Carreira

A hora do recreio

Existem conceitos que se perpetuam como verdades absolutas e ninguém costuma contestá-los. Um deles, geralmente adotado pela maioria dos profissionais que enfrentam longas jornadas diárias de trabalho, diz que basta dar meia hora de atenção aos filhos ao chegar em casa, já tarde da noite, que eles ficarão satisfeitos e felizes. É o velho discurso […]

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Da Redação

Publicado em 14 de outubro de 2008 às 09h57.

Existem conceitos que se perpetuam como verdades absolutas e ninguém costuma contestá-los. Um deles, geralmente adotado pela maioria dos profissionais que enfrentam longas jornadas diárias de trabalho, diz que basta dar meia hora de atenção aos filhos ao chegar em casa, já tarde da noite, que eles ficarão satisfeitos e felizes. É o velho discurso da qualidade x quantidade, algo tão furado quanto uma nota de 3 reais. "A criança precisa, sim, de quantidade", diz a psicóloga Ceres Alves de Araújo, professora de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. "Os pais são o grande objeto de amor do filho, e é natural que eles desejem mais tempo juntos." Para quem vive o eterno conflito de ter pouco tempo para a família, essa constatação pode ser um golpe bastante duro. Mas é a realidade. "A criança que tem pais ausentes boa parte do dia deixa de contar com eles para sua formação", diz o psiquiatra e psicoterapeuta Içami Tiba. "Ela precisa de referências e quando não as encontra vai buscá-las na babá, nos amigos, na escola."

O que fazer, então, para ser um bom pai ou uma boa mãe e, paralelamente, construir uma carreira de sucesso?
Vale dizer que, nessa história, não há solução mágica. Pais executivos, por exemplo, geralmente não conseguem participar da vida dos filhos da maneira como desejam. Muitas vezes, o que acontece, no entanto, é que, mesmo tendo a oportunidade de estreitar mais os laços com as crianças, preferem se isolar. De tão exaustos, acabam perdendo a paciência para lidar com os pequenos. E aí levam trabalho para casa, vêem televisão até altas horas da noite, fazem pesquisas na internet. E os filhos ali, tentando chamar a atenção. Fazem barulho, quebram aquele vaso de que a mãe tanto gostava, brigam entre si, respondem de forma agressiva às perguntas. Os pais costumam concluir que as crianças simplesmente não sabem se comportar. Outros transferem a culpa à escola, como se coubesse ao professor o papel de pai e companheiro. E não é preciso dizer que gritar ou bater nos filhos nessas horas só aumenta o distanciamento.

O desespero que costuma tomar conta do casal nessas horas geralmente o impede de enxergar a saída para o problema: buscar com empenho um ponto de equilíbrio entre a vida profissional e a familiar. O primeiro passo é compreender e aceitar que nem sempre é possível alcançar aquilo que é 100% desejável para um relacionamento ideal com os filhos. O segundo é encontrar disposição para enfrentar as dificuldades que surgirão, como alterar as rotinas tanto no trabalho como em casa.

Pode parecer exagero, mas para dar conta desse recado você tem de se tornar uma espécie de pai-herói, quase um super-homem. Chegou em casa esgotado e seu filho quer brincar? Pois trate de buscar forças para atendê-lo. Seu time acaba de entrar em campo, com direito a transmissão direta pela TV, e o pequeno insiste para que você conte uma história? Esqueça o futebol. Você planeja avaliar o orçamento doméstico com calma, e o garoto quer lhe mostrar o caderno de atividades da escola? Veja, comente e elogie seus rabiscos. E redobre o esforço e a concentração no trabalho para não ter de ficar todos os dias até tarde.

Por mais atolado de trabalho e de cobranças que você esteja, sempre é possível buscar alternativas.
Denise Damiani, sócia da consultoria internacional Accenture, é mãe dos gêmeos Leonardo e Stéfano, de 10 anos. Quando nasceram, ela era proprietária de uma empresa de informática e tinha de se desdobrar para trabalhar e ainda amamentá-los. Ia e voltava de casa para o escritório a cada três horas, intervalo entre as mamadas. Uma corrida maluca, mas que, segundo ela, valeu a pena. "Só voltei a pensar em mim quando eles completaram 8 anos", afirma.

Em 1997, Denise recebeu o convite da Accenture e resolveu aceitar. O começo no novo emprego foi tumultuado, pois seus clientes estavam sediados principalmente em Curitiba (PR), Belo Horizonte (BH) e Porto Alegre (RS) e ela era obrigada a viajar constantemente. Denise ainda se recorda do dia em que a empregada telefonou dizendo que um dos gêmeos tinha caído do balanço e quebrado o braço. "Eu escutava o choro dele ao fundo e não podia fazer nada, pois estava distante centenas de quilômetros. A saída foi pedir a ela que levasse o menino ao hospital e cuidasse de tudo. Foi um dia difícil." Hoje, já mais crescidos, os dois compreendem a necessidade de a mãe ficar até mais tarde no escritório. Sabem, no entanto, que podem contar com ela quando precisarem. Duas vezes por semana, Denise trabalha até 9 ou 10 horas da noite, mas nos outros dias procura sair cedo. Às segundas-feiras, durante a manhã, usa o escritório que montou em casa. Os fins de semana e feriados são dedicados exclusivamente aos filhos.

Convivência equilibrada
A boa notícia nessa história toda é que, da mesma forma que os filhos desejam mais do que aquela meia hora diária de convívio com o pai e a mãe, eles também não os querem ao seu lado o tempo todo. "Filhos são como carros de Fórmula 1: vivem correndo e fazem paradas estratégicas para abastecer. No caso deles, o combustível é o carinho, a atenção e o afeto dos pais", diz Içami Tiba, que é autor de inúmeros livros sobre comportamento, entre eles O Executivo e Sua Família -- O Sucesso dos Pais Não Garante a Felicidade dos Filhos (Editora Gente, 192 páginas, 18,90 reais). "Quando fazem o chamado pit stop, os pais devem entender que eles precisam de atenção naquele exato momento -- e não dali a cinco ou dez minutos. Depois de abastecidos, voltam a correr e não querem mais os cuidados dos pais até a parada seguinte."

O segredo do sucesso no relacionamento com os filhos é basicamente saber comunicar-se com eles.
E isso vale até para os recém-nascidos. Não é novidade para ninguém que os bebês sabem reconhecer o cheiro, o toque e o carinho da mãe e do pai. Quando não recebem a cota necessária de atenção, apresentam reações como urticária, diarréia, insônia e choro constante. É a maneira de dizer que algo não vai bem. Futuramente, essas crianças poderão se tornar adolescentes apáticos e deprimidos. Daí a importância de, ao chegar em casa após o trabalho, os pais procurarem informações sobre o dia do bebê. Ele dormiu? Alimentou-se? Evacuou? Chorou muito? Alterações nesse quadro significam que é preciso redobrar a dose de cuidados e carinho, além, é claro, de encontrar uma maneira de ficar mais tempo ao seu lado.

Dar mais atenção aos filhos não significa que você deva colocar a carreira em segundo plano. Pequenas ações no dia-a-dia podem ter um grande efeito. Criança normalmente adora uma boa surpresa. Que tal aproveitar o horário de almoço, por exemplo, para buscá-la de supetão na saída da escola? "Se as pessoas estão acostumadas a agendar almoços de negócios, por que não reservar um dia para levar o filho a um restaurante após a aula?", questiona a psicóloga Ceres Alves de Araújo. "Ele perceberá que você está dedicando um tempo, que é precioso, exclusivamente para ficar ao seu lado." Dividir com os filhos suas experiências é outra forma de lhes dar carinho. Conte como foi o seu dia, mas atenção: eles não estão nem um pouco interessados em saber se você teve uma reunião importante ou almoçou com o presidente da empresa. Pode ser interessante para você, mas não para seus filhos. Provavelmente eles terão mais curiosidade em saber o que você almoçou, se pediu sobremesa, se viu a chuva que caiu durante a tarde, se pensou neles. Talvez ele se anime e resolva finalmente falar sobre seu dia na escola, das brincadeiras com os amigos e até dar detalhes do tombo que levou e deixou um grande hematoma na perna. Gestos como esse transformam o pai em companheiro, aquela pessoa com a qual o filho pode compartilhar suas dúvidas, medos e anseios.

Frustração e alegria
Cláudio Notini, vice-presidente administrativo e financeiro da RM Sistemas, de Belo Horizonte (MG), sempre sonhou em ser pai um dia. Ele e a mulher, Márcia, gastaram cerca de 25 mil reais em consultas médicas e tentativas de inseminação artificial. Depois de seguidos insucessos, decidiram que a melhor alternativa seria a adoção. Deram entrada na papelada em 1998. Foram alertados de que, ao ser comunicados por telefone pelo juiz da chegada da criança, teriam de se apresentar em, no máximo, uma hora para assinar a documentação. Ficaram em compasso de espera, pois o chamado poderia acontecer já no dia seguinte ou dali a três meses. Foi justamente nesse período que Notini precisou viajar para a Holanda a trabalho. O presidente da RM Sistemas, Rodrigo Diniz Mascarenhas, sabendo de sua saga, decidiu dispensá-lo da missão. Mas Notini sabia que a viagem era importante para os negócios. Fez as malas e embarcou com o coração na mão.

Assim que chegou ao seu destino, a mulher telefonou: tinham sido chamados pelo juiz. Como ele estava fora do país, perderam a adoção. "Fiquei muito triste, frustrado e com um grande sentimento de culpa." Na volta, Notini e Márcia retomaram o sonho. Em agosto de 1999, tornaram-se pais de Igor, um robusto menino que hoje está com 2 anos de idade. "É a maior alegria que tenho nesta vida", diz ele. Hoje, o vice-presidente da RM não fica até tarde no escritório. Passou a delegar boa parte das tarefas que antes centralizava em suas mãos. Notini vai também almoçar em casa praticamente todos os dias. Quando regressa ao trabalho, deixa Igor na escola. Nos fins de semana, dispensa a babá. "Eu me obrigo a criar mais espaços para minha família." Notini e Márcia gostaram tanto da experiência que estão novamente "grávidos" e aguardam a próxima adoção. Desta vez, serão pais de uma menina.

Decisão madura
O dilema trabalho x família tem feito com que muitas mulheres renunciem à carreira profissional para cuidar dos filhos. Em alguns casos, no entanto, o tiro pode sair pela culatra. "Há crianças que sentem vergonha de dizer às amiguinhas que a mãe é dona de casa", diz a psicóloga Ceres de Araújo. "Elas acham que há algo errado, pois estão acostumadas a ver as outras mães trabalhar o dia todo." Divididas, as mulheres ficam sem saber o que fazer. Algumas, não tão bem-sucedidas como desejariam, costumam aproveitar a oportunidade para deixar definitivamente de trabalhar. O problema é quando, de maneira cruel, elas invertem a história e jogam na cara dos filhos que não foram bem-sucedidas profissionalmente porque renunciaram à carreira para cuidar deles. Na verdade, fracassariam de qualquer maneira porque não tinham qualificações tão boas assim.

Larissa M.M. Aranha, gerente de marketing da consultoria de imóveis Jones Lang LaSalle, conseguiu encontrar um ponto de equilíbrio para cuidar dos filhos.
Ela é mãe de Nathália, de 1 ano e 7 meses, e de Luiz Felipe, que acaba de completar seu primeiro mês de vida. Embora fique agora a maior parte do tempo cuidando do garotão que acaba de chegar, ela sabe que não deve deixar de dar atenção a Nathália, que passa praticamente o dia todo na escolinha. Como ocupa um cargo de comando dentro da empresa, não pode se dar ao luxo de se afastar completamente de suas funções, mesmo estando de licença-maternidade. Criou com sua equipe um esquema de envio de e-mails e telefonemas em horários em que Luiz Felipe está dormindo. Nesses momentos de folga, ela orienta o pessoal, esclarece todas as dúvidas, lê os relatórios e até toma decisões estratégicas. Seu pessoal já conhece a "agenda" do bebê e procura adequar os telefonemas a ela. Larissa diz também que, em breve, passará a ir de vez em quando à empresa. "Não vejo problema algum em aproveitar parte desse tempo para o trabalho", afirma.

A vida de Larissa mudou bastante desde a chegada dos filhos. Antes, costumava ficar no escritório até tarde da noite. Algumas vezes, invadia a madrugada trabalhando. Hoje, isso não acontece mais. "Durante o dia, não ligo para amigos nem perco tempo com assuntos que não estão relacionados diretamente ao meu trabalho", diz. Larissa chegou a temer pela sua carreira por causa de duas licenças-maternidade tão próximas. Mas achou que era o momento de priorizar a família. "Eu preferi ter meus filhos agora e correr o risco de um crescimento profissional mais lento. É uma escolha difícil e cheguei a ficar completamente sem graça quando anunciei que estava grávida novamente", afirma. Larissa, no entanto, reconhece que terá de abrir mão do sonho de constituir uma família grande, com vários filhos. A questão não é só financeira. Uma terceira gestação seria arriscada demais para a carreira. "É uma questão de bom senso, pois também não quero abrir mão da minha vida profissional."

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