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Nas trincheiras do humor

Discussão em torno da piada de mau gosto de Rafinha Bastos contra Wanessa Camargo é apenas o episódio mais recente de uma história marcada por alfinetadas, ira e risadas

Rafinha Bastos, ex-apresentador do CQC: no centro de uma guerra  (Omar Paixão/Você S.A.)

Rafinha Bastos, ex-apresentador do CQC: no centro de uma guerra (Omar Paixão/Você S.A.)

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Da Redação

Publicado em 7 de agosto de 2012 às 19h57.

A piada de mau gosto disparada por Rafinha Bastos contra a cantora Wanessa Camargo – e seu bebê – causou uma forte reação negativa. Em contraposição àqueles que o criticaram, surgiu uma brigada de defensores.

Para esses, a questão mais importante não é o bom gosto do humor, mas a liberdade que o humorista deve ter para fazer a graça que bem entender.

Foi o que disse João Pereira Coutinho, articulista da Folha de S. Paulo, que em artigo sentenciou que, em torno do imbróglio Rafinha Bastos, “a questão principal passa por saber se uma sociedade livre deve conceder espaço para que opiniões fortes, grotescas e até ofensivas possam ser proferidas em público”.

 Danilo Gentili, sócio de Rafinha no clube Comedians, em São Paulo, foi outro que recorreu ao direito do comediante à liberdade de falar o que quiser, em defesa do colega. Em entrevista ao site da revista Caras, Gentili apregoou que "qualquer comediante tem que ter o direito de falar o que quer, de testar" uma piada.

"Se não deu certo, se alguém não gostou, desculpa, vamos para a próxima", disse. Legítimo, pena ele ter se esquecido de que também deve dar liberdade para que os outros o critiquem.

A liberdade deve vir, de fato, em primeiro lugar. Justamente por ser uma ferramenta que desafia com frequência a autoridade – seja a do governante, seja a da maioria – o humor costuma ser a primeira vítima das sociedades autoritárias.

Mas, uma vez que se esteja de acordo que o Brasil de hoje não é o Brasil da ditadura militar, muito menos um país sem canais de expressão para quem quiser usá-los (nem que seja com um blog), resumir a discussão a isso é deixar de fora muita coisa.
 
Se a história do humor é, em boa parte, a história do esforço de artistas e intelectuais para garantir o seu direito de dizer as coisas mais ultrajantes em público, ela é também uma história de distinções sutis e de gêneros que foram lapidando suas características ao longo dos séculos, à medida que encontravam seus gênios e grandes talentos. Humor é, sim, algo que se discute. E o momento é bem propício para fazer isso no Brasil.
 
A história está repleta de inimigos do humor. Na Antiguidade, Platão (428-348) o rechaçou, alegando que a seriedade das reflexões filosóficas não permitia descontração.

Condenado pela Igreja Católica, que no período da Inquisição chegou a vê-lo como sintoma de possessão demoníaca, na Idade Média o riso sobreviveu em festejos populares, de caráter carnavalesco ou comemorativo de colheitas e de estações, e nos palácios, na figura do bobo da corte, sempre subordinado aos mandos e desmandos do rei.

A liberdade para criar e para fazer oposição pelo riso só retornaria com a do pensamento, no Renascimento. Exemplo maior dessa liberdade foram os episódios em que a antes temida figura papal surgiu ridicularizada em versos e em ilustrações que a mostravam na forma de um asno.


 Uma outra narrativa corre em paralelo a essa: a da evolução das formas de humor. Com suas peças, Aristófanes, o pai da comédia grega, golpeava políticos e o que ele considerava excessivo nas mudanças de costumes da Grécia Antiga.

Em Roma, no auge do império, a classe dominante enfrentou o humor corrosivo de Juvenal. Na série de poemas intitulados Sátiras, ele enfileirou boutades como “em Roma tudo se compra” e “alguns tiveram a forca como recompensa do próprio crime. Outros tiveram a coroa”, símbolos do espírito oposicionista em que o humor é capaz de plasmar-se.

Na Idade Média, o clérigo François Rabelais fez uso de lendas populares cômicas, pantominas e romances de tradição oral e, com um traço de escatologia, deu vida a poderosas obras cômicas como Pantagruel e Gargântua.

Alheio à consideração de filósofos e à força contrária dos políticos, o riso continuava a engendrar novas formas de humor. Na Inglaterra elisabetana, despojado de palavrões e gestos obscenos, ele se refinou. Nascia aí o reputado humor inglês, marcado pela sutileza e pela inteligência. Fazer rir não era uma proposta gratuita, apoiada em argumentos chulos.

Estava, antes, ligada a uma visão de mundo que autores como William Shakespeare imprimiam em suas peças. O riso era uma lente até para enxergar a tragédia: a condição humana finita, grotesca e frágil passou a ser risível.

Como contraponto ao sisudo Platão, “que nunca foi visto a rir muito”, o Iluminismo oferece o exemplo de um filósofo igualmente carrancudo – mas amigo do riso. “Voltaire disse que os céus nos deram duas coisas para suportar as vicissitudes da vida: a esperança e o sono. Poderia ter acrescentado o riso”, disse Immanuel Kant, autor da célebre Crítica da Razão Pura.

 À beira da virada para o século XX, o humor foi definitivamente assimilado pela imprensa e pela intelectualidade e abriu caminho para o surgimento de grandes artistas cômicos.

Embrenhado na sociedade, foi absorvido pela indústria cultural, que para ele reservou um gênero, o cinema, onde nomes como Charles Chaplin, Buster Keaton e Harold Loyd, além dos irmãos Marx, se saíram com grandes sacadas. Era a gênese do que mais tarde seria levado às mais risíveis consequências com Mel Brooks, Peter Sellers e Woody Allen.
 
Pontos fundamentais na forma e no conteúdo do humor se estabeleceram principalmente no pós-guerra. No rádio, e mais tarde na televisão, formatos como os sitcoms e os esquetes se consagraram, tendo como matiz os pequenos espetáculos improvisados com influência do teatro e da Commedia dell’Arte italiana, nascidos 300 anos antes.


O stand up comedy, atualmente em alta no Brasil, grassava então nos Estados Unidos, onde chegou para fazer a América dois séculos depois de surgir em espetáculos solos de artistas ingleses e irlandeses, na Grã-Bretanha. De Bill Cosby, passando por Jerry Seinfield, até Chris Rock, Sarah Silverman e Louis CK, os expoentes do gênero traçaram linhas claras de atuação.

A principal delas é que humor é, sobretudo, um ponto de vista, uma maneira como se enxerga o mundo – não uma redoma da qual se possa entrar e sair sem assumir responsabilidades.

A liberdade de fazer piada não torna o comediante imune a críticas. A piada de Rafinha Bastos que esquentou contendas, por exemplo, não tem função social ou política. Nem graça. Não cumpre o que, segundo o historiador da USP Elias Thomé Saliba, autor do livro As Raízes do Riso, é o seu papel: alterar sentidos, subverter realidades. Se uma piada não é capaz disso, perde-se na própria nulidade.
 
Rafinha Bastos pisou na bola porque não seguiu nenhuma dessas ideias, em piadas de mau gosto como aquela em que diz que comeria Wanessa e seu bebê ou a outra em que defende que mulher feia agradeça se for estuprada. As piadas eram esvaziadas tanto de função quanto de graça.

Talvez Rafinha, que nunca se desculpou por nenhuma delas, estivesse seguindo outra linha do stand up: a da auto-depreciação. O gênero que revelou o humorista da Band se notabilizou também por isso. Fazer piada consigo mesmo é uma forma de se antecipar aos ataques – e também de se colocar em evidência.

Mas uma auto-depreciação voluntária, entenda-se bem, não aquela que Rafinha criou para si com uma série de erros mal remendados por posturas arrogantes. Mas o mais engraçado é que ele não percebe.

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