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Lang Lang: um super-herói à chinesa

Como Lang Lang, o pianista fã de hip-hop e videogame, tornou-se um ídolo pop visto como salvador pela indústria fonográfica

Aos olhos do Ocidente, Lang Lang estreou em 1997, ao gravar para o selo independente norte-americano Telarc (Andreas Praefcke/Wikimedia Commons)

Aos olhos do Ocidente, Lang Lang estreou em 1997, ao gravar para o selo independente norte-americano Telarc (Andreas Praefcke/Wikimedia Commons)

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Da Redação

Publicado em 22 de maio de 2012 às 15h51.

São Paulo - Lang Lang não é apenas um pianista erudito. Trata-se da ponta de lança musical de um processo muito mais amplo de expansão da influência chinesa no mundo. Só que, diferentemente dos têxteis, brinquedos e lojinhas de R$ 1,99 que se alastram pelo planeta para o desespero dos concorrentes locais, o intérprete é visto como uma miragem pela moribunda indústria fonográfica, ansiosa pelo enorme mercado chinês de gravações e concertos de música clássica.

Só um país com 1,3 bilhão de habitantes poderia ter 100 milhões de estudantes de música – e de fãs potenciais do compatriota Lang Lang. O instrumentista, que chega a São Paulo para dois concertos neste mês, parece ser a figura mais propensa a conquistar novos consumidores: venerado pelos adolescentes chineses, é, aos 29 anos, um dos pianistas mais bem remunerados do mundo.

Aos olhos do Ocidente, Lang Lang estreou em 1997, ao gravar para o selo independente norte-americano Telarc. Logo foi contratado pela Deutsche Grammophon e, há pouco mais de um ano, transferiu-se para a Sony, o que lhe rendeu luvas de 3 milhões de dólares.

É mixaria perto do passe de jogadores de futebol, mas uma fortuna improvável no mundo da música clássica. Meses atrás, o jornalista britânico Norman Lebrecht denunciou que as listas de maiores vendas de CDs clássicos da Billboard são uma farsa: para figurar em primeiro lugar, o álbum não precisa vender mais do que 100 cópias.

Em um mercado anêmico, que sobrevive hoje basicamente de apresentações ao vivo, Lang Lang é uma espécie de bilhete premiado. Se 1% da população chinesa comprar um de seus CDs, o investimento estará pago pelas próximas décadas. Essa expectativa não é exagerada: ela se baseia no fato de que, na China, a música clássica tem uma imagem de juventude, parecida com a do pop no resto do mundo.


Ginasta

Neymar e Messi lançam chuteiras? Pois Lang Lang já tem seu próprio modelo de tênis Adidas, em tiragem especial de 100 mil pares. Nas apresentações, ele veste paletós acintosamente acetinados, de tons vivíssimos. É fã do ex-jogador de basquete Michael Jordan e do golfista Tiger Woods. Adora hip-hop.

Em resumo: é o que o público chinês quer consumir. Martha Argerich jamais gravaria, como fez Lang Lang, o vídeo, visto por 1,7 milhão de pessoas no YouTube, em que toca um trecho do Concerto Nº 3 de Prokofiev – justamente a peça que celebrizou a pianista argentina. O músico intercala sua performance com gestos de kung fu inspirados no jogo de videogame Street Fighter. É hilário, engraçado, vivo. Lang Lang adora a música clássica, mas não a sacraliza.

“Ele toca como um ginasta”, cutucou anos atrás o respeitado crítico Michael Kimmelman, do jornal The New York Times. Há verdade e veneno na observação. Tecnicamente, o intérprete é irrepreensível. O problema está no que os críticos identificam como ingenuidade artística. Lang entende a música clássica ocidental como uma técnica. E isso tem a ver com a história.

Um cravo para o imperador

Em 1601, quando o jesuíta italiano Matteo Ricci desembarcou em Pequim disposto a iniciar a cristianização da China, trazia um cravo de presente para o imperador Wanli, da dinastia Ming. Ricci esperou nove anos até ser recebido na Cidade Imperial. Ao ver o desconhecido instrumento, o soberano encantou-se e quis ter aulas.

Outros jesuítas instalaram órgãos de igreja por lá. Era o primeiro contato dos chineses com a música clássica ocidental. No século seguinte, o imperador Kangxi aprendeu a tocar cravo e fez publicar um manual com ensinamentos ocidentais e chineses lado a lado. Mais tarde, o imperador Qianlong chegou a ter seu exército de eunucos cantando como os castrati italianos.


Mas o impulso decisivo para o desenvolvimento da música clássica na China foi a chegada a Xangai de refugiados russos, entre eles czaristas e judeus, expulsos pela Revolução de 1917. No ano seguinte, aportou na cidade o pianista e maestro italiano Mario Paci, que, doente, lá permaneceu e acabou montando a primeira orquestra de música ocidental da China.

Décadas depois, a expansão do gênero foi interrompida, no único episódio histórico em que o piano foi banido de um país – no caso, pela Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung, que, entre 1966 e 1976, destruiu instrumentos e partituras. Dezenas de professores dos conservatórios se suicidaram e sinfonias ocidentais só voltaram a ser executadas após a morte de Mao.

De lá para cá, o piano paulatinamente deixou de ser um “corpo estranho”. Hoje, é responsável pelo “grande salto” do país na área musical. O maior boom do instrumento no mundo se deu justamente via Lang Lang. Quase tudo na China tem dimensões monumentais, e a música clássica não é mais exceção.

O Conservatório de Sichuan, em Chengdu, que possui 800 salas para estudo de piano, está concluindo uma ambiciosa ampliação, que o deixará com 10 mil. É um dos nove megaconservatórios do país, para onde se encaminham os aspirantes a Lang Lang. Seu instrumento está em primeiro lugar na preferência dos estudantes chineses, seguido por violino e violoncelo – estima-se em 50 milhões o total de crianças e adolescentes martelando diariamente pianos de armário.

Se isso garante um mercado gigante, representa também uma concorrência terrível. Desde muito cedo, Lang Lang mentalizou que precisaria ser “o número 1”. A família pobre investiu o que tinha e o que não tinha. O pai largou o emprego e a mãe sustentou marido e filho em Pequim com um salário de telefonista em Shenyang.

É não apenas curioso mas também sintomático que a educação musical chinesa seja famosa pelo método Suzuki, de treinamento mecânico baseado em repetição e memorização. Quando se fixou nos Estados Unidos, Lang Lang foi criticado por ter técnica demais e sentimento de menos – ouviu isso nas aulas do pianista e regente Daniel Barenboim. Resultado: o chinês logo se bandeou para os maneirismos exagerados.


Tornou-se over. Em vez de uma lágrima, chora convulsivamente ao piano. Em vez de um meio sorriso, estoura em gargalhadas, como se o público precisasse de doses exageradas de emoção e virtuosismo para se interessar pelo que rola no palco. “Quero reproduzir a sensação do balanço de Tiger Woods e da enterrada de Michael Jordan”, explica.

De que ele sabe tocar piano, ninguém duvida. Que tem uma técnica fenomenal, superlativa, também é óbvio. Falta controlar os excessos. Mas, se justamente os excessos – tanto ao piano quanto no modo de se vestir – constituem a razão de seu sucesso planetário, não seria o caso de nos perguntarmos, como sugere Kimmelman, “o que sua maneira de tocar diz sobre nós mesmos”?

Ela indicaria que somos parte de uma sociedade do espetáculo, em que o show não pode parar – e as novíssimas atrações precisam se suceder vertiginosamente, cada uma mais extravagante e bizarra que a anterior. Engrenagem perversa, em que tudo se faz para chamar a atenção de nossos ouvidos.

Em sua precoce autobiografia, Lang Lang diz que, em 2000, aos 18 anos, teve uma das maiores emoções de sua vida: “Eu faria os concertos em seguida às apresentações de Evgeny Kissin, um pianista russo dez anos mais velho, que eu adorava desde garotinho. Kissin ocupava a sala de estudos próxima à minha e fiquei empolgado por estar perto do homem que admirava tanto”.

Doze anos depois, a situação se inverte. Lang Lang e Evgeny Kissin integram a atual temporada da Sociedade de Cultura Artística em São Paulo. Desta vez, o chinês toca antes. Kissin, formidável representante da escola russa, apresenta-se em junho. Ambos já estiveram no Brasil.

Agora, o frisson mesmo é por causa de Lang Lang, joia principal da temporada que marca o centenário da Cultura Artística. Vai ser interessante comparar o chinês e o russo em repertórios semelhantes, com um ciclo de confronto direto: ambos tocam os Estudos Opus 25 de Chopin, quintessência do chamado “piano romântico”. Façam suas apostas.

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