Pelé foi o primeiro milionário do futebol, mostra documentário da Netflix
Filme que estreou esta semana mostra como o rei do Futebol foi também o rei do "sportainment", que mistura esporte com entretenimento, e precursor de Messi e Cristiano Ronaldo
Ivan Padilla
Publicado em 23 de fevereiro de 2021 às 14h14.
Última atualização em 25 de fevereiro de 2021 às 08h10.
O documentário Pelé , que estreou hoje na Netflix , começa com as cenas no estádio Azteca, no México, momentos antes da final da Copa de 1970 . Ver as imagens em tecnicolor de Pelé correndo, driblando, caindo, parecem deslocadas no tempo. Em contraste com as espetaculares jogadas coloridas em campo aparecem na sequência tomadas em preto e branco de seguranças em torno de Pelé, protegendo o craque das multidões, “idolatrado a ponto de parecer quase um prisioneiro, ameaçado de sequestro e morte.”
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Andando com a ajuda de uma bengala, consequência de uma série de lesões e complicações cirúrgicas no quadril, o Pelé de hoje dá depoimentos sobre a pressão que sentia então. “Naquele momento eu não queria ser Pelé. Eu não gostava, eu não queria”, diz. Ao mesmo tempo, as cenas de época mostram o jogador muito estiloso, com um paletó vermelho risca de giz no ônibus da seleção brasileira, porém de cara fechada, ou carrancudo em campo. Aquela, para ele, já estava certa como sua última participação em Copa do Mundo.
Também aparecem no filme cenas de relance de Pelé com personalidade do mundo todo, de artistas a monarcas. Esse foi outro ponto fora da curva na vida do craque: ele elevou os jogadores de futebol ao patamar das celebridades. Reza a lenda que Ronald Reagan teria dito a ele: “Eu sou o presidente dos Estados Unidos, mas você não precisa se apresentar. Todos sabem quem é você.”
A presença de Pelé no hall da fama foi consagrada durante sua passagem pelo Cosmos, em Nova York, entre 1974 e 1977. Por lá, o jogador que nasceu na mineira Três Corações era vizinho de escritório de Robert Redford, jogava tênis com Steven Spielberg em East Hampton e encontrava ocasionalmente Jackie Kennedy.
Pelé podia reclamar da pressão na Copa de 1970, como mostra o filme, mas parece ter desfrutado bastante de sua passagem nova-iorquina. Ele almoçava com Muhammad Ali e teve o famoso retrato em serigrafia produzido por Andy Warhol, arrematado no ano passado em um leilão por 3,5 milhões de reais. Pela Warner Communications, empresa de entretenimento com quem tinha contrato, podia usar um Cadillac preto, com telefone a bordo, um luxo difícil de imaginar em um mundo pré-celular.
Melhor e mais bem pago
Pela fama, pela pressão, pela reverência dos torcedores, Pelé pode ser considerado o precursor de Messi, Cristiano Ronaldo e Neymar, os jogadores mais bem pagos hoje. O feito de Pelé merece ainda mais crédito por um simples fato: os craques de hoje vivem em um mundo globalizado, em que suas partidas são transmitidas em todos os cantos e suas contas no Instagram permitem aos fãs uma falsa sensação de proximidade. “Eu não sabia que existiam outros países, eu achava que o Brasil era um dos países mais lindos do mundo”, conta Pelé no filme.
Em outro aspecto as carreiras de Pelé e dos craques da atualidade se distanciam: os rendimentos. Se o Rei atuasse hoje, faturaria 223 milhões de dólares por ano, segundo estimativa da Forbes feita com especialistas em marketing esportivo. A conta leva em consideração valores correspondentes para cotas de patrocínio e direito de imagem, patrocínio individual e cota de fidelidade. O valor da multa rescisória de Pelé chegaria a 302 milhões de dólares.
São cifras bem superiores aos dos astros do momento. Em setembro do ano passado, a mesma Forbes divulgou uma lista com os jogadores mais bem pagos em 2020 no mundo, com métricas semelhantes aos cálculos feitos para esta reportagem. Messi aparece em primeiro com 126 milhões de dólares, seguido por Cristiano Ronaldo, com ganhos de 117 milhões, Neymar com valor equivalente a 96 milhões e Mbappé com 48 milhões.
As contas não são tão simples, no entanto, por um motivo bastante singular. Os contratos hoje dos jogadores de elite levam em conta uma porção de variáveis, como contou à Casual EXAME Marcos Motta, advogado de algumas dessas estrelas internacionais de primeira grandeza.
Minutos em campo, presença em partidas, lesões, mau comportamento, tudo isso é considerado na hora de fechar um contrato com um clube e depois no balanço anual – além, é claro, de número de títulos internacionais e nacionais, de gols e até de assistências. O salário, no fim, varia bastante segundo o desempenho dos jogadores. Nada tão diferente dos acordos de executivos de grandes corporações.
"Pelé foi mais do que o Rei do futebol, foi o rei do 'sportainment'", afirma Motta, sobre o conceito do esporte como entretenimento. "Ele é o professor de toda essa geração que está monetizando fora das quatro linhas. Pelé fez filmes, armou parcerias com o Mauricio de Souza para aparecer nos quadrinhos, desbravou o mercado americano trabalhando a marca dos Cosmos. Isso em uma época sem internet, sem redes sociais."
Segundo apuração da Casual EXAME, a receita hoje de Pelé, aposentado há mais de quatro décadas, vem do aluguel de alguns imóveis e de royalties repassados pela Sports 10, empresa americana que detém todos os direitos sobre o uso do seu nome. Uma campanha com a marca de relojoaria suíça Hublot, por exemplo, tem número de horas dedicadas a fotos e menções da marca nas redes sociais do craque estipuladas pela companhia.
As revelações do filme da Netflix
Em campo, os feitos de Pelé em campo são incomparáveis, como contamos na resenha do filme na edição de fevereiro. Três Copas do Mundo vencidas, mais de mil gols marcados, lances de genialidade, preparo físico à frente de seu tempo nos anos 1960. Qualquer tentativa de provar para as gerações recentes que ele mereceu o título de Rei do Futebol é válida. Por isso, desperta interesse o documentário singelamente batizado de Pelé , produção da Netflix em associação com a britânica Pitch Productions.
O filme traz cenas inéditas de arquivo e entrevistas recentes com o próprio Pelé e ex-companheiros de gramado como Zagallo. A visão estrangeira de dois diretores britânicos (Ben Nichols e David Tryhorn) será inevitavelmente comparada à maior produção anterior sobre o grande craque, a brasileira Pelé Eterno, dirigida em 2004 por Aníbal Massaini Neto – que era uma espetacular compilação de gols prejudicada pelas entrevistas robóticas ou desnecessariamente exageradas nos elogios.
O novo documentário tem como um dos produtores Kevin Macdonald, que ganhou o Oscar de Melhor Documentário de 1999 com Munique, 1972: Um Dia em Setembro, sobre o massacre de atletas israelenses por terroristas durante as Olimpíadas. Um atestado de qualidade do filme, portanto, nada menos do que merece o maior jogador de todos os tempos.