Humphrey Bogart era elegante, mas também durão
Astro de Casablanca era baixinho, careca e ríspido, porém exalava tal charme que seu destino estava selado: virou um mitológico galã
Da Redação
Publicado em 17 de outubro de 2011 às 16h03.
O terno era quase sempre escuro, com um lencinho a saltar em pontas do bolso superior; a camisa eternamente branca, clássica, ataviada por uma gravata-borboleta de estampado discreto; na cabeça, o indefectível chapéu de feltro, indispensável quando uma capa de chuva, ou melhor, um trench coat, complementava o figurino.
Foi assim, sobriamente elegante, com o manto laico da investigação policial e um cigarro pendurado nos lábios, que Humphrey Bogart se impôs na tela como o protótipo do private eye, o Lancelot das vielas escuras, a mais pura encarnação de Sam Spade e Philip Marlowe, os detetives particulares que Dashiell Hammett e Raymond Chandler legaram à mitologia da literatura e do cinema. Se bem que ele envergava um imaculado summer jacket (sem chapéu, claro) e tinha outro nome (Rick Blaine), outra profissão (dono de cassino) e morava numa cidade bem distante da Califórnia no filme que mais fama lhe deu, Casablanca, e nem paletó precisou usar em Uma Aventura na África para arrebatar o único Oscar de sua carreira.
Durão, sempre. E em qualquer traje; ou mesmo mal-ajambrado, como o Dobbs de O Tesouro de Sierra Madre. Pavio curto, na selva das cidades ninguém mais parecia ter sua coragem, sobretudo a coragem de só dizer “Sim, chefe” quando realmente estava de acordo. Primeiro mocinho existencial da tela, justiceiro melancólico e amargurado como filme noir nunca viu. Igual têmpera manteve em outros gêneros e circunstâncias, com variáveis doses de ceticismo, cinismo, estoicismo e compaixão. Como não admirar um sujeito que preferia perder a mulher amada e o emprego a abrir mão de suas convicções?
Na mais grata lembrança que dele guardo não o vejo, como seria óbvio, se despedindo de Ingrid Bergman no aeroporto de Casablanca ou debruçado sobre a máquina de escrever como o jornalista derrotado pela máfia do ringue em A Última Farsa, sua derradeira imagem na tela, mas sob a chuva e à luz do dia no enterro de Maria Vargas, a condessa descalça imortalizada por Ava Gardner, e naquela cena de Na Solidão da Noite em que ele, na pele de um roteirista de Hollywood, desesperadamente solitário e explosivo, baixa a guarda e faz a Gloria Grahame esta imbatível declaração de amor: “Eu nasci quando você me beijou; eu morri quando você me deixou; eu vivi nos poucos dias em que você me amou”.
Ao contrário do que pensam muitos dos que se iniciaram na cinefilia assistindo aos filmes da nouvelle vague, o culto a Humphrey Bogart não foi iniciado por Jean-Luc Godard, em Acossado. Os estudantes de Harvard já idolatravam Bogie quando Godard ainda fazia críticas de cinema. E Acossado ainda não estreara no mercado americano quando o professor e crítico literário Leslie A. Fiedler recebeu a tese de um aluno da Universidade de Buffalo sobre “o estilo e a metafísica de Bogart”. Na primeira avaliação da “bogartmania”, ali por volta de 1966, o crítico londrino Kenneth Tynan computou meia dúzia de livros e 83 artigos avulsos sobre o ator em língua inglesa, àquela altura acrescidos de mais um, publicado por Tynan na PLAYBOY.
Esses números se multiplicaram exponencialmente na década seguinte, ao sabor de glorificações filmadas ( Gumshoe, Detetive Particular; Sonhos de um Sedutor ) e cantadas ( Don’t Bogart That Joint, My Friend, que vocês ouviram na trilha sonora de Sem Destino ). Em 1997, o ator ganhou um selo comemorativo; em 2006, um pequeno santuário em Nova York: o Humphrey Bogart Place, na altura do número 245 da Rua 123, onde ele cresceu. No início deste ano, uma nova biografia chegou às livrarias : Tough Without a Gun — The Extraordinary Life of Humphrey Bogart, escrita por Stefan Kanfer.
Galã improvável, por não ser bonito nem se impor pela altura (1,73 metro, a mesma de sua terceira e última mulher, Lauren Bacall), Bogart, além do mais, ciciava e era careca. O problema da estatura resolveu-se com um saltinho extra nos sapatos (só desse jeito não fez feio ao lado dos 175 cm de Ingrid Bergman), e o da calvície, com as perucas grifadas de Verita Thompson, com quem Bogie teve um caso que durou 13 anos, o que vale dizer que com a peruqueira ele chifrou suas três esposas. O do cicio, esse ele não só absorveu galhardamente como transformou numa das maneiras de falar mais invejadas e imitadas do cinema.
Como a maioria de seus personagens, era franco, cáustico e mesmo ríspido. Não levava desaforo para casa e todas as formas de pretensão o exasperavam. Mesmo sem uma educação formal (largou a faculdade para servir na Marinha e fazer teatro), leu um bocado (sabia de cor peças e sonetos de Shakespeare, vários diálogos de Platão) e fez-se amigo de vários escritores e intelectuais. Craque no xadrez, chegou a disputar partidas em público, com propósito beneficente, e com soldados americanos durante a Segunda Guerra Mundial (por carta, acredite). Tinha uma espantosa intimidade com cálculos e números, simpatizava com o 2, o 5 e o 7; nunca, porém, se aventurou nos mistérios da numerologia.
Aventuremo-nos.
Ao morrer, em 1o de janeiro de 1957 (câncer no esôfago: muito álcool e dois maços de Chesterfield por dia), Bogart tinha 57 anos e atuara em 75 filmes. Sempre desconfiei que houvesse alguma relação cabalística entre esses números. Sete letras tinha o nome do barco e da produtora do ator (Santana); 12 é a soma de 7 com 5, e dezembro (mês em que o ator nasceu) é o 12o do ano. Humphrey Bogart (14 letras, ou 7 vezes 2) nasceu na noite de Natal de 1899 (1 + 8 + 9 + 9 = 27). Bom parar por aqui, antes que, de onde estiver, o incrédulo Bogey cicie: “ Bullshit!”
O terno era quase sempre escuro, com um lencinho a saltar em pontas do bolso superior; a camisa eternamente branca, clássica, ataviada por uma gravata-borboleta de estampado discreto; na cabeça, o indefectível chapéu de feltro, indispensável quando uma capa de chuva, ou melhor, um trench coat, complementava o figurino.
Foi assim, sobriamente elegante, com o manto laico da investigação policial e um cigarro pendurado nos lábios, que Humphrey Bogart se impôs na tela como o protótipo do private eye, o Lancelot das vielas escuras, a mais pura encarnação de Sam Spade e Philip Marlowe, os detetives particulares que Dashiell Hammett e Raymond Chandler legaram à mitologia da literatura e do cinema. Se bem que ele envergava um imaculado summer jacket (sem chapéu, claro) e tinha outro nome (Rick Blaine), outra profissão (dono de cassino) e morava numa cidade bem distante da Califórnia no filme que mais fama lhe deu, Casablanca, e nem paletó precisou usar em Uma Aventura na África para arrebatar o único Oscar de sua carreira.
Durão, sempre. E em qualquer traje; ou mesmo mal-ajambrado, como o Dobbs de O Tesouro de Sierra Madre. Pavio curto, na selva das cidades ninguém mais parecia ter sua coragem, sobretudo a coragem de só dizer “Sim, chefe” quando realmente estava de acordo. Primeiro mocinho existencial da tela, justiceiro melancólico e amargurado como filme noir nunca viu. Igual têmpera manteve em outros gêneros e circunstâncias, com variáveis doses de ceticismo, cinismo, estoicismo e compaixão. Como não admirar um sujeito que preferia perder a mulher amada e o emprego a abrir mão de suas convicções?
Na mais grata lembrança que dele guardo não o vejo, como seria óbvio, se despedindo de Ingrid Bergman no aeroporto de Casablanca ou debruçado sobre a máquina de escrever como o jornalista derrotado pela máfia do ringue em A Última Farsa, sua derradeira imagem na tela, mas sob a chuva e à luz do dia no enterro de Maria Vargas, a condessa descalça imortalizada por Ava Gardner, e naquela cena de Na Solidão da Noite em que ele, na pele de um roteirista de Hollywood, desesperadamente solitário e explosivo, baixa a guarda e faz a Gloria Grahame esta imbatível declaração de amor: “Eu nasci quando você me beijou; eu morri quando você me deixou; eu vivi nos poucos dias em que você me amou”.
Ao contrário do que pensam muitos dos que se iniciaram na cinefilia assistindo aos filmes da nouvelle vague, o culto a Humphrey Bogart não foi iniciado por Jean-Luc Godard, em Acossado. Os estudantes de Harvard já idolatravam Bogie quando Godard ainda fazia críticas de cinema. E Acossado ainda não estreara no mercado americano quando o professor e crítico literário Leslie A. Fiedler recebeu a tese de um aluno da Universidade de Buffalo sobre “o estilo e a metafísica de Bogart”. Na primeira avaliação da “bogartmania”, ali por volta de 1966, o crítico londrino Kenneth Tynan computou meia dúzia de livros e 83 artigos avulsos sobre o ator em língua inglesa, àquela altura acrescidos de mais um, publicado por Tynan na PLAYBOY.
Esses números se multiplicaram exponencialmente na década seguinte, ao sabor de glorificações filmadas ( Gumshoe, Detetive Particular; Sonhos de um Sedutor ) e cantadas ( Don’t Bogart That Joint, My Friend, que vocês ouviram na trilha sonora de Sem Destino ). Em 1997, o ator ganhou um selo comemorativo; em 2006, um pequeno santuário em Nova York: o Humphrey Bogart Place, na altura do número 245 da Rua 123, onde ele cresceu. No início deste ano, uma nova biografia chegou às livrarias : Tough Without a Gun — The Extraordinary Life of Humphrey Bogart, escrita por Stefan Kanfer.
Galã improvável, por não ser bonito nem se impor pela altura (1,73 metro, a mesma de sua terceira e última mulher, Lauren Bacall), Bogart, além do mais, ciciava e era careca. O problema da estatura resolveu-se com um saltinho extra nos sapatos (só desse jeito não fez feio ao lado dos 175 cm de Ingrid Bergman), e o da calvície, com as perucas grifadas de Verita Thompson, com quem Bogie teve um caso que durou 13 anos, o que vale dizer que com a peruqueira ele chifrou suas três esposas. O do cicio, esse ele não só absorveu galhardamente como transformou numa das maneiras de falar mais invejadas e imitadas do cinema.
Como a maioria de seus personagens, era franco, cáustico e mesmo ríspido. Não levava desaforo para casa e todas as formas de pretensão o exasperavam. Mesmo sem uma educação formal (largou a faculdade para servir na Marinha e fazer teatro), leu um bocado (sabia de cor peças e sonetos de Shakespeare, vários diálogos de Platão) e fez-se amigo de vários escritores e intelectuais. Craque no xadrez, chegou a disputar partidas em público, com propósito beneficente, e com soldados americanos durante a Segunda Guerra Mundial (por carta, acredite). Tinha uma espantosa intimidade com cálculos e números, simpatizava com o 2, o 5 e o 7; nunca, porém, se aventurou nos mistérios da numerologia.
Aventuremo-nos.
Ao morrer, em 1o de janeiro de 1957 (câncer no esôfago: muito álcool e dois maços de Chesterfield por dia), Bogart tinha 57 anos e atuara em 75 filmes. Sempre desconfiei que houvesse alguma relação cabalística entre esses números. Sete letras tinha o nome do barco e da produtora do ator (Santana); 12 é a soma de 7 com 5, e dezembro (mês em que o ator nasceu) é o 12o do ano. Humphrey Bogart (14 letras, ou 7 vezes 2) nasceu na noite de Natal de 1899 (1 + 8 + 9 + 9 = 27). Bom parar por aqui, antes que, de onde estiver, o incrédulo Bogey cicie: “ Bullshit!”