THE GOOD WIFE: representação estilizada – e por isso mais facilmente compreensível – do mundo real / Divulgação
Da Redação
Publicado em 20 de maio de 2016 às 17h34.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h03.
Bem sei que o público aficionado por séries aguarda ansioso, a cada domingo, mais um episódio de Game of Thrones e volta de Jon Snow do mundo dos mortos. Poucos acompanharam, contudo, outra personagem que chegará ao fim definitivo de seu arco narrativo. Falo de Alicia Florrick, protagonista de The Good Wife, que encerrou depois de sete temporadas.
Entre tantas séries que são sucesso de público e crítica, The Good Wife é singular no meio por ser uma produção da TV aberta americana, o que não lhe torna menos bem-acabada ou sofisticada que suas concorrentes na TV a cabo e do Netflix. No Brasil, é transmitida pelo Universal Channel. Com temporadas longas – são de 22 a 23 episódios de 40 minutos por temporada –, história não faltou.
Alicia era, no início da trama, uma dona de casa de classe alta, casada com Peter, um promotor público em franca ascensão na política. Ocorre que ele é pego em um escândalo envolvendo desvio de dinheiro e prostituição e imediatamente preso. Alicia, humilhada pelo adultério público, com dois filhos adolescentes para criar e sem o suporte financeiro do marido, é obrigada a voltar ao mundo profissional do Direito que deixara treze anos antes. Consegue uma vaga de trainee na firma de um antigo namorado de faculdade, Will Gardner, e a partir daí tem que provar para si e para seus colegas que tem o que é preciso para encarar de frente todos os obstáculos que o mundo coloca em seu caminho. Nesse processo, acaba descobrindo o que a move enquanto profissional, mulher e ser humano.
Toda a série foi marcada pela tensão constante entre a integridade moral e pessoal de um lado e, de outro, as necessidades impostas pela disputa de poder e pela posição social. Atos têm consequências e valores reais estão em jogo: uma família, uma carreira, uma empresa, uma reputação. Alicia, que vivia até então segundo o papel que se esperava dela no mundo, deve agora descobrir como navegar entre as realidades da vida social e de seus desejos mais íntimos, que estão eles próprios em fluxo.
Raramente, contudo, o foco esteve nos sentimentos dos personagens. Eles tomam lugar secundário para a ação. Todo mundo tem objetivos a alcançar; a começar por Alicia, que se vê na primeira temporada tendo que disputar a vaga com Cary Agos, um jovem e ambicioso advogado recém-saído de Harvard. Futuramente, ascende à categoria de sócia, concorre à defensoria pública de Illinois, abre seu próprio escritório, participa com variado grau de engajamento nas campanhas do marido, e toma riscos que seriam impensáveis no início da trama. A história está sempre seguindo em frente; ninguém fica parado. Alicia é alguém em transformação e agora, ao fim de tudo, se aproxima de um novo equilíbrio com o mundo, com menos sonhos, talvez, e menos ingenuidade.
A advogada maquiavélica
Isso não significa uma narrativa simplória e previsível: a transformação de uma Alicia convencional e certinha em uma advogada feroz e maquiavélica. Não é o que acontece. Tampouco se trata louvar virtudes supostamente puras do americano médio contra a sordidez da alta política. Alicia trilha um caminho do meio, no qual tem que aprender a ser mais flexível e esperta para alcançar aquilo que importa para ela, mas também tem que preservar um norte moral que faz com que ela própria ainda importe para suas relações e para si mesma. Substitui uma ética vinda de fora por critérios vindos de dentro.
Zonas de complexidade extra são introduzidas pelos conflitos e tramas dos demais personagens. Conforme seu marido Peter volta à trama, livrando-se das acusações e recomeçando a escalada na política, Alicia se vê cada vez mais oscilando entre seus próprios fins e o auxílio aos planos de alguém que, embora a tenha traído, ainda tem espaço em seus afetos. A ideia de redenção, a dúvida sobre sua honestidade e até mesmo a possibilidade da convicção religiosa – tratada, o que é raro, sem preconceito – aparecem e mostram seu valor. Não há maniqueísmo. Nem Peter é o grande vilão nem Will (ou outros possíveis interesses românticos de Alicia que surgem ao longo da série) é particularmente virtuoso ou admirável. Todos têm falhas e são, a seu modo, dignos de nossa empatia.
Um ponto que merece destaque é a atualidade tecnológica da série. O mundo da internet – as redes sociais, vídeos amadores de smartphone, o coletivo de hackers Anonymous, a vigilância da NSA sobre os cidadãos americanos – e da robótica – carros sem motorista, drones – é presença constante nos conflitos judiciais, e a série foi a primeira da televisão a retratar a bitcoin. A política real também invade recorrentemente a trama, com referência às primárias presidenciais e aos grandes debates que mobilizaram os EUA nesses últimos anos. Assistir The Good Wife era um pouco como ver um comentário ponderado a uma representação estilizada – e por isso mais facilmente compreensível – do mundo real.
Sem maniqueísmo
Os valores que estão em jogo nos debates culturais atuais também marcaram presença. Liberais e conservadores são mostrados, novamente, sem sombra do maniqueísmo que facilmente se insinua até nas séries supostamente neutras. Aliás, a série vai ainda mais longe ao deixar ver que a posição política do indivíduo é, por vezes, seu traço mais superficial. Diane Lockhart (Christine Baranski), uma das sócias da firma e espécie de mentora de Alicia no início, é progressista até a medula; e mesmo contra todas as suas convicções políticas envolve-se (profissional e pessoalmente) com conservadores a ponto de ter que militar contra seus valores dentro do tribunal. Indivíduos acabam falando mais alto do que ideologias.
O formato contribuiu muito para o sucesso, com um equilíbrio entre a narrativa de fundo, que perpassa vários episódios – a vida profissional e pessoal de Alicia e de seu círculo próximo – e tramas curtas, que se iniciam e encerram dentro de cada episódio, em geral dizendo respeito aos casos disputados no tribunal. E assim se passaram sete anos de episódios com raro poder de entreter e engajar o espectador.
Nesta última temporada, Alicia está prestes a tomar a decisão final de se divorciar de Peter. Mas será isso mesmo que ela quer? Sem querer estragar a surpresa para os que não assistiram (a veiculação no Brasil está bastante defasada), digo apenas que o episódio final cai como um tapa na cara. O que não deixa de ser natural em uma série para a qual nem o “viveram felizes para sempre” e nem a tragédia desesperançada cairiam muito bem.
Para quem não assistiu, as temporadas anteriores estão disponíveis em DVD e no Netflix e trazem risco alto de overdose e maratonas de horas na frente da tela. Pela sua mistura constante de seriedade e leveza, de tenacidade e humor, e pela maestria com que sempre traz acontecimentos contemporâneos para as tramas, assistir The Good Wife foi uma experiência unicamente prazerosa, sem o peso de séries mais carregadas, mas igualmente viciante. Alicia Florrick deixará saudades.
(Joel Pinheiro da Fonseca)