitos surpreendentes envolvendo ativistas de esquerda, hackers obsessivos, burocratas corruptos, molestadores de crianças e jornalistas investigativos. Como seu herói, Mikael Blomkvist — que será vivido por Daniel Craig no remake de Os Homens Que Não Amavam as Mulheres, dirigido por David Fincher, com estreia prevista para dezembro.
Já os assassinatos nos livros de Henning Mankell ocorrem quase sempre numa aprazível fazenda, durante um raft numa cachoeira ou em um prado isolado. Em O Homem de Beijing, a rotina bucólica do interior sueco mal é interrompida por conta do crime — apesar de se tratar do assassinato de dezenove velhinhos na Lapônia. A hitchkokiana abertura de A Estrela do Diabo, do norueguês Jo Nesbo, descreve meticulosamente todo o percurso da água do apartamento onde foi cometido um crime até pingar, sangrenta, na sala de um modorrento casal de meia-idade. A precisão no mecanismo do suspense, aliado ao senso de contraste, deixam tudo muito mais assustador na literatura criminal escandinava. Elementar, diria o nosso caro Blomkvist.
Jo Nesbo, o badboy do bem
Oslo derrete no calor do verão (sim, isso é possível) quando uma jovem é encontrada morta, sem um dedo e com um diamante sob sua pálpebra. O detetive Harry Hole é designado para o caso descrito em A Estrela do Diabo (Record). Paranoico, alcoólatra, depressivo e não-confiável, Hole (pronuncia-se “rulé”) é tudo menos um herói. Seu inventor, Jo Nesbo, novo astro do romance policial escandinavo, é seu contrário. Ex-corretor de ações, ex-jornalista, roqueiro, amante de esportes radicais e escritor compulsivo — autor de 12 livros, todos escritos após os 37 anos —, paga de tigroso nas fotos de divulgação e, em seu autorretrato, sugere ter “lábios sensuais que deixam as mulheres loucas”. Elenca Nabokov, Knut Hamsun, Miles Davis, Tom Waits e Neil Young estão entre suas influências, além, curiosamente, da seleção brasileira de 2002. Ele afirma não ter nada em comum com Hole, “a não ser as partes boas” — para criá-lo, misturou o Batman de Frank Miller, o Henry Chinaski de Bukowski e alguns personagens tristes de Ibsen. Apesar das fanfarronices, Nesbo tem um lado sustentável: sua fundação Harry Hole usa os royalties dos livros para destinar 150 mil reais anuais a projetos em educação na África e Ásia. Nem tudo é perfeito, mas na Escandinávia até badboys fazem o que podem para chegar perto.
Cinco livros para quem gosta de suspense
O Homem de Beijing, de Henning Mankell (Cia. das Letras). Uma juíza investiga a morte de dezenove idosos no norte da Suécia. Distribuída entre quatro continentes, a narrativa desafia as convenções do gênero policial, conduzindo a um vertiginoso labirinto de referências históricas, culturais e geopolíticas.
Gangsters, de Klas Östergren (Record). Na continuação do best-seller Gentlemen, Klas viaja pelo submundo e mixa narrador, escritor e protagonista — aqui, um escritor arruinado. Pessimista e sarcástico na medida, Klas investiga um dos males da perfeita Suécia: a indústria bélica.
Gritos do Passado, de Camilla Läckberg (Planeta). Um cadáver na praia; sob ele, dois esqueletos enterrados décadas atrás. Às voltas com a gravidez de sua mulher, um policial inexperiente investiga o que pode ser a obra de um serial killer com implicações religiosas.
Ecos dos Mortos, de Johan Theorin (Record). Todos os livros desse jovem jornalista se passam na misteriosa ilha de Öland. Esse é especialmente nebuloso: aos 6 anos, Jens desapareceu na forte neblina de Öland. Vinte anos mais tarde, seu avô recebe pelo correio uma sandalinha, fazendo a filha voltar à ilha para investigar.
A Mancha de Sangue, de Asa Lärsson (Planeta). A pastora de uma cidade aparece enforcada na igreja e Rebecka Martinsson, uma advogada contábil (como a autora Asa — que não é parente de Stieg) se mete na investigação. A autora é notória por juntar política e religião em suas tramas.
O cheiro de podre que Hamlet sentia no reino da Dinamarca se espalhou por toda a região nórdica. Renda-se às evidências. Em Oslo, um serial killer deixa pentagramas em forma de diamantes vermelhos nas pálpebras das vítimas, de quem costuma arrancar um dedo. Na praia de uma cidade da Suécia foi encontrado o corpo de uma jovem; sob o cadáver jaziam mais dois esqueletos de mulheres, assassinadas há décadas. Em Jukkasjärvi, outra aldeia sueca, uma pastora é enforcada em plena igreja. Na Lapônia, lar do Papai Noel, o cúmulo: uma onda de homicídios de velhinhos. Isso tudo em três anos, fazendo da Escandinávia um lugar bem mais perigoso do que o Iraque ou o Congo.
Essas cenas vêm de enredos de romances policiais escandinavos lançados no Brasil. A frente fria pega carona, claro, no sucesso de Stieg Larsson — cuja trilogia Millenium vendeu aqui mais de 350 mil exemplares, 66 milhões no mundo todo (só perde para Paulo Coelho, e escreve muito melhor). O enigma é: por que uma região aparentemente tão pacífica deu ao mundo tantos autores criminais de alto nível? O que tem de diferente na água (ou vodca) que eles bebem? Algumas conjecturas: o longo inverno mantém os escandinavos dentro de casa por muito tempo — estão entre as nações com mais leitores no planeta. E eles amam romances policiais.
Assim, gerações e gerações educadas lendo sobre crimes aprenderam todos os truques do gênero. Outra é que romances policiais vendem. Quase todos os autores agora lançados já se aventuraram em poesia, teatro, romance psicológico e até mesmo ficção experimental, antes de mergulhar nesse gênero com consistência — e com o engenho que caracteriza a cultura nórdica. Talvez o mais peculiar tempero para o sucesso escandinavo esteja na sutil noção de paradoxo. Em quase todos os romances, o cenário evoca a tranquilidade e a ordem que esperamos dessas gélidas sociedades; quando um crime aparece, é o fim do mundo. Uma morte suja contrasta mais com um campo de neve do que com um beco de Los Angeles ou Londres.
O finado Stieg Larsson explorava esse chiaroscuro entre crimes cruéis e lugares bacanas de Estocolmo. Uma cena de A Garota Que Brincava com Fogo se passa numa unidade da Ikea, famosa loja de design sueca. Ele aproxima violentamente um mundo asséptico e cosmopolita, em que as pessoas brincam com iPods, iPads e outros gadgets, a delitos surpreendentes envolvendo ativistas de esquerda, hackers obsessivos, burocratas corruptos, molestadores de crianças e jornalistas investigativos. Como seu herói, Mikael Blomkvist — que será vivido por Daniel Craig no remake de Os Homens Que Não Amavam as Mulheres, dirigido por David Fincher, com estreia prevista para dezembro.
Já os assassinatos nos livros de Henning Mankell ocorrem quase sempre numa aprazível fazenda, durante um raft numa cachoeira ou em um prado isolado. Em O Homem de Beijing, a rotina bucólica do interior sueco mal é interrompida por conta do crime — apesar de se tratar do assassinato de dezenove velhinhos na Lapônia. A hitchkokiana abertura de A Estrela do Diabo, do norueguês Jo Nesbo, descreve meticulosamente todo o percurso da água do apartamento onde foi cometido um crime até pingar, sangrenta, na sala de um modorrento casal de meia-idade. A precisão no mecanismo do suspense, aliado ao senso de contraste, deixam tudo muito mais assustador na literatura criminal escandinava. Elementar, diria o nosso caro Blomkvist.
Jo Nesbo, o badboy do bem
Oslo derrete no calor do verão (sim, isso é possível) quando uma jovem é encontrada morta, sem um dedo e com um diamante sob sua pálpebra. O detetive Harry Hole é designado para o caso descrito em A Estrela do Diabo (Record). Paranoico, alcoólatra, depressivo e não-confiável, Hole (pronuncia-se “rulé”) é tudo menos um herói. Seu inventor, Jo Nesbo, novo astro do romance policial escandinavo, é seu contrário. Ex-corretor de ações, ex-jornalista, roqueiro, amante de esportes radicais e escritor compulsivo — autor de 12 livros, todos escritos após os 37 anos —, paga de tigroso nas fotos de divulgação e, em seu autorretrato, sugere ter “lábios sensuais que deixam as mulheres loucas”. Elenca Nabokov, Knut Hamsun, Miles Davis, Tom Waits e Neil Young estão entre suas influências, além, curiosamente, da seleção brasileira de 2002. Ele afirma não ter nada em comum com Hole, “a não ser as partes boas” — para criá-lo, misturou o Batman de Frank Miller, o Henry Chinaski de Bukowski e alguns personagens tristes de Ibsen. Apesar das fanfarronices, Nesbo tem um lado sustentável: sua fundação Harry Hole usa os royalties dos livros para destinar 150 mil reais anuais a projetos em educação na África e Ásia. Nem tudo é perfeito, mas na Escandinávia até badboys fazem o que podem para chegar perto.
Cinco livros para quem gosta de suspense
O Homem de Beijing, de Henning Mankell (Cia. das Letras). Uma juíza investiga a morte de dezenove idosos no norte da Suécia. Distribuída entre quatro continentes, a narrativa desafia as convenções do gênero policial, conduzindo a um vertiginoso labirinto de referências históricas, culturais e geopolíticas.
Gangsters, de Klas Östergren (Record). Na continuação do best-seller Gentlemen, Klas viaja pelo submundo e mixa narrador, escritor e protagonista — aqui, um escritor arruinado. Pessimista e sarcástico na medida, Klas investiga um dos males da perfeita Suécia: a indústria bélica.
Gritos do Passado, de Camilla Läckberg (Planeta). Um cadáver na praia; sob ele, dois esqueletos enterrados décadas atrás. Às voltas com a gravidez de sua mulher, um policial inexperiente investiga o que pode ser a obra de um serial killer com implicações religiosas.
Ecos dos Mortos, de Johan Theorin (Record). Todos os livros desse jovem jornalista se passam na misteriosa ilha de Öland. Esse é especialmente nebuloso: aos 6 anos, Jens desapareceu na forte neblina de Öland. Vinte anos mais tarde, seu avô recebe pelo correio uma sandalinha, fazendo a filha voltar à ilha para investigar.
A Mancha de Sangue, de Asa Lärsson (Planeta). A pastora de uma cidade aparece enforcada na igreja e Rebecka Martinsson, uma advogada contábil (como a autora Asa — que não é parente de Stieg) se mete na investigação. A autora é notória por juntar política e religião em suas tramas.