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Conheça Nico Muhly, o "Beethoven" pop

Um compositor norte-americano com visual de astro pop é a nova estrela da música de concerto. Sua última ópera teve filme de divulgação no YouTube

Nico Muhli (Divulgação)
DR

Da Redação

Publicado em 2 de novembro de 2011 às 11h45.

Um sujeito perambula pelas ruas e praças do centro de Londres perguntando, pateticamente, se as pessoas querem ser suas amigas, se pode escrever no mural delas, se elas querem ver as suas fotos. Mais adiante, o carente segura um cartaz com a palavra “solteiro”, sai pregando nas coisas post-its com “gostei” escrito e passa a seguir – de modo literal – as passantes que lhe fornecem seu endereço no Twitter. Logo se nota que a pegadinha no YouTube tem uma lógica. Satirizar as relações humanas nas chamadas redes sociais, Facebook, Twitter, Instagram, redes nas quais expomos detalhes de nossa vida a estranhos. Mas... Espera aí. O vídeo Can I Be Your Friend? foi mesmo postado no início de junho pela... English National Opera?!

Sim. Era uma propaganda viral para a ópera Two Boys, do compositor norte-americano Nico Muhly, 30 anos. Foi assistida, antes e depois da estreia, por mais de 1,25 milhão de pessoas. Nada mau. Se algum dos internautas casuais se tornou também um dos 16 mil espectadores presentes ao teatro Coliseum nas sete apresentações da primeira temporada mundial da ópera, na capital inglesa – bem, isso é outro papo. Two Boys talvez não tenha entregado exatamente o que prometia o filmete, ou seja, uma visão descontraída da nossa tecnodependência afetiva. O libreto escrito pelo norte-americano Craig Lucas conta a história de um crime real – até porque baseado em caso parecido numa cidade inglesa – gerado pela relação virtual entre os tais dois garotos. Um deles acredita que está se masturbando online para uma garota gostosa e... O tema está longe do que a maioria tende a achar “apropriado” para uma ópera.

A crítica inglesa se dividiu. Two Boys foi elogiada e malhada mais ou menos na mesma medida. Desafiadora para uns, tediosa para outros. Nico Muhly, contudo, continua sendo considerado quase unanimemente o enfant terrible da música clássica. Esse nativo de Vermont com visual de estrela pop já é elogiado, nas palavras do crítico Alex Ross, da revista The New Yorker, como the real deal – um negócio sério, a verdadeira estrela, o cara. Vale notar que, por mais contemporânea que seja a roupagem de Two Boys, ela está firmemente encravada num dos argumentos mais tradicionais do universo da ópera: alguém se disfarça e assume uma identidade falsa para se aproximar de outro alguém. Com efeitos cômicos ou dramáticos, esse mote está presente em, entre outras óperas, Così Fan Tutte, de Mozart, Fidelio, de Beethoven, e O Barbeiro de Sevilha, de Rossini.

Renunciando à poligamia

Uma segunda ópera de Muhly estreia em novembro, no teatro nova-iorquino Gerald W. Lynch: Dark Sisters, com libreto de Stephen Karam, outro norte-americano. Como Two Boys, a produção também não tem um enredo lá muito canônico: uma mulher quer escapar da Igreja Fundamentalista de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, separada dos mórmons quando estes renunciaram à poligamia. Na vida real, a seita é alvo constante de ações da polícia norte-americana por denúncias de abuso sexual. Além da dupla estreia no mundo da ópera, 2011 marca também a primeira gravação de trabalhos de Muhly para uma orquestra de câmara, a inglesa Aurora, regida por Nicholas Collon, 28 anos. Quase simultaneamente à temporada de Two Boys, saiu no exterior pela Decca o CD Seeing Is Believing (algo como “ver para crer”, em inglês), que inclui o concerto para violino elétrico do mesmo nome, interpretado por Thomas Gould, outro inglês de 28 anos.


Muhly já trabalhou com um veterano compatriota minimalista, Philip Glass. Regeu peças dele, tocou-as ao teclado e até o entrevistou para o jornal londrino The Guardian. Assim como Glass se voltou para a música do período barroco e a reduziu às engrenagens, Muhly também busca no passado inspiração para algo inequivocamente novo. Só que ele vai além. Ou aquém. Porque sua musa é ainda anterior: a música do período elisabetano, delicada, elegante, diáfana.

As quatro peças de Muhly em Seeing Is Believing vêm organicamente entremeadas por arranjos instrumentais para três motetos e hinos de William Byrd (1540-1623) e Orlando Gibbons (1583-1625). O que Muhly fez para o Miserere Mei, Deus, de Byrd, em particular, não é nada menos que glorioso.

Sentimento de Religiosidade

Seeing Is Believing, o concerto de 24 minutos num único movimento, alterna passagens suaves e intensas. Elas são quase sempre melodiosas e, por causa do violino elétrico, às vezes fazem pensar no jazz-rock de Jean-Luc Ponty. De acordo com o texto no encarte, o ponto de partida foi “a velha prática de observar e de mapear o céu”. Logo, o violino representa o homem, solitário, lançando acordes ao espaço, que, no caso da música de Muhly para a orquestra, não tem nada de indiferente. Ele usa a expressão “paisagem estelar”. No seu próprio texto, Collon põe duas vezes a palavra “paisagem”. Isso reflete o apelo visual, bem como espacial, da peça.

Trabalhos anteriores de Muhly, como os lançados num CD de 2010, A Good Understanding, já bebem explicitamente no passado. No da música coral inglesa, em particular. Ex-membro de um coro infantil, Muhly gosta de pensar que aquela música está sendo cantada desde o século 16 mais ou menos do mesmo jeito. Aliás, a primeira coisa que ele se lembra de ter interpretado quando criança foi uma peça de Byrd, católico fervoroso que, por questão de sobrevivência, escrevia também para a liturgia anglicana. As obras de Muhly herdaram de suas fontes o sentimento de religiosidade, no mais amplo sentido possível. Por outro lado, elas são “vocais” até quando instrumentais, caso de Seeing Is Believing, o CD.

Naturalmente, Muhly é um garoto de seu tempo. Não tinha como ficar alheio à presença avassaladora da música pop. Já colaborou com artistas como Björk, Antony and The Johnsons e Grizzly Bear. Também já escreveu trilhas para filmes, como O Leitor, de Stephen Daldry, estrelado por Kate Winslet (que conquistou o Oscar 2008 por sua atuação), Ralph Fiennes e David Kross. Ou seja, nada que Purcell ou Mozart não fariam caso tivessem nascido alguns séculos mais tarde. E, sim, claro, Muhly tem página no Facebook e está no Twitter. Ou será um impostor usando seu nome?

Seeing Is Believing (Decca), de Nico Muhly, com regência de Nicholas Collon. Preço médio: R$ 27.

Arthur Dapieve é jornalista e escritor, autor do romance Black Music, entre outros livros.

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Um sujeito perambula pelas ruas e praças do centro de Londres perguntando, pateticamente, se as pessoas querem ser suas amigas, se pode escrever no mural delas, se elas querem ver as suas fotos. Mais adiante, o carente segura um cartaz com a palavra “solteiro”, sai pregando nas coisas post-its com “gostei” escrito e passa a seguir – de modo literal – as passantes que lhe fornecem seu endereço no Twitter. Logo se nota que a pegadinha no YouTube tem uma lógica. Satirizar as relações humanas nas chamadas redes sociais, Facebook, Twitter, Instagram, redes nas quais expomos detalhes de nossa vida a estranhos. Mas... Espera aí. O vídeo Can I Be Your Friend? foi mesmo postado no início de junho pela... English National Opera?!

Sim. Era uma propaganda viral para a ópera Two Boys, do compositor norte-americano Nico Muhly, 30 anos. Foi assistida, antes e depois da estreia, por mais de 1,25 milhão de pessoas. Nada mau. Se algum dos internautas casuais se tornou também um dos 16 mil espectadores presentes ao teatro Coliseum nas sete apresentações da primeira temporada mundial da ópera, na capital inglesa – bem, isso é outro papo. Two Boys talvez não tenha entregado exatamente o que prometia o filmete, ou seja, uma visão descontraída da nossa tecnodependência afetiva. O libreto escrito pelo norte-americano Craig Lucas conta a história de um crime real – até porque baseado em caso parecido numa cidade inglesa – gerado pela relação virtual entre os tais dois garotos. Um deles acredita que está se masturbando online para uma garota gostosa e... O tema está longe do que a maioria tende a achar “apropriado” para uma ópera.

A crítica inglesa se dividiu. Two Boys foi elogiada e malhada mais ou menos na mesma medida. Desafiadora para uns, tediosa para outros. Nico Muhly, contudo, continua sendo considerado quase unanimemente o enfant terrible da música clássica. Esse nativo de Vermont com visual de estrela pop já é elogiado, nas palavras do crítico Alex Ross, da revista The New Yorker, como the real deal – um negócio sério, a verdadeira estrela, o cara. Vale notar que, por mais contemporânea que seja a roupagem de Two Boys, ela está firmemente encravada num dos argumentos mais tradicionais do universo da ópera: alguém se disfarça e assume uma identidade falsa para se aproximar de outro alguém. Com efeitos cômicos ou dramáticos, esse mote está presente em, entre outras óperas, Così Fan Tutte, de Mozart, Fidelio, de Beethoven, e O Barbeiro de Sevilha, de Rossini.

Renunciando à poligamia

Uma segunda ópera de Muhly estreia em novembro, no teatro nova-iorquino Gerald W. Lynch: Dark Sisters, com libreto de Stephen Karam, outro norte-americano. Como Two Boys, a produção também não tem um enredo lá muito canônico: uma mulher quer escapar da Igreja Fundamentalista de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, separada dos mórmons quando estes renunciaram à poligamia. Na vida real, a seita é alvo constante de ações da polícia norte-americana por denúncias de abuso sexual. Além da dupla estreia no mundo da ópera, 2011 marca também a primeira gravação de trabalhos de Muhly para uma orquestra de câmara, a inglesa Aurora, regida por Nicholas Collon, 28 anos. Quase simultaneamente à temporada de Two Boys, saiu no exterior pela Decca o CD Seeing Is Believing (algo como “ver para crer”, em inglês), que inclui o concerto para violino elétrico do mesmo nome, interpretado por Thomas Gould, outro inglês de 28 anos.


Muhly já trabalhou com um veterano compatriota minimalista, Philip Glass. Regeu peças dele, tocou-as ao teclado e até o entrevistou para o jornal londrino The Guardian. Assim como Glass se voltou para a música do período barroco e a reduziu às engrenagens, Muhly também busca no passado inspiração para algo inequivocamente novo. Só que ele vai além. Ou aquém. Porque sua musa é ainda anterior: a música do período elisabetano, delicada, elegante, diáfana.

As quatro peças de Muhly em Seeing Is Believing vêm organicamente entremeadas por arranjos instrumentais para três motetos e hinos de William Byrd (1540-1623) e Orlando Gibbons (1583-1625). O que Muhly fez para o Miserere Mei, Deus, de Byrd, em particular, não é nada menos que glorioso.

Sentimento de Religiosidade

Seeing Is Believing, o concerto de 24 minutos num único movimento, alterna passagens suaves e intensas. Elas são quase sempre melodiosas e, por causa do violino elétrico, às vezes fazem pensar no jazz-rock de Jean-Luc Ponty. De acordo com o texto no encarte, o ponto de partida foi “a velha prática de observar e de mapear o céu”. Logo, o violino representa o homem, solitário, lançando acordes ao espaço, que, no caso da música de Muhly para a orquestra, não tem nada de indiferente. Ele usa a expressão “paisagem estelar”. No seu próprio texto, Collon põe duas vezes a palavra “paisagem”. Isso reflete o apelo visual, bem como espacial, da peça.

Trabalhos anteriores de Muhly, como os lançados num CD de 2010, A Good Understanding, já bebem explicitamente no passado. No da música coral inglesa, em particular. Ex-membro de um coro infantil, Muhly gosta de pensar que aquela música está sendo cantada desde o século 16 mais ou menos do mesmo jeito. Aliás, a primeira coisa que ele se lembra de ter interpretado quando criança foi uma peça de Byrd, católico fervoroso que, por questão de sobrevivência, escrevia também para a liturgia anglicana. As obras de Muhly herdaram de suas fontes o sentimento de religiosidade, no mais amplo sentido possível. Por outro lado, elas são “vocais” até quando instrumentais, caso de Seeing Is Believing, o CD.

Naturalmente, Muhly é um garoto de seu tempo. Não tinha como ficar alheio à presença avassaladora da música pop. Já colaborou com artistas como Björk, Antony and The Johnsons e Grizzly Bear. Também já escreveu trilhas para filmes, como O Leitor, de Stephen Daldry, estrelado por Kate Winslet (que conquistou o Oscar 2008 por sua atuação), Ralph Fiennes e David Kross. Ou seja, nada que Purcell ou Mozart não fariam caso tivessem nascido alguns séculos mais tarde. E, sim, claro, Muhly tem página no Facebook e está no Twitter. Ou será um impostor usando seu nome?

Seeing Is Believing (Decca), de Nico Muhly, com regência de Nicholas Collon. Preço médio: R$ 27.

Arthur Dapieve é jornalista e escritor, autor do romance Black Music, entre outros livros.

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