Entenda os debates atuais sobre filantropia (Noko LTD/Getty Images)
Colunista Bússola
Publicado em 18 de dezembro de 2025 às 13h00.
Por Rafael Gonçalves de Albuquerque e Ana Montosa*
A filantropia global vive um paradoxo mensurável. Nunca houve tanto capital formalmente separado para fins sociais e, ao mesmo tempo, nunca foi tão lenta a sua efetiva alocação. O problema não está na intenção dos doadores nem na ausência de recursos, mas na arquitetura institucional que passou a reger a doação de grandes fortunas.
Em 2022, cerca de US$ 1,2 trilhão estava alocado em fundações privadas nos Estados Unidos, somados a aproximadamente US$ 230 bilhões em donor advised funds. Ainda assim, segundo a Forbes, os 400 americanos mais ricos doaram menos de 6% de seu patrimônio, apesar de concentrarem US$ 4,5 trilhões em riqueza.
Esse descompasso está diretamente ligado à consolidação do chamado high-friction giving. A partir dos anos 2000, a filantropia passou a importar ferramentas do mundo corporativo, com forte ênfase em métricas, desenho prévio de projetos e monitoramento.
A Bill & Melinda Gates Foundation tornou-se um dos exemplos mais citados desse modelo, com impactos relevantes em saúde global, como a erradicação do vírus selvagem da pólio na África em 2020. O problema
surgiu quando esse método deixou de ser contextual e passou a funcionar como padrão absoluto.
Ao concentrar governança depois da doação, o high-frictiongiving elevou custos operacionais e deslocou tempo das organizações para a burocracia. Andrew Serazin, da Templeton World Charity Foundation, descreve esse fenômeno como uma obsessão por processos, enquanto Rob Reich, da Universidade de Stanford, alerta que aplicar a lógica de risco e retorno financeiro à filantropia compromete sua função essencial.
Essa tensão se agrava porque a filantropia opera em um ambiente estruturalmente distinto do mercado, sem métricas universais de sucesso. Cooperação e confiança tendem a ser mais relevantes do que rivalidade, como sintetiza Harvey Fineberg, da Gordon and Betty Moore Foundation.
A partir de 2020, a pandemia de covid-19, os protestos sociais nos Estados Unidos e a guerra na Ucrânia expuseram a importância da velocidade em contextos de crise. Nesse cenário, ganhou escala o no-strings giving, ou filantropia baseada em confiança, deslocando o debate da eficiência para a forma como a governança é exercida.
Mais do que eliminar critérios, o no-strings giving desloca a governança para antes da doação, concentrando a diligência na avaliação institucional e reduzindo fricções na execução.
O caso mais emblemático é o de MacKenzie Scott, que recebeu cerca de US$ 38 bilhões após seu divórcio em 2019 e, desde então, já destinou aproximadamente US$ 16,5 bilhões a organizações da sociedade civil. Sua opção por doações majoritariamente irrestritas, com acompanhamento simples e proporcional à maturidade das instituições apoiadas, ajudou a reposicionar o debate sobre escala, confiança e velocidade na filantropia contemporânea. O diferencial não está apenas no volume de recursos, mas na lógica de confiança aplicada ao processo.
Esse debate assume contornos ainda mais complexos quando observado a partir do Brasil. Aqui, a fricção institucional é profunda e estrutural. Incentivos regulatórios limitados, baixa confiança histórica nas organizações da sociedade civil e uma cultura filantrópica marcada pela execução direta ajudam a explicar por que o capital existe, mas circula pouco.
Ainda assim, começam a se consolidar no país iniciativas que dialogam com essa transição global. Organizações como a The Haddad Foundation e a Fundação Lemann ilustram uma filantropia que atua menos como financiadora de projetos isolados e mais como estruturadora de agendas de longo prazo, com foco no desenvolvimento de lideranças e no fortalecimento da educação pública. Ao priorizar investimento institucional, articulação entre atores e visão sistêmica, essas experiências contribuem para reduzir fricções em áreas que exigem continuidade e confiança.
Esse movimento explicita o ponto central do debate. Transformações duradouras dependem de organizações fortes, financiamento estável e relações construídas ao longo do tempo; modelos excessivamente prescritivos tendem a fragilizá-los.
Nada disso implica abrir mão de responsabilidade, mas reconhecer que diferentes contextos demandam diferentes arranjos. Governança antecipada, simplicidade operacional e investimento institucional podem
funcionar como vantagens estratégicas, especialmente em ambientes marcados por desigualdade e alta incerteza.
A filantropia contemporânea não enfrenta um problema de escassez de capital, mas de fricção institucional. Redefinir onde a governança ocorre e como a confiança é construída é parte central para destravar recursos e ampliar impacto real.
*Co-autores:
Rafael Gonçalves de Albuquerque é advogado, conselheiro certificado pelo IBGC, co-fundador da Calix Family Office e autor do livro “O Impacto da passagem de Patrimônio para as próximas Gerações”.
Ana Montosa é diretora-executiva do Ensina Brasil, organização da sociedade civil que atua para fortalecer a educação pública por meio da formação de lideranças e do desenvolvimento institucional de redes educacionais.