Leonardo Riella, nefrologista de Harvard: Esperamos, conseguir tirar essa cirurgia da parte mais experimental, de pesquisa, para realmente levar para o paciente. E não só de rim (Leonardo Riella/Divulgação)
Repórter
Publicado em 23 de março de 2024 às 08h34.
Última atualização em 23 de março de 2024 às 15h26.
A inspiração de Leonardo Riella para ser médico veio de dentro de casa. Com o pai formado em medicina pela UFPR (Universidade Federal do Paraná) e com especialização em nefrologia nos Estados Unidos, Riella decidiu seguir os mesmos passos. Também se formou na UFPR em 2003, fez estágios nos Estados Unidos, se especializou em Imunidade de Transplante pela Unifesp e fez residência em Nefrologia pela Escola de Medicina de Harvard.
Entre desafios e oportunidades para chegar hoje como diretor de transplante do Hospital Geral de Massachusetts e como professor de medicina em Harvard, Riella realizou no último sábado, 16, uma cirurgia que marcou a história da medicina: pela primeira vez o transplante de um rim de porco é realizado em um paciente vivo e em condições de voltar aos afazeres diários. Até então, cientistas haviam conseguido fazer o transplante de rim de porco num humano cuja morte cerebral já havia sido decretada.
Para comentar sobre a sua trajetória como médico e cientista que já soma 20 anos nos Estados Unidos, Leonardo Riella fala à EXAME e compartilha também detalhes do procedimento cirúrgico inédito que marcou mais um avanço na ciência e na sua carreira.
O Sr. participou de um procedimento que marcou a história da medicina ao realizar o primeiro transplante de rim do porco em um humano. Como foram realizados os testes e porque o porco?
A linha de pesquisa do xenotransplante já vem se desenvolvendo há mais de 30 anos, mas nos últimos 5 anos foi que teve uma explosão de sucesso nos modelos pré-clínicos com animal.
Principalmente porque eles começaram a fazer modificações genéticas usando a tecnologia de CRISPR, que permitiu fazer, na verdade, várias alterações ao mesmo tempo, fazer a clonagem e introduzir a tecnologia no embrião do porco, para que esse animal tenha uma compatibilidade muito maior aos humanos, diminuindo tanto o risco de rejeição, mas também a incompatibilidade de coagulação.
O porco foi escolhido porque, primeiro, ele se reproduz muito rápido, a gestação dele é em torno de 3 a 4 meses e dão uma ninhada de 6 a 8. Em comparação ao macaco e a outro primata que está mais próximo no humano, é uma vantagem muito grande. O segundo ponto é que os primatas eles têm maior risco de infecção, em comparação com o porco, além da escassez do macaco em geral.
Vale reforçar também que o porco tem um tamanho muito parecido com o nosso e tem rins que funcionam exatamente como o nosso.
Como funcionaram os testes?
Tem vários grupos que estão trabalhando com porcos diferentes e que estão editados a genética de forma diferente também.
Estamos trabalhando há mais ou menos cinco anos, fazendo trabalhos pré-clínicos. E chegou o momento que, já faz três anos, que começamos a discutir que os resultados estavam tão bons que precisávamos começar a caminhar para a clínica, mas foi somente no último ano que a gente levantou a manga e trabalhou diariamente, algumas horas por dia. Então, a gente teve, na primeira parte, quase 50 pessoas de grupos diferentes, indústria e outros pesquisadores para tentar montar a equipe que ia conseguir levar o procedimento para a clínica pela primeira vez.
Foi um trabalho árduo, de pouquinho a pouquinho, e juntando todas essas peças realmente para conseguir registrar esse marco no último sábado.
Quais foram os maiores receios dessa cirurgia?
Estamos na fase 1 da fase clínica. Poderíamos fazer com mais pacientes, mas como é algo inédito, e tem muita coisa desconhecida, até o órgão FDA tinha muito medo de começar um estudo grande como esse. A questão de ter resultados de pesquisa convincentes e a escolha do candidato ideal foi essencial.
Outro receio era quais medicações iríamos usar para conseguir controlar a rejeição e impedir que esse paciente rejeite o órgão, porque quando a gente usou as mesmas medicações do humano, esse transplante de macaco não funcionou.
Então, a gente acabou utilizando algumas drogas que ainda não estão na clínica, mas que estavam sendo desenvolvidas para trazer na clínica, e foi preciso conseguir uma aprovação do FDA para usar nesse caso do transplante.
Foram 4 e 5 indústrias diferentes que concordaram em dar a droga e foi muito difícil de fazer, porque essas indústrias querem que você faça o estudo com a droga delas, só delas.
Se você misturar várias drogas, eles ficam com medo, porque imagina se dá um efeito colateral, o receio é dizerem que a minha droga tem problema, daí não vamos deixar ela desenvolver.
Mas com muita conversa com todas as equipes conseguimos mostrar que o sucesso ia ser muito grande se a gente conseguisse ter essa colaboração deles e felizmente acabou dando certo.
Qual é o perfil do paciente?
Entramos na questão de quem era o paciente ideal. E a gente tentou pegar realmente o paciente que era um candidato para o transplante de humanos, que estava na lista de espera.
Só que, pela condição que ele tem de diabetes, pela condição de complicações vasculares que ele tem, e o tempo de espera, porque ele tem mais de 4 ou 5 anos de espera, ele está embaixo da lista.
Você tem que estar saudável para ir fazer uma cirurgia e se recuperar do transplante. Então, a chance dele chegar nesses 4 ou 5 anos era muito baixa e ele estava sofrendo muito na diabetes.
Então, era uma combinação de coisas que realmente ele falou assim, olha, eu estou desesperado, eu estou deprimido, isso aqui não é vida. O paciente que tem 62 anos decidiu tentar um procedimento novo.
Em que momento da cirurgia o Sr. viu que deu certo?
São duas etapas finais da cirurgia. Uma vez que você conecta os vasos, estão ainda estão clampiados, que a gente diz. Então, você solta a artéria primeiro e depois solta a veia. Nesta hora o sangue começa a passar por dentro do rim. Então, o rim que estava pálido, de repente começa a ficar vermelho, quase na cor de vinho. Esse foi o primeiro sinal.
Logo em seguida, após quatro segundos, a gente começou a ver já a urina sair do ureter. Isso foi um bom sinal também, já estava sendo funcional.
O que o Sr. espera para a sua carreira? Quais serão os próximos passos?
Essa sem dúvida foi a cirurgia que marcou a minha carreira. Eu e a minha equipe queremos tentar reproduzir esse transplante mais no público paciente, e não só aqui, mas em outros lugares do mundo, em outros centros de transplante.
Esperamos, conseguir tirar essa cirurgia da parte mais experimental, de pesquisa, para realmente levar para o paciente. E não só de rim. Talvez expandir isso aí para outros órgãos que possam beneficiar ainda mais pacientes que estão necessitando do transplante.
Sua vontade de ser médico veio do seu pai. Por que ele escolheu atuar com nefrologia?
Logo que meu pai se formou em medicina na UFPR ele foi fazer residência nos Estados Unidos, isso foi nos anos 60, época em que poucos médicos iam para os Estados Unidos fazer residência. A primeira residência dele foi em Nova Iorque e depois foi trabalhar na Universidade de Washington, em Seattle, onde estava começando a especialidade em nefrologia.
Então, a diálise começou no começo dos anos 50, e nos anos 60 ele já fazia parte de um dos maiores programas de diálise dos Estados Unidos.
Ele acabou ficando alguns anos em treinamento lá, depois virou professor e depois resolveu voltar para o Brasil, onde ele acabou começando serviços de nefrologia em Curitiba e sempre foi muito apaixonado pelo que fazia, tanto que criou uma fundação para ajudar os pacientes, desde exames que o SUS não poderia cobrir até suporte nutricional. Acabei herdando essa paixão pela medicina vendo-o atuar.
O que fez você ficar nos EUA?
Durante o meu estágio aqui nos Estados Unidos, eu vi um pouquinho a diferença entre o treinamento do médico pós-faculdade entre os Estados Unidos e o Brasil. Eu vi que tinha uma diferença muito grande.
Aqui nos Estados Unidos a residência era muito mais supervisionada, tinha uma eficiência muito maior em relação ao cuidado do paciente, pela disponibilidade de tecnologia e no mesmo período, você acabava vendo muito mais pacientes e conseguindo aprender muito mais.
Outro detalhe que chamou atenção foi que eu comecei a ser exposto para pesquisa, no Brasil há muitas dificuldades, e aqui a gente tem uma oportunidade, realmente, de fazer uma pesquisa de ponta, que possa realmente inovar e trazer coisas que, até agora, estavam sendo deficientes na medicina.
Por isso que no meu quarto ano de faculdade eu já voltei para o Brasil pensando em fazer residência aqui nos Estados Unidos.
Como funciona para fazer residência nos Estados Unidos?
Tem uma série de testes que você precisa fazer, tanto teórico quanto prático, para validar esse diploma.
Primeiro é preciso validar a formação de médico nos Estados Unidos por meio de uma prova, depois é preciso fazer residência nos Estados Unidos para poder trabalhar. A clínica médica são 3 anos de especialização, mesmo que você tenha feito especialização no Brasil, para poder atuar como clínico ou nefro ou outra especialização você tem que fazer uma residência aqui.
Tive a sorte também de conseguir algumas cartas de recomendação muito boas de professores daqui e eu acabei entrando no principal programa que eu tinha escolhido. Eu tentei quase 22 programas de residência e fiz um ranking e coloquei em número um o Brigham and Women's Hospital, que é um hospital da Harvard aqui em Boston. Eu fui o único estrangeiro no meu ano, isso foi em 2004.
Fiz a residência até 2007 e apliquei para a especialização em nefrologia, onde fiquei por dois anos. Depois fiz especialização em transplante dentro da nefrologia e fui para a área de pesquisa. Continuava fazendo uma parte clínica, mas fui fazer pesquisa no laboratório também. Após 4 anos de pesquisa, fiz o doutorado.
Aqui nos Estados Unidos não tem tanta importância você ter um doutorado, porque você aqui já tem esse título quando se forma em medicina. Mas tinha a ideia de voltar para atuar no Brasil e em universidades e acabei fazendo esse doutorado sanduíche e defendi a tese na Unifesp.
Como aconteceu o retorno para os Estados Unidos?
Acabei após o doutorado, conseguindo umas bolsas de pesquisa e comecei meu laboratório pequeno no Brigham and Women's Hospital. Essa oportunidade me fez meio que frear a decisão de voltar para o Brasil. Fiquei quase 10 anos como médico e cientista neste hospital, e há 4 anos fui convidado para atuar no Mass General, que é o outro hospital da Harvard, mas agora como diretor do programa de transplante.
Consegui trazer toda a minha equipe de pesquisa e somam hoje 18 pessoas no laboratório e temos uma equipe grande de transplante clínico, que trabalha tanto no cuidado do paciente quanto em pesquisa clínica, como o uso de novas drogas. Vivo entre esse meio da ciência do laboratório com pesquisa e o cuidado do paciente na clínica.
Você é o único brasileiro da equipe?
No laboratório, a gente sempre tenta trazer pelo menos um ou dois jovens por ano para ficar com a gente por meio de uma bolsa que criamos aqui para estudantes internacionais.
A ideia justamente é tentar inspirar o brasileiro que quer ser médico e mostrar um pouco da pesquisa, que é diferente da pesquisa no Brasil.
Apesar de ter cientistas maravilhosos no Brasil, eles têm muitas dificuldades, como bolsa e de conseguir reagentes. Os pesquisadores no Brasil são mais heróis do que nós aqui nos Estados Unidos por persistirem na ciência no Brasil.
Como conciliar trabalho e família?
Trabalho no hospital de segunda a sexta e em alguns finais de semana quando estou de plantão. Mas no final de semana é comum a gente escrever um capítulo da pesquisa, ou um livro ou um artigo.
Mas costumo começar cedo o dia, vou para a academia e piscina às 5h da manhã, costumo ficar até as 7h e depois vou para o hospital. Tenho dois filhos, um de 7 e 10 anos que tento acompanhar no final do dia e nos fins de semana.
Todos os atendimentos são privados?
Trabalhamos para uma organização que atende desde seguros de saúde privado até seguros do governo, que seria algo parecido com o SUS, que é uma porcentagem menor que tem esse seguro do Estado.
Não podemos atuar de forma separada do meio acadêmico. É um pouquinho diferente do Brasil. O pessoal, às vezes, trabalha na universidade e tem uma clínica privada. Aqui você tem que vestir a camisa do seu centro e você só pode trabalhar para ele.
Como está o mercado para médicos aí nos Estados Unidos? Estão precisando de mais profissionais?
Em relação à disponibilidade de trabalho, tudo depende da área. Área como clínico geral há muitas oportunidades, principalmente em regiões saindo dos grandes centros, em cidades menores. Pediatria é outra área que tem um déficit grande aqui.
Como funciona a contratação de um médico nos Estados Unidos?
Geralmente, toda posição, pelo menos acadêmica, quando abre você tem que postar rapidamente. As posições costumam ser postadas nos jornais mais comuns, como o New England Journal e assim por diante.
Então, precisa ter uma postagem pública inicialmente para chamar e depois tem o processo de seleção interna, que envolve entrevista e até visita.
Você teve dificuldade de entrar na área de medicina nos Estados Unidos por ser brasileiro?
Eu tive sorte de entrar numa residência muito boa. Então, como essa residência é considerada uma das melhores dos Estados Unidos e isso facilita a contratação.
Às vezes, pessoas que fazem uma residência num hospital de comunidade muito pequenininho, esse, às vezes, tem um pouquinho mais de dificuldade de ir para um centro maior. Porque essa questão de onde foi treinado tem um peso aqui.
Quais são os conselhos que o senhor dá para quem busca ser médico aqui ou em outro país?
Escolha bem seus mentores e tenha mais de um;
Oportunidades são criadas. Não espere que elas caiam no seu colo;
Aceite as coisas que você não pode controlar e foque seus esforços naquilo que voce pode;
Não imponha limites aos seus sonhos. Mas tenha persistência e automotivação;
E procure trabalhar em equipes nas quais o líder tenha uma visão de trabalho em equipe e valorize o sua dedicação.