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Dose certa

À frente de grandes empresas ou do próprio consultório, médicos mostram que entender de administração melhora a saúde profissional

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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 09h34.

Muitos anos de estudo, três de residência, plantões nos fins de semana, noites em claro. Mesmo com todo esse esforço, os 9 000 jovens médicos que saem todo ano das faculdades brasileiras não têm garantia de trabalho certo ou remuneração justa. Nas grandes cidades faltam empregos com salários que façam jus ao investimento na formação desses profissionais. Um dos motivos é que sobra médico no Brasil. Temos um para cada grupo de 673 habitantes -- enquanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda a relação ideal de um médico para cada 1 000 pessoas. Um estudo feito pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) em 1999 mostrou que a quantidade de médicos no país cresce em uma razão duas vezes maior que a população. De acordo com números da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap), o número de vagas de residência médica atende apenas 70% dos formandos. Mesmo assim, nos últimos cinco anos foram abertas cerca de 20 novas faculdades de medicina.

A conclusão que se tira desse cenário é que para se sair bem nesse mercado é preciso ter saúde de ferro. Grande parte dos formados faz jornada tripla, dá plantões nos fins de semana ou divide o dia entre dezenas de consultas rápidas pelos planos de saúde. Uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do CFM feita em 1996 mostrou que 54% dos médicos brasileiros têm três empregos, trabalha cerca de 12 horas diárias e ganha em média 1 300 reais para cada emprego de quatro horas.

Esse certamente não é o sonho de quem passa em um dos vestibulares mais concorridos do país. E uma parte do problema começa justamente na faculdade. "Eles aprendem a essência da profissão, que é salvar vidas, mas não são avisados que ao sair da universidade terão de administrar um negócio e farão parte de um mercado competitivo", diz Edson Yamamoto, diretor administrativo dos laboratórios Campana, em São Paulo. Depois de 20 anos trabalhando no ramo, ele escreveu o livro Os Novos Médicos Administradores (editora Futura, 24 reais), que indica um campo promissor para quem sai da faculdade de medicina: o da administração. Médicos que dominem a área administrativa têm boas chances de se colocar e ser bem remunerados.

Para escrever o livro, Yamamoto entrevistou médicos de quase 1500 empresas, entre laboratórios, hospitais e planos de saúde, que fizeram essa transição. Conforme sobem os degraus da carreira científica, muitos deparam com uma série de questões administrativas para resolver e percebem que a faculdade não os preparou para enfrentá-las. Quem se antecipa, portanto, encontra muitas portas abertas. "As empresas da área da saúde precisam de gente que domine a área médica, mas que saiba também como racionalizar custos e definir mercado", diz Luiz Roberto Castro Santos, médico de Curitiba. Castro sabe do que está falando. Com três cursos de pós-graduação em gestão, ele deixou as consultas de lado para prestar consultoria a empresas que precisem alavancar seus negócios sem deixar a ética médica de lado. Hoje trabalha exclusivamente para a Unimed, mas vem sendo chamado para dar palestras sobre o assunto. "O desenvolvimento da indústria farmacêutica e o advento dos genéricos, entre outras ações, fizeram aumentar a procura por médicos que saibam administrar", diz Paul Levinson, presidente da Korn/Ferry. No mês passado, a KF conduziu três processos de seleção para cargos de diretoria médica. Até pouco tempo, esse era o número de processos conduzidos por ano.

Visão de empreendedor

Ewaldo Russo, superintendente dos laboratórios Fleury, um dos mais importantes de São Paulo e que fatura mais de 200 milhões de reais por ano, foi pioneiro nessa migração da saúde para a administração. Em 1994, foi o primeiro médico a fazer parte da turma de MBA da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP). "Ninguém entendia por que eu estava l", lembra. Na época, Russo já era diretor financeiro do Fleury e tinha um nome conhecido no meio acadêmico, mas deixou as aulas de lado para se dedicar a seu novo empreendimento: fazer a empresa crescer. "Os meus desafios como médico já tinham sido alcançados. Eu queria outros".

Depois do MBA, Russo fez o Programa de Gestão Avançada (PGA) da Fundação Dom Cabral, de Belo Horizonte. "Passei a ver a área médica como um negócio." E um bom negócio. Hoje o Fleury é um dos nomes mais respeitados em sua área, presta serviços para laboratórios de várias partes do país, é o único parceiro na América Latina da Myriad Genetic -- empresa americana que vem desenvolvendo diagnóstico por análise de DNA -- e seu faturamento passou de 60 milhões de reais em 1995 para 214 milhões de reais no ano passado. As qualidades essenciais para passar de um lado para outro, segundo Russo: deixar preconceitos de lado e aprender a trabalhar em equipe. "Sempre fui aberto a mudanças, por isso me dei bem como administrador. Nessa área, você tem de estar sempre preparado para mudar."

MBA em medicina

Outro exemplo de sucesso na união entre medicina e administracão é Rubens Belfort, que faz parte da equipe de oftalmologia do Fleury. Ao lado de colegas do departamento de oftalmologia da Escola Paulista de Medicina (EPM), uma das mais importantes do país, engrossou a lista dos médicos com MBA no currículo. "Eu teria de administrar um departamento e precisava entender de negócios", conta. É, a palavra está certa: negócios. Belfort encarou o departamento (o Instituto da Visão) com olhos de empresário. Era necessário gerar mais receita para atender a população, fazer pesquisa e investir no ensino. O ambulatório, que só funcionava até às 16 horas, passou a atender pacientes de convênios e a funcionar até mais tarde e também aos sábados, o que aumentou a receita. Foram feitas alianças com entidades de outros países e parcerias para receber recursos de fora do Brasil. "Organizamos também congressos e cursos de especialização", diz Belfort. Hoje é possível enviar equipes para atender o interior do país e manter um programa de mutirão para a população carente com alto grau de excelência técnica.

Outra novidade do Instituto da Visão é o curso de MBA em saúde. "Saímos da faculdade como curandeiros ou cientistas, mas ninguém é preparado para gerir, concorrer, administrar", diz Marinho Jorge Scarpi, professor da EPM e idealizador do projeto. O objetivo é ensinar médicos e outros profissionais da área da saúde a cuidar bem do negócio de que fazem parte. "Além de entender as necessidades do mercado e de seus clientes e de usar bem as ferramentas tecnológicas, os médicos precisam conhecer a legislação e a política de administração dos planos de saúde."

Não é só aqui

A idéia de que médicos também podem -- e precisam -- administrar não é invenção nossa. A Wharton, escola da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, que tem um dos MBAs mais procurados do mundo, vem despertando interesse na comunidade médica com seu programa de administração específico para a área da saúde. A Pace University criou um MBA especial para médicos, e já existe uma associação, o American College of Physician Executives, que reúne médicos administradores e coordena programas em universidades. No currículo desses cursos estão questões semelhantes às abordadas nos programas brasileiros: como fazer um estudo do melhor lugar para abrir uma sede, saber identificar que classes sociais farão parte da clientela e que investimentos serão necessários para atender às necessidades desse público.

Esses itens fazem parte do planejamento estratégico de qualquer empresa, e o currículo pode parecer óbvio para quem está acostumado com termos como outsourcing e networking e já leu os mandamentos de Peter Drucker. Na faculdade de medicina, porém, eles são novidade e não são levados em conta pela maioria dos médicos na hora de montar um consultório. "Um exemplo: fora das capitais faltam médicos para atender desde a população carente até os fazendeiros, mas ninguém vai porque acha que o maior mercado é o das grandes cidades." A julgar pela quantidade de alunos que procuram o curso da EPM, o interesse por essa matéria está mesmo crescendo.

Quando foi criado, em junho de 2000, a expectativa era de 30 alunos por ano. Atualmente já existem 300 alunos em fases diferentes, divididos entre os programas de mestrado profissionalizante (o preferido por quem quer especializar-se em oftalmologia) e MBA. E não estamos falando apenas de gente que vai deixar a sala de aula para tentar a cadeira de CEO. Esse curso foi moldado especialmente para quem pretende administrar um consultório, uma clínica ou um laboratório de pequeno ou médio porte. "As aulas levam em conta a realidade dos profissionais que nos procuram, são direcionadas para negócios menores, não para grandes corporações, como faz a maioria dos MBAs", diz o professor Marinho Scarpi. "Mostramos que é possível usar conceitos de gestão moderna para conduzir uma microempresa."

Mais clientes

Aplicar conhecimentos de gestão num consultório pode melhorar e muito a qualidade do atendimento e os ganhos de um médico que trabalhe por conta própria. Mas tem pouca gente que percebeu isso. O que o ginecologista carioca Maurício Magalhães ouviu em seu primeiro dia em uma sala de aula de MBA, aliás, foi exatamente o oposto. "Um professor falou que, se alguém estivesse ali para administrar um consultório, estaria perdendo tempo", lembra. Magalhães provou o contrário. No mês de maio, ele enviou uma carta à redação de VOCE s.a. mostrando como havia conseguido aplicar conhecimentos de administração e gestão em sua clínica e, com isso, aumentar em 30% o volume de clientes. Nos últimos anos, Magalhães, que tem títulos de doutorado e mestrado e fez pós-graduação na Suécia, investiu na informatização de seu consultório, passou a ter duas secretárias, flexibilizou seus horários de atendimento e criou uma política de incentivo para as funcionárias. Além disso, sempre investiu em seu networking e na imagem perante a comunidade médica. Há 13 anos criou o Clube da Mama, um grupo de médicos que se reúnem para discutir as novidades em tratamento e prevenção de câncer de mama. "É uma maneira ética de criar e difundir minha marca."

Para poder dedicar-se a outras atividades, Magalhães teve de definir prioridades e traçar metas. "Decidi que só atenderia pacientes particulares. Assim eu conseguiria manter a qualidade e ainda ter algum tempo livre." Livre não é bem a palavra. Ele dá aula na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é editor de uma revista especializada, foi secretário-geral da Sociedade Brasileira de Ginecologia -- uma das maneiras de manter sua rede de contatos em dia -- e fez parte da diretoria médica de uma multinacional americana, os laboratórios Pharmacia. "É possível planejar a carreira mesmo sendo um profissional liberal", diz Magalhães, que acaba de ser chamado para prestar consultoria a uma rede de hospitais que está chegando ao Brasil.

Tudo na mão

O otorrinolaringologista paulistano Alexandre Hamam, de 41 anos, também sabe que diferença faz tocar seu consultório com mãos de administrador. Depois de fazer o curso de administração na atividade médica na Faculdade São Camilo, em São Paulo, ele entendeu quantos fatores estão envolvidos na atividade. "Se eu sei de onde vêm meus ganhos, sei também onde investir e a que me dedicar mais", diz Hamam. "Mas a maioria dos médicos detesta lidar com custos e números e prefere terceirizar a administração."

Para ajudar nessa tarefa, Hamam adotou um palmtop como aliado. Nele ficam algumas informações sobre o fluxo de caixa, as tabelas com códigos de planos de saúde, informações sobre mudanças de fórmulas de remédios e os prontuários de seus pacientes (ou clientes, como prefere dizer). O palm, que ele não larga por nada, ajuda na qualidade de atendimento. "Se alguém que eu atendi há um ano resolve ligar num domingo, eu não posso pedir a essa pessoa que espere até segunda-feira. Como tenho todas as fichas no palmtop, consigo lembrar do problema de cada paciente em qualquer lugar e diferenciar meu atendimento." O gosto por tecnologia levou Hamam a montar um grupo na internet para abordar temas que fazem parte do cotidiano de médicos como ele. "Discutimos até questões de marketing", conta.

Os exemplos de Hamam e Magalhães mostram que não é necessário ser expert em gestão para administrar bem um consultório. Claro, quem pensa em seguir a carreira administrativa em tempo integral precisa de um MBA ou algo que o valha. Mas muitos médicos melhoraram suas condições de trabalho e aumentaram seus ganhos apenas por adotar soluções simples que só precisam de bom senso para ser colocadas em prática. "Muita gente acha que informatizar o consultório é um gasto desnecessário. Para mim, é investimento", diz Magalhães. Controlar o fluxo de caixa, descobrir de onde vem a maior parte dos rendimentos -- e no que é melhor investir --, saber o que os clientes esperam e o que os deixa satisfeitos são mandamentos que estão em qualquer livro de administração. "Nosso trabalho é como o de um consultor: ouvimos o problema, analisamos a situação e damos o diagnóstico", diz Hamam. Como os consultores, os médicos também deparam com um mercado cada vez mais competitivo. Sobrevive quem faz a diferença.

GESTÃO FAZ A DIFERENÇA

Os médicos entrevistados no livro Os Novos Médicos Administradores apontaram quais conhecimentos e habilidades são mais importantes para exercer suas funções. Administração ficou na frente. Confira:

Conhecimentos

1º Administração, finanças e legislação

2º Informações sobre o cliente e sobre a concorrência

3º Dados sobre o produto e a atividade da empresa em que trabalham e gestão de pessoas

4º Medicina e tecnologia

Habilidades

1ª Técnica de administração: capacidade para planejar, executar, acompanhar o processo e atuar, se for necessário

2ª Liderança: capacidade de relacionamento e motivação

3ª Gestão: capacidade para assumir visão de empreendedor

FATOS E MITOS

Deixar de lado um consultório para assumir o papel de empresário ou executivo em uma corporação tem seus atrativos, mas quem pensa em fazer a transição apenas por um salário maior pode se decepcionar. Veja o que é mito e o que é verdade na administração médica:

Mito 1: "Mudar é um modo de aumentar meus rendimentos."

Verdade: Ao fazer a transição, nem sempre o cargo ocupado será o do topo da pirâmide administrativa. Por isso, no início de carreira, o salário de um administrador da saúde pode ser bem parecido com o de um médico assalariado.

Mito 2: "Não é necessário experiência clínica."

Verdade: As empresas buscam médicos experientes,que tenham exercido atividade clínica por cinco a dez anos ou que tenham experiência em sua especialidade.

Mito 3: "Habilidades executivas podem ser aprendidas após a contratação."

Verdade: É recomendável que o candidato tenha ocupado algum cargo administrativo. Pode ser sociedade em algum hospital ou diretoria em sociedades médicas ou departamentos acadêmicos.

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