Carreira

Viramos escravos da tecnologia ou não?

Ela pode melhorar sua produtividade ou disparar sua ansiedade. Aprenda como usá-la para ser mais eficiente sem surtar

Evento Wisdom 2.0: profissionais de empresas do Vale do Silício discutem os efeitos ruins da era digital (Divulgação)

Evento Wisdom 2.0: profissionais de empresas do Vale do Silício discutem os efeitos ruins da era digital (Divulgação)

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Da Redação

Publicado em 19 de abril de 2013 às 06h00.

São Paulo e São Francisco - Além da ponte Golden Gate, a região de São Francisco, na Costa Oeste dos Estados Unidos, é famosa por ter uma população que exerce como em poucos lugares do mundo a liberdade de expressão, o respeito ao meio ambiente e um estilo de vida baseado em equilíbrio e bem-estar.

A região é também berço da maior parte das grandes empresas de tecnologia do mundo, instaladas poucos quilômetros ao sul, no Vale do Silício. Apple, Google, Facebook, eBay, HP e Cisco são algumas entre os milhares de companhias sediadas no vale — estima-se que existam 400 000 pessoas trabalhando com alta tecnologia na região.

Para os conscientes habitantes desse pedaço do planeta, é impossível não discutir como o trabalho se encaixa na busca de um propósito de vida maior.

Desde 2010, essa reflexão tem um local certo, o evento Wisdom 2.0, cuja quarta edição ocorreu em fevereiro deste ano, em São Francisco, num centro de convenções que fica a algumas quadras da sede de Twitter, Airbnb, Zynga e Dropbox.

O congresso reuniu 1 700 profissionais da indústria digital para debater os caminhos que a tecnologia tomou na vida das pessoas e para entender como ela poderia proporcionar empregos — e existências — mais cheios de significado e profundidade.

“Como seres humanos, devemos encontrar o equilíbrio no uso da tecnologia”, disse Padmasree Warrior, diretora de tecnologia e estratégia global da Cisco e na 58a posição na lista das mulheres mais poderosas do mundo em 2012 da revista americana Fortune. 

A proposta do evento, que tem o Google como principal patrocinador, é colocar presidentes das maiores empresas do ramo, executivos, profissionais da área de saúde, professores de universidades renomadas e alguns instrutores de meditação para pensar os efeitos da tecnologia: ela nos faz trabalhar demais? Estamos mais distraídos? Nos tornamos pessoas superficiais? Nossa ansiedade aumentou?

Mas não existe um clima de mea-culpa. Não é como se o mercado de fast-food se reunisse para discutir a obesidade ou a indústria tabagista para estudar doenças respiratórias.

A era digital trouxe avanços indiscutíveis para a forma como trabalhamos e vivemos. Há ganhos significativos de produtividade para profissionais e empresas. O tom das conversas do evento é de responsabilidade. O Vale do Silício é um lugar de mentes brilhantes. Se existe alguma coisa dando errado no sistema, os nerds querem corrigir os bugs e eliminá-los.

“A tecnologia tem um poder tremendo, mudou a forma como o mundo se comunica”, disse Soren Gordhamer, fundador e organizador do Wisdom 2.0. “Mas fez aparecer pessoas com problemas de concentração, pessoas que estão fisicamente em um lugar, mas não estão presentes.”

Nas mudanças comportamentais e sociais que smartphones, softwares, tablets, aplicativos e redes sociais estão provocando, o trabalho tem um papel central. Talvez o escritório seja o lugar em que as marcas da tecnologia sejam mais profundas — tanto as boas quanto as ruins.


Uma pesquisa feita em 2012 pelas consultorias McKinsey e IDC aponta que, nos últimos quatro anos, ferramentas colaborativas aprimoraram a eficiência de processos corporativos.

Das mais de 2 000 companhias consultadas pela pesquisa, 74% afirmam que o acesso ao conhecimento aumentou, 58% declaram ter reduzido custos de comunicação, 40% conseguiram reduzir custos de viagem e 40% registraram um aumento na satisfação dos funcionários. 

Mas a tecnologia criou novos problemas profissionais. Um deles, aparentemente simples de resolver, é a distração. Estamos disponíveis para receber mensagens e estímulos eletrônicos o tempo inteiro. Um estudo da Universidade da Califórnia, campus de Irvine, mostra que profissionais que trabalham em frente de um computador são interrompidos (ou interrompem-se espontaneamente) a cada três minutos.

Toda vez que isso ocorre, leva-se até 23 minutos para retomar a tarefa. “Em uma semana, um profissional distraído perdeu muitas horas de trabalho”, diz o psiquiatra Frederico Porto, consultor da LHH/DBM, empresa de recolocação de executivos, de Belo Horizonte. “Além disso, o desgaste mental de mudar de uma atividade para outra faz a pessoa ficar muito mais cansada”, diz Frederico. 

A tecnologia também tem efeitos sérios sobre a ansiedade. De acordo com Kelly McGonigal, PhD em psicologia e professora da escola de negócios da Universidade Stanford, em São Francisco, o sistema de recompensa do cérebro, o mesmo que nos faz ingerir alimentos para não morrer de fome, se adaptou à era digital e hoje é carente também de informação.

A consequência é sentir necessidade de consumir notícias como se sente vontade de jantar.

Essa avidez por atualização se reflete no trabalho de algumas maneiras. Em primeiro lugar, ela causa um aumento da insegurança: os profissionais sentem-se na obrigação de estar disponíveis 24 horas por dia, já que o trabalho não fica mais restrito ao escritório. Além disso, as pessoas passam mais tempo observando os outros nas redes sociais e fazendo comparações.

Com isso, elas deixam de se medir com o colega para se comparar, no limite, com todos os usuários do LinkedIn, o que pode ser terrível para a autoestima.

O mesmo hábito faz a pessoa conviver com a sensação de ter ficado para trás. A ansiedade digital levou a Associação de Psiquiatria Americana a incluir a partir deste ano a desordem do uso da internet no Manual de Transtornos Mentais, espécie de lista das doenças psiquiátricas existentes.

“Trata-se de um vício, na linha das dependências comportamentais, como comprar ou jogar”, diz Cristiano Nabuco, coordenador do programa de dependência de internet do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. 

Vadiagem cibernética

A tecnologia tem também a capacidade de potencializar problemas que já ocorreriam de qualquer forma. O psicólogo Igor Lins Lemos, professor da Faculdade de Ciências Humanas de Recife, estuda o comportamento de profissionais que usam a tecnologia para matar trabalho — o chamado cyberslacking, ou cibervadiagem.

Em suas pesquisas, Igor identificou que um funcionário com tendência a procrastinar terá essa má conduta exacerbada quando estiver conectado à rede.


O mesmo ocorre com profissionais desmotivados com o emprego ou excessivamente cansados. Esse comportamento pode ser classificado em dois níveis. No mais brando, o profissional gasta um tempo escrevendo e-mails particulares que poderiam aguardar o fim do expediente ou fica vendo notícias de seu clube do coração.

Nos casos sérios, ele esquece do trabalho e fica trocando mensagens instantâneas, jogando ou navegando nas redes sociais. “São ações que gastam mais tempo e interferem diretamente na produtividade”, afirma Igor. 

Uma pesquisa da consultoria de gestão do tempo Triad ps, de São Paulo, com 4 100 profissionais mostra que 62% das pessoas que admitem adiar atividades o fazem porque se perdem navegando na internet. O estudo constatou que 25% dos entrevistados gastam até uma hora no trabalho com assuntos pessoais na web.

“Essas pessoas vão ter de cumprir o serviço alguma hora, o problema é que elas estão sacrificando também os momentos de praticar atividade física, ler e cuidar da saúde”, diz Christian Barbosa, diretor da Triad ps e especialista em gestão do tempo, de São Paulo. 

Obviamente, um telefone celular ou um software não podem levar a culpa por esse tipo de comportamento. O centro do problema está no uso que se faz de aparelhos e aplicativos.

“As pessoas estão se afastando umas das outras, mas isso não é culpa da tecnologia”, diz Rich Fernandez, diretor de RH do Google para os Estados Unidos, que compara a tecnologia a um bisturi: pode salvar vidas ou machucar, depende da capacidade do usuário.

“Seríamos ingênuos se achássemos que a tecnologia não tem nenhuma consequência, mas um aparelho não é viciante. A maneira como você o utiliza é que o torna viciante”, diz Rich. 

A solução é tomar consciência e assumir o controle de sua vida digital. “A tecnologia distrai as pessoas, mas nós é que temos que ter a responsabilidade de decidir o que iremos fazer com ela”, afirma Michelle Gale, ex-diretora de aprendizado e desenvolvimento do Twitter, que saiu da empresa no ano passado e hoje dirige uma empresa de coach online e de feedback, a Tilt 365, em Raleigh, na Carolina do Norte.

A maneira de fazer isso, diz Michelle, não é adotando soluções radicais, como se desconectar ou fugir da tecnologia. É preciso encarar o monstro com disciplina. “Nossa obrigação é aprender a usar a tecnologia e ensinar nossos filhos a se relacionar com ela”, diz. 

Nos escritórios do Facebook, o acesso a redes sociais, por questões óbvias, é liberado. Isso não significa usar o tempo todo. A solução da empresa é estimular a responsabilidade entre os empregados. “Trabalho e diversão nas redes sociais acontecem ao mesmo tempo para os funcionários, mas todos têm muita consciência de como lidar com o tempo”, diz Arthur Bejar, diretor de engenharia do Facebook.

“Qualquer pessoa que esteja criando algo deve se afastar por algumas horas para poder pensar, porque a tecnologia pode distrair.”

No congresso Wisdom 2.0, as empresas deram sinais de que já constataram hábitos digitais prejudiciais ao desempenho e começam a fazer ajustes. Uma das ações mais comuns é aumentar o cuidado nas interações pessoais. É o que faz, por exemplo, Melissa Daimler, diretora de educação e desenvolvimento do Twitter, de São Francisco.


“Quando alguém vem falar comigo, fecho o meu computador”, disse Melissa. Outros vão ainda mais longe. É o caso de Peter Deng, diretor de produtos do Facebook, que trabalha na sede da empresa, em Menlo Park, no Vale do Silício.

Peter começou a falar mais lentamente e num tom mais baixo. “Percebi que as pessoas ficam mais calmas. Elas nem percebem, mas a atitude ajuda a criar um ambiente para a conversa”, disse Peter. 

Adam Graff, gerente de integração de negócios do Google, que trabalha em Mountain View, diz que na empresa existe uma cultura de permanecer muito tempo junto de outras pessoas e que isso ajuda a escapar das distrações da tecnologia. “É uma forma de as pessoas perceberem o que ocorre em volta delas em um tipo de trabalho em que se passa horas grudado na tela do computador”, afirma Adam.

Em São Paulo, no laboratório farmacêutico Boehringer Ingelheim, os funcionários do departamento médico e científico decidiram organizar a troca de e-mails da área.

Entre as medidas, eles passaram a enviar mensagens apenas para pessoas realmente envolvidas com o assunto, poupando a caixa postal de muitos. Também só se usa e-mail para resolver assuntos simples — questões complexas devem ser conversadas pessoalmente ou por telefone.

Se um assunto não for resolvido em três mensagens, marca-se uma reunião. “Ficávamos estressados com tantas mensagens que apenas pareciam importantes”, diz Fábio Rodrigues, gerente de operações clínicas do Boehringer e autor da iniciativa. O resultado foi a redução de 17% no volume anual de e-mails — é como se dois meses de troca de mensagens tivessem sido eliminados. 

Entre os benefícios da tecnologia há os que se dizem satisfeitos de poder fazer tudo ao mesmo tempo (a dita multitarefa). No entanto, do ponto de vista cerebral, isso pode ser estressante e comprometer a qualidade do trabalho.

Estudos da Universidade Stanford mostram que, quanto mais a pessoa se julga eficiente fazendo várias coisas ao mesmo tempo, pior ela as executa. E, quando for necessário se concentrar numa única atividade por longo tempo, a pessoa terá de fazer um esforço maior.

“Para nosso cérebro, não há multitarefas”, afirma o psiquiatra Cristiano Nabuco, da Universidade de São Paulo. De acordo com ele, quando tentamos fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo, nosso cérebro acaba destinando pouca energia e atenção a cada tarefa. “Ser multitarefa é um desejo, mas não é possível.

Fazemos muito bem somente uma coisa por vez. Quando somos multitarefas nos tornamos ineficientes”, diz Rich Fernandez, diretor de RH do Google nos Estados Unidos. 

O trabalho moderno é conectado. Não dá para escapar. Melhor é ver o lado positivo e cortar o negativo. No ano passado, o Facebook contratou Dacher Keltner, psicólogo da Universidade da Califórnia no campus de Berkeley e estudioso de relações humanas, para entender como poderia tornar menos frias as interações entre os usuários da rede social.

A intenção da empresa é incluir, por exemplo, sons nos posts e comentários. “A tecnologia pode fazer as relações ficarem mais próximas e os laços mais fortes”, afirma Dacher. “Mas sabemos que não há substituto para abraços ou para o olho no olho.”

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