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Carro, carreira e correria

O automóvel dá prestígio e poder no trabalho. Quanto mais alto o cargo, maior o carrão. Melhor ainda quando a empresa paga a conta...

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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 09h32.

Quem já viu a cena sabe como é. Para quem não viu, não é difícil imaginá-la. Executivos de alto nível de várias empresas comparecem a um evento com duas finalidades: (1) durante o dito, dar uma reforçadinha no networking; e (2) na saída, mostrar quem é quem. A cerimônia final é bem ensaiada: os convivas saem todos ao mesmo tempo e se aglomeram em um espaço exíguo enquanto aguardam que os manobristas tragam seus carros. Chega o primeiro. Importado. O pessoal faz de conta que não está nem aí, mas é impossível não notar. Um carraço! Até que chega o segundo. Além de importado, blindado! Há um leve zunzunzum, mas é o terceiro carro que vai deixar todo mundo boquiaberto. Importado. Blindado. E com motorista particular! E o murmúrio ganha ainda mais intensidade quando chega o quarto carro. Um Ka azul. Com câmbio manual e manivelas para abrir os vidros. Pertence ao jovem Dudu Soares, aspirante a executivo. Os presentes emitem muxoxos indecifráveis enquanto o Dudu se enfia pela porta sem olhar para os lados, engata rapidamente a primeira e parte sentindo-se um tanto quanto inferiorizado naquela disputa de grifes.

A reação do Dudu Soares foi até normal, dadas as circunstâncias, mas não deveria ser. Porque, dos quatro felizardos, ele era o único que tinha a propriedade permanente de um veículo, enquanto os demais carregavam títulos hierárquicos, que só lhes davam o direito a usufruir, temporariamente, bens patrimoniais de terceiros. Mas vai explicar isso pro Dudu. No caminho, ele jura para si mesmo que um dia ainda vai ganhar um carrão daqueles. O Dudu sabe, como gerações inteiras já souberam antes dele, que o carro é a materialização do esplendor executivo. Pode-se até dizer que, antes do advento do carro-benefício, os altos mandatários das empresas tinham prestígio e poder, mas não como demonstrar isso publicamente. Para conhecimento do Dudu, a história dessa paixão começou na década de 1960, quando empresas brasileiras ainda não davam carro para ninguém. Foram os diretores das multinacionais americanas que, ao ser transferidos para o Brasil, deram início à moda do status motorizado, já existente nos Estados Unidos desde o pós-guerra, na segunda metade dos anos 40.

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Em 1968, uma reportagem na extinta revista Realidade acenava para os novos tempos que estavam chegando: Philip, um jovem carioca de 23 anos que vestia terno de nycron ("não amarrota nem perde o vinco"), dirigia orgulhosamente um carro cedido por sua empresa, a Esso, "para facilitar a locomoção de seus executivos de vendas". Já se vão mais de 30 anos, mas não dá para deixar de notar que, na época, já existiam duas coisas que imaginamos ser bem mais recentes: (1) o termo "executivo", que parece coisa dos anos 80; (2) jovens, como Philip, que conseguiam chegar a executivo de multinacional com apenas 23 anos de idade, o que parece coisa dos anos 90. Só não havia ainda a expressão "carro-benefício", mas isso era só uma questão semântica: para a Esso, Philip estava se locomovendo a serviço; mas, para Philip, o carro era o símbolo de sua ascensão profissional.

Que carro Philip tinha? Um Volkswagen 1300. Mas, um dia, com muito esforço e persistência, ele mataria os colegas de inveja com um Aero-Willys, "o carro dos homens bem-sucedidos" (anúncio 1). Ou, quem sabe, como o presidente da Esso, ele chegaria ao pináculo da glória: um Galaxie! A verdade é que não havia muitos carros para escolher. O Gordini ("40 HP de emoção", uau!) era considerado "carro de velho". Ou o DKW-Vemag ("a qualidade justifica a fama"), que aliás tinha fama de ser pouco confiável em estradas ruins e distâncias longas. Por isso, o glorioso VW 1300 era mesmo "a melhor idéia" para a época - e, segundo o ex-presidente Itamar Franco, continuou a ser pelos 25 anos seguintes (anúncio 2).

Mas tudo mudaria com o milagre econômico brasileiro, aquele período de 1969 a 1973 em que o PIB brasileiro cresceu 8% ao ano, mais do que o de qualquer outro país do mundo. A classe média emergiu, o consumo explodiu, as indústrias não davam conta da demanda, existiam vagas sobrando nas empresas para quem as quisesse - e o Brasil contraiu a maior parte da cavalar dívida externa que carrega até hoje. As montadoras americanas aproveitaram o embalo e lançaram maravilhas da tecnologia, como o Corcel, da Ford, e o Opala e o Chevette, da GM, que chegaram para substituir carros com cara de antigos, como o próprio Aero-Willys e o Esplanada, da Chrysler. Foi nessa época que a classe média demoliu os jardins na frente da casa para construir garagens, e os carros deixaram de ser um luxo para se tornar uma necessidade básica. Tanto que, para receber uma Brasília, lançada em 1973, era preciso enfrentar uma fila de espera de até oito meses, sem sequer ter a opção de escolha da cor. Logo o consumo duplicaria, quando foi inventado o conceito do "carro da patroa", porque qualquer brasileiro que se prezasse tinha obrigatoriamente de possuir dois carros, senão a vizinhança começaria a comentar que o casal estava mal de vida.

Essa alegria geral foi abalada entre 1973 e 1979, quando ocorreram as duas grandes crises do petróleo. Na época, os árabes criaram um cartel, a Opep, e conseguiram multiplicar o preço do barril de petróleo por dez (de 2 para 20 dólares). De repente, manter um carro, que era baratinho, passou a ser uma despesa considerável. Os carros beberrões de gasolina praticamente sumiram do mercado, e uma empresa, a Chrysler, deu azar de lançar dois mastodontes - o Dodge Dart e o Dodge Charger, que engoliam 1 litro de gasolina para rodar meros 6 quilômetros - justamente quando o preço do petróleo disparou, em 1973. Apesar de tudo isso (ou, quem sabe, exatamente por causa de tudo isso), foi nesse período que o benefício do carro cedido pela companhia, com gasolina paga, se consolidou. Porque os executivos continuaram a ter o desejo de rodar em um carro de classe, mas já não podiam mais pagar por esse prazer. E a solução foi a de "delegar" esse custo às empresas.

A pressão foi tanta que as empresas logo perceberam que, para os gerentes e diretores brasileiros, um carro significava muito mais que um simples complemento salarial. E, a partir daí, o automóvel nunca mais deixou de ser um item vital na atração de novos executivos. Recrutadores de talentos de São Paulo dizem que, a cada ano, a coisa se sofistica mais um pouco. Um deles me relatou uma conversa que teve com um executivo, candidato a uma vaga em uma empresa multinacional. As discussões sobre salário, bônus, assistência médica e escola para os filhos foram bem mais rápidas do que o recrutador esperava. E tudo parecia caminhar para um desfecho satisfatório, até ele mencionar o carro.

Você tem direito a um carro nacional, até o teto de...
Como assim, nacional?

Veja bem, pode ser um tremendo carro, porque o teto permite.
Por isso mesmo. Se já tem um teto, qual é o problema de ser importado?
É a política da empresa.
Olha, eu estou começando a achar que essa empresa, não sei não, está meio desatualizada. Porque qualquer empresa aí fora autoriza a compra de um carro importado.
Você acha que, com todos os outros detalhes que nós já conversamos, e que são bem mais vantajosos do que o que você tem atualmente, o carro nacional pode ser um empecilho?
É que hoje eu tenho um carro importado, e não vai pegar bem eu ser visto por aí com um nacional. Não é por mim, entende? Estou mais preocupado é com a imagem da empresa...

E o processo empacou. A empresa não abriu mão de sua política, e o candidato não abriu mão de seus princípios. Preferiu permanecer onde estava, ganhando menos, mas circulando com seu carro importado. E o recrutador aprendeu que a velha máxima do "cavalo dado, não se olham os dentes" não vale quando o assunto é carro, não importa quantos cavalos ele possa abrigar em seu motor.

Isso não é um exagero? Talvez. Mas, segundo pesquisa de uma consultoria especializada, que vem acompanhando através dos tempos a evolução de benefícios em empresas de grande porte (a maioria, multinacionais), 91% delas davam carros a seus presidentes em 1999. Em 2001, já são 98%. Para diretores, o número cai para 88% contra 86% há dois anos. Para gerentes de primeira linha, a concessão do carro está estabilizada em 80% nos últimos dois anos. E, para gerentes de segunda linha, em 49%. Vinte anos atrás, esses percentuais eram muito menores do que são atualmente. Daqui a mais dez anos, provavelmente todas as categorias estarão batendo nos 100%. Há raríssimas empresas de porte no Brasil que não dão o benefício do carro a seus executivos. Isso não faz com que elas sejam mais ou menos eficientes, mas uma coisa é certa: não conseguem atrair talentos do mercado para seus quadros, ficando com a opção de formá-los internamente. E, um dia, mais cedo do que tarde, esses talentos pedem o boné e vão embora - e quase sempre para uma empresa que oferece um carro como chamariz.

Proporcionalmente, o carro-benefício até que não vale tanto quanto parece: seu custo mensal -prestação, gasolina, manutenção, seguro, impostos - representa de 7% a 10% do pacote de remuneração total do executivo. Os salários básicos continuam a responder por 70% a 80%, e a diferença é o bônus anual. Mesmo considerando-se que sobre salário e bônus incidem os descontos de lei, e sobre o carro não, essa proporção não aumenta tanto: fica entre 10% e 13% do valor líquido embolsado pelo executivo. Mais interessante ainda é que, se a empresa depositasse todo mês na conta de um gerente um valor correspondente à prestação de um carro de luxo e deixasse o gerente decidir o que fazer com o dinheiro, ele provavelmente não investiria tudo em um carrão daqueles. Aplicaria uma parte e se contentaria com um carro de menor valor. A relação entre o executivo e o carro "da empresa" não está baseada na lógica dos números, mas na percepção de que, para a empresa, o carro custa pouco, e, para o executivo, vale muito.

Esse apego ao carro faz com que a discussão e a normatização de detalhes relacionados aos carros-benefício tomem muito mais tempo do que deveriam. Um desses detalhes é a gasolina. Há empresas que permitem quilometragem livre, há outras que a limitam. E outras, ainda, estabelecem um limite de litros de combustível por mês. Um amigo meu, que trabalha em uma empresa que adota este último procedimento, descobriu recentemente que estava "perdendo dinheiro". É que ele morava pertinho da empresa e, portanto, ficava sempre muito abaixo do limite de litros de gasolina a que tinha direito. Não teve dúvidas, foi falar com o RH (aliás, antes que eu esqueça, uma das grandes dores de cabeça do pessoal de RH é administrar essa relação amorosa entre o executivo e o carro). Então, lá foi meu amigo:

Olha, eu não acho legal ir ao posto e pedir uma nota fiscal por um valor maior e depois solicitar o reembolso, embora a norma me permita fazer isso.
Que história é essa? A norma não permite nada.
Mas eu tenho direito a 200 litros de gasolina por mês. Não é o que está na norma?
Não, você não entendeu. Você pode consumir até 200 litros por mês.
Mas eu não poderia trocar essa diferença por, vamos dizer, uma lavagem completa toda semana?
Não, porque a norma não prevê lavagem. Isso é um gasto seu, se você decidir não lavar o carro você mesmo, em sua casa.
O quê? Além de não me beneficiar do consumo de gasolina, ainda vou ter de gastar meu próprio dinheiro com água e sabão?

Outro momento crucial é o da troca do carro. Praticamente a totalidade das empresas (93%, segundo levantamento daquela consultoria especializada) permite que o executivo adquira o carro após um período de tempo - dois ou três anos - por um valor menor que o de mercado. E aí há várias modalidades, mas a maioria das empresas (84%) adota um preço de transferência correspondente a 70% do valor do carro no mercado, no mês da venda. Mas isso é o que menos preocupa o executivo, porque de qualquer maneira ele sai no lucro. O principal, mesmo, é discutir a aquisição do carro novo, mesmo que a norma seja clara a esse respeito. Porque, sabe, depois de dois ou três anos tudo muda: preços, modelos, acessórios... Logo, a norma deveria mudar também. E isso realmente ocorre, porque quando o modelo "do ano" incorpora airbag duplo, computador de bordo, câmbio automático e outros acessórios o preço do carro sobe e o modelo de três anos atrás deixa de existir. Por isso, muitas empresas citam em suas normas apenas que o carro é, por exemplo, "uma Blazer top de linha", e o preço flutuante faz com que, a cada troca, o custo fique um pouquinho mais alto.

Foi essa, digamos, flexibilização da norma que fez com que o executivo brasileiro tivesse direito a carros cada vez melhores, para desespero das matrizes americanas e européias, porque, em termos de custo, isso acaba virando um rombo no balanço. O carro brasileiro, em função da altíssima carga de impostos que incide sobre ele, é um dos mais caros do mundo. Eu me lembro quando, no fim da década de 80, por causa das artes do dólar, um Monza que nossa empresa nos dava chegou a custar 29 mil dólares. Executivos americanos que vinham nos visitar não acreditavam, já que lá, por esse preço, dava para comprar um Mercedes. Um gringo irônico até me disse que, com o que pagávamos pelo Monzinha, ele poderia comprar um ônibus espacial Challenger e ainda sobraria troco. E a gente tentava argumentar, dizendo "But, mister, olha só, ele vem com freio a disco..."

Para as empresas, há também outro inconveniente: segundo a Receita Federal, carro é salário e, como tal, está sujeito a tributação. Quer dizer, sobre o valor mensal de um carro deveriam incidir não apenas o imposto de renda, pago pelo funcionário, mas também INSS, férias, décimo-terceiro e fundo de garantia, encargos de responsabilidade da empresa, que aumentariam mais ainda a carga salarial. Embora existam mecanismos legais que permitam às empresas driblar essa exigência - fazer leasing do carro, por exemplo, ou alugar o carro de uma locadora e lançar o valor no balanço como despesa -, os executivos que são demitidos e entram com uma reclamação trabalhista têm conseguido que a Justiça do Trabalho reconheça essa ambivalência entre carro e salário. E isso está tirando o sono das empresas, que não querem nem pensar no dia em que terão de "chegar a um acordo" com seus executivos, quando o custo mensal de um carro equivalerá ao salário de uma dúzia de auxiliares de produção.

Mas, enquanto esse dia não chega, o negócio é o executivo continuar curtindo sua paixão. E esse "o" executivo aí, no gênero masculino, pode parecer uma maneira politicamente incorreta de excluir as mulheres executivas do assunto, mas não é: mulheres ligam muito menos para tudo isso do que homens. Há até uma teoria da psicologia que diz que o carro sempre foi um símbolo fálico, uma maneira de o homem externar sua virilidade atrás de um volante. É verdade: os recrutadores de executivos dizem que as mulheres, na hora de discutir os benefícios inerentes ao cargo, dão mais, muito mais, importância à assistência odontológica, por exemplo, do que ao carro. Por outro lado, a imensa maioria dos homens consulta a mulher antes de se decidir por uma marca ou modelo. As montadoras sabem disso e encomendam pesquisas para conhecer as tendências do gosto feminino antes de colocar no mercado uma nova cor ou um novo design de um carro. Não é à toa que as propagandas de carro insistem em mostrar homens impressionando mulheres com seus carrões: foram elas mesmas que confessaram, bem antes, que se impressionavam com tudo aquilo.

Em resumo, como o Dudu Soares já havia descoberto lá no primeiro parágrafo, na vida corporativa o carro é o sinônimo mais palpável de "sucesso". Mais que ter apartamento na praia, ou viajar de avião em classe executiva, ou usar relógio Rolex (nesse caso porque, ao contrário do Rolex, é impossível falsificar um Audi). E o Dudu sabe que, para conseguir isso, vai ter de suportar um ritmo profissional aceleradíssimo nos próximos anos, enquanto corre atrás de seu sonho. Não é por acaso que carreira, carro e correria são três termos que derivam da mesma raiz, a palavra latina carrus, uma milenar carreta de madeira com quatro rodas. Mas há outras palavras que também se formaram do latim carrus e que terão de entrar no dicionário do Dudu antes que ele possa ser visto por aí manobrando seu vistoso veículo. Uma delas é currículo, termo inventado pela burocracia do Império Romano para uma lista de referências básicas sobre os cidadãos de Roma, e que sobrevive até hoje na expressão policial "folha corrida". Daí surgiu, já no século 20, o curriculum vitae, a "vida corrida" de um profissional. Com um bom currículo embaixo do braço, o Dudu vai poder passar para a palavra seguinte derivada de carrus: cargo, "aquilo que se carrega". E quem tem um bom cargo sabe que, no começo da carreira, a carga é pesada, e o valor que a empresa paga ao carregador é irrisório. Com o tempo, o peso da carga não diminui, até pelo contrário, mas chegará o dia em que todo o sacrifício será compensado: com um currículo, um cargo e um carro importado, blindado, e, quem sabe, com motorista, o Dudu vai poder esperar pelo momento mágico em que seu possante apontará na boca do estacionamento e seus colegas de outras empresas empalidecerão de inveja. E, nesse instante, para o Dudu demonstrar que se tornou mesmo um sucesso absoluto, ficará faltando apenas assumir aquele ar blasé e soltar a frase definitiva dos bem-sucedidos:

É apenas um carro. Só aceitei porque não tive alternativa, é norma da empresa. Porque, você me conhece, eu nunca liguei para essa coisa de status...

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