Alicia Alonso: lenda cubana é ovacionada no teatro que leva seu nome em Havana durante a visita do ex-presidente Barack Obama, em 2016 (Chip Somodevilla/Getty Images)
AFP
Publicado em 17 de outubro de 2019 às 14h35.
Última atualização em 17 de outubro de 2019 às 16h40.
A lendária bailarina e coreógrafa cubana Alicia Alonso morreu nesta quinta-feira, em Havana, aos 98 anos, informou o Balé Nacional Cubano. Alonso morreu devido a uma "doença cardiovascular", reportou o noticiário da televisão.
"Alicia Alonso se foi e nos deixa um vazio enorme, mas também um legado intransponível. Ela colocou Cuba no altar do melhor da dança mundial. Obrigado, Alicia, por seu trabalho imortal", tuitou o presidente cubano, Miguel Diaz Canel, que está em visita oficial ao México.
Muitos lembram de Alicia como uma bailarina disciplinada e temperamental como poucas, que encantou o público com suas piruetas virtuosas, bem como a coreógrafa exigente que fazia os dançarinos repetirem incansavelmente os movimentos em busca da perfeição.
Outros a veem como a grande dama cubana que se doou de corpo e alma à Revolução do falecido líder Fidel Castro. Foi com o apoio do Comandante que sua escola de dança ganhou impulso após o triunfo da Revolução, em 1959.
Alonso, que estreou na Broadway no final dos anos 1930, ficou quase cega aos 20 anos de idade, depois de sofrer um duplo descolamento de retina, e dançou quase toda a sua vida guiada pelas luzes do palco até pendurar as sapatilhas de ponta em novembro de 1995, aos 74 anos.
A reinterpretação que fez durante meio século do personagem principal do famoso balé romântico "Giselle" elevou-a aos altares da dança clássica.
Constam do currículo de Alonso outros grandes títulos do repertório clássico, como "Carmen", "Coppelia" e "O Quebra-nozes".
Nascida em 21 de dezembro de 1920 em Havana, neta de espanhóis, Alicia Ernestina de la Caridad del Cobre Martínez del Hoyo, seu nome de batismo, costumava caminhar na ponta dos pés por toda a casa. Seu pai, um veterinário militar, exigia que ela andasse de forma "normal".
Ele se opôs a que fosse bailarina, mas se deixou convencer pela mãe. Alicia, então, dançou até quase os 75 anos. Cega e com sérios problemas motores, ela continuou dançando na mente. "Danço dentro de mim, com os olhos fechados", costumava dizer.
Deu-se ao luxo de executar os 32 fouettés - piruetas sobre o próprio eixo em uma só perna - de "O Lago dos Cisnes" com mais de 40 anos.
Ou executar os "sautés sur la pointe en arabesque penchée" - como ela mesma batizou os saltos para trás que dava na ponta do pé com a outra perna erguida em ângulo de 90 graus -, um desafio para as jovens bailarinas.
Alonso emigrou muito jovem para os Estados Unidos e concluiu sua formação em Nova York. Entrou para o American Ballet Caravan, hoje New York City Ballet.
Foi fundadora do American Ballet Theatre em 1940.
Casou-se com Fernando Alonso (1914-2013), coreógrafo e diretor, de quem herdou o sobrenome que manteve após o divórcio do casal, em 1975.
Mãe de Laura (1948), sua única filha, Alicia também dançou na companhia Bolshoi de Moscou, no balé soviético Kirov (hoje Mariinski) de São Petersburgo e no Balé da Ópera de Paris.
Após voltar a Cuba, em 1948, fundou o Ballet Alicia Alonso que, dois anos depois do triunfo da revolução de Fidel Castro, em 1961, se tornou o Ballet Nacional, auspiciado pelo Estado.
A bailarina, que chegou a dizer que queria viver dois séculos, criou a escola cubana de Balé, que aglutinou ritmos e raças, que "dançam com o coração", em suas palavras.
Casada pela segunda vez com Pedro Simón, diretor do Museu nacional da Dança, manteve-se ativa na dança até 1995, quando se despediu após uma apresentação em palcos italianos.
Mas continuou como diretora e coreógrafa de uma companhia de balé de primeira grandeza, em uma ilha de 11,2 milhões de habitantes, onde o balé clássico era quase desconhecido.
"Não é por ser uma ilha que não podemos competir com o mundo", disse em uma entrevista.
A partir dos anos 1960, começa a ser realizado o Festival Internacional de Ballet de Havana, que adquire prestígio e prêmios internacionais.
Aurora Bosch, uma das "joias" do balé cubano, lembra que Alicia atraiu os homens para a dança, inclusive valendo-se de truques, quando na ilha eram taxados de homossexuais por fazer balé.
Após sofrer descolamento de retina nos dois olhos aos 20 anos, sugeriram repouso para que a doença não piorasse, sob o risco de ficar cega. Mas ela decidiu dançar e o mal avançou. Foi operada, continuou dançando e a situação se agravou. Entre a visão e a dança, ela escolheu a dança.
Simón conta que na época havia luzes no cenário para orientar Alicia, que só enxergava sombras.
De estatura mediana, magra, tentou manter a elegância de seu pescoço de cisne, apesar da idade.
Foi uma espécie de embaixadora da Revolução em tempos de isolamento político e teve uma relação de trabalho muito próxima com Fidel Castro.
Em um gesto incomum na Cuba socialista, um prédio público foi batizado com o nome de uma personalidade viva. O Grande Teatro de Havana, sede da companhia, desde 2015 se chama Alicia Alonso.
Alguns de seus discípulos, como Carlos Acosta, formou novas companhias e o balé criou raízes em toda a ilha.
Em Cuba, tornou-se comum a frase: Alicia nasceu para que Giselle não morresse. Mas agora que Alicia partiu, levada pelas Willis, é Giselle quem fica, dando-lhe vida eterna.