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Entenda o escândalo da manipulação de jogos e resultados no futebol

Saiba o que é a operação “penalidade máxima” e quais as sanções que poderão ser aplicadas aos atletas envolvidos

Dezenas de jogadores estão envolvidos com manipulação de resultados (Wander Roberto/CA2019/Divulgação)

Dezenas de jogadores estão envolvidos com manipulação de resultados (Wander Roberto/CA2019/Divulgação)

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Publicado em 16 de maio de 2023 às 14h14.

Por Stephanie Carolyn Perez e Andrés Ramón Perez*

Ganhou destaque na mídia a Operação “Penalidade Máxima”, iniciada pelo Ministério Público do Estado de Goiás. Trata-se de procedimento instaurado pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) e pela Promotoria de Combate ao Crime Organizado, que busca investigar a manipulação de resultados nas competições esportivas perpetrada por uma organização criminosa especializada em corromper atletas profissionais de futebol para assegurar a ocorrência de determinados eventos nas partidas e, com isso, angariar elevados ganhos em apostas esportivas. O tema é relevante e atual já que vem sendo cada vez mais comum a prática de apostas esportivas especialmente por meio de plataformas digitais e aplicativos que conectam apostadores em todas as partes do planeta.

De acordo com o que já foi apurado até o momento, trata-se de atuação de grupo criminoso visando o aliciamento e a cooptação de atletas profissionais para, mediante contraprestação financeira, assegurar a prática de determinados eventos em partidas oficiais de futebol (como por exemplo punição com cartões amarelos e/ou vermelhos, cometimento de faltas, entre outros) e, com isso, garantir o êxito em elevadas apostas esportivas feitas pelo grupo criminoso em casas do ramo. O grupo se vale, ainda, de contas de terceiros para aumentar seus lucros, ocultar reais beneficiários e registrar a atuação de intermediadores para identificar, fornecer e realizar contatos com jogadores dispostos a praticar as corrupções.

A denúncia já foi recebida pela justiça, o que significa dizer que os denunciados já são formalmente réus/acusados em um processo criminal que já está em andamento perante a Justiça do Estado de Goiás. Além disso, há três denunciados presos preventivamente em São Paulo, aguardando transferência para o Estado de Goiás. Também há envolvidos presos preventivamente. Entre os presos estão o líder do esquema criminoso e financiadores. Não há nenhum atleta profissional preso até o momento.

As investigações continuam e a depender do que for descoberto, o Gaeco poderá oferecer denúncia contra novos envolvidos.

Até o momento, a denúncia oferecida imputa a prática do crime de organização criminosa, na forma do artigo 1º, §1º c/c artigo 2º da Lei nº 12.850/13, que tipifica a conduta de promover, financiar ou integrar organização criminosa. A pena cominada ao delito é de reclusão de três a oito anos e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.

Também são imputadas as condutas previstas nos artigos 41-C  e 41-D  do Estatuto do Torcedor, que são espécies de atos de corrupção, com penas de reclusão que variam de dois a seis anos e multa.

Além do regular processamento do feito para que ao final sejam os envolvidos responsabilizados criminalmente pelas condutas imputadas, o Gaeco pediu a título de dano moral coletivo o valor mínimo de R$ 2 milhões para reparar os danos causados pelos denunciados. O valor foi calculado com base em uma das expectativas de lucro do grupo criminoso com a utilização de dezenas de contas que foram empregadas nas apostas manipuladas descritas na acusação. Além disso, este valor deverá ser atribuído globalmente, de forma solidária, a todos os réus.

O que aconteceu?

Até o momento, algumas pessoas já foram denunciadas pelas fraudes perpetradas visando à manipulação de resultados em 13 partidas de futebol, sendo oito do Campeonato Brasileiro da Série A de 2022, uma da Série B de 2022 e quatro de campeonatos estaduais realizados em 2023. Na peça acusatória, chamada de denúncia, o Ministério Público do Estado de Goiás aponta 23 fatos criminosos ocorridos durante as partidas, nas quais jogadores se comprometeram a cometer faltas para receber cartões e a cometer pênaltis. A organização criminosa investigada visava apostar nos resultados e eventos induzidos e, desta forma, obter elevados ganhos .

De acordo com informações obtidas no site do Ministério Público do Estado de Goiás, essas são as partidas nas quais o grupo criminoso atuou visando induzir eventos fraudulentos:

  • Palmeiras x Juventude (10 de setembro de 2022)
  • Juventude x Fortaleza (17 de setembro de 2022)
  • Goiás x Juventude (05 de novembro de 2022)
  • Ceará x Cuiabá (16 de outubro de 2022)
  • Sport x Operário (PR) (28 de outubro de 2022)
  • Red Bull Bragantino x América (MG) (05 de novembro de 2022)
  • Santos x Avaí (05 de novembro de 2022)
  • Botafogo x Santos (10 de novembro de 2022)
  • Palmeiras x Cuiabá (06 de novembro de 2022)
  • Red Bull Bragantino x Portuguesa (SP) (21 de janeiro de 2023)
  • Guarani x Portuguesa (SP) (08 de fevereiro de 2023)
  • Bento Gonçalves x Novo Hamburgo (11 de fevereiro de 2023)
  • Caxias x São Luiz (RS) (12 de fevereiro de 2023)

Entre os denunciados estão apostadores, aliciadores, financiadores e atletas profissionais de futebol. Há atletas profissionais que apesar de não constarem na denúncia oferecida, estão sendo investigados pelo Gaeco, razão pela qual poderão eventualmente serem denunciados pelo órgão. Os clubes em que atuam os jogadores investigados optaram por afastar os profissionais preventivamente .

Quais são as consequências jurídicas? 

A denúncia oferecida imputa, até o momento, a prática do crime de organização criminosa, na forma do artigo 1º, §1º c/c artigo 2º da Lei nº 12.850/13. Também são imputadas as condutas previstas nos artigos 41-C e 41-D do Estatuto do Torcedor, que são espécies de atos de corrupção, com penas de reclusão que variam de 02 a 06 anos e multa.

Inicialmente vale destacar que uma denúncia busca apurar apenas e tão somente a responsabilidade criminal dos denunciados pelos fatos apurados. Portanto, com relação ao processo penal que já está em andamento perante a 2ª Vara de Repressão ao Crime Organizado do Estado de Goiás, as consequências que poderão surgir referem-se apenas à responsabilidade penal dos denunciados. Ou seja: ao final do processo, respeitadas as garantias do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, o juiz deverá decidir se os denunciados são ou não autores dos crimes a eles imputados.

Uma vez reconhecendo a responsabilidade penal dos envolvidos (entendendo, portanto, que são autores dos crimes a eles imputados), o juiz irá reconhecer a autoria dos crimes e aplicar, ao final, a respectiva sanção penal.

Contudo, os fatos em comento não possuem consequências apenas na esfera penal. Neste sentido, uma segunda observação que merece destaque é a independência das esferas penal, administrativa e civil. Isso significa dizer que eventual responsabilidade penal não afasta a possibilidade de reconhecimento e aplicação das responsabilidades civil e administrativa ao mesmo caso – desde, é claro, que estejam presentes os pressupostos para tal.

Destaque-se que existe um processo judicial em andamento. É possível, ainda, a abertura de procedimentos administrativos disciplinares contra os atletas envolvidos perante a Justiça Desportiva, que poderá aplicar sanções aos atletas que podem variar entre advertência, multa, suspensão por prazo e proibição de participar de atividades relacionadas ao futebol por tempo determinado, além da sanção de banimento perpétuo do esporte ao atleta profissional envolvido em tais atos, conforme dispõe o artigo 65 do Regulamento Geral das Competições – CBF.

No âmbito da Justiça Desportiva, o atleta envolvido poderá incorrer nas condutas tipificadas nos artigos 243  e 243-A  do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (“CBJD”), considerando o ato praticado por ele na partida que tenha ocorrido a eventual manipulação de resultado.

No que tange à infração tipificada no artigo 243 do CBJD, a conduta prevista é “atuar, deliberadamente, de modo prejudicial à equipe que defende”, situação em que o atleta possa ter eventualmente forçado a aplicação de uma penalidade contra sua equipe, uma falta, ou até mesmo um cartão amarelo ou vermelho contra si próprio, por exemplo.

Nesse contexto, a penalidade que poderá ser aplicada ao atleta é a imposição de multa pecuniária no valor de até R$ 100 mil, além da suspensão do futebol por período de 360 até 720 dias. Caso o atleta seja reincidente, poderá ser aplicada a pena de banimento do esporte.

Em relação à conduta prevista pelo artigo 243-A do CBJD, esta refere-se à situação em que o atleta deveria “atuar, de forma contrária à ética desportiva, com o fim de influenciar o resultado da partida”. Ou seja, seria a situação em que a conduta praticada pelo atleta possa ter efetivamente influenciado o resultado no campo de jogo. Nesse aspecto, a finalidade da conduta não seria praticar um ato pontual para receber a recompensa financeira, mas, atuar efetivamente e de modo deliberado, com a intenção de alterar o resultado da partida disputada no campo de jogo. Seria o caso de um atleta que comete um gol contra sua própria meta, para que seja atingido o placar pretendido pelos manipuladores.

Ainda no âmbito administrativo, o atleta envolvido na manipulação de resultados poderá estar sujeito às sanções previstas no Código de Ética e Conduta do Futebol Brasileiro  da Confederação Brasileira de Futebol (“Código de Ética da CBF”), o qual prevê em seu artigo 1°  seu escopo de atuação, que é orientar as condutas éticas nas relações profissionais e comerciais do futebol, com a intenção de manter a moralidade no futebol brasileiro.

O artigo 7°  do Código de Ética da CBF é imperativo ao estabelecer a competência da Comissão de Ética da CBF para analisar a conduta dos atletas que venham a entrar em conflito com as suas normativas, sem prejuízo do que venha a ser deliberado no âmbito da competência da Justiça Desportiva. Por sua vez, o art. 8°, inciso (ii), estabelece o dever dos atletas em não se envolverem e/ou denunciarem questões de manipulação de resultados que cheguem ao seu conhecimento.

Cumpre mencionar que aqueles atletas que venham a ser sancionados pela Comissão de Ética da CBF poderão estar sujeitos a penalidades graves como multa pecuniária de até R$ 500 mil e banimento do esporte, conforme previsão do artigo 21  do Código de Ética da CBF.

É possível, ainda, por se tratar de um caso de grande repercussão, que o atleta envolvido seja responsabilizado perante o Tribunal de Ética da FIFA, nos termos do artigo 20 do Código Disciplinar da FIFA . Vale mencionar que a FIFA também prevê a possibilidade de banimento perpétuo do atleta do esporte.

Por fim, no âmbito contratual, no que tange à relação jurídica envolvendo o atleta e seu clube empregador, cabe mencionar a possibilidade de rescisão unilateral do contrato de trabalho por culpa do atleta (ou seja, rescisão por justa causa). Nesta hipótese, o atleta poderá ser obrigado a pagar ao clube empregador a cláusula indenizatória desportiva prevista contratualmente, em razão da rescisão contratual antecipada motivada pelo atleta, sem prejuízo de outras sanções que estiverem avençadas no contrato de trabalho firmado entre o atleta e o clube.

Existe possibilidade de acordo? 

Com relação aos denunciados que já respondem ao processo penal instaurado, alguns deles admitiram a participação nos fatos e foram premiados com a possibilidade de celebração do ANPP (acordo de não Persecução Penal) com o MP-GO. O artigo 28-A, “caput” do Código de Processo Penal estabelece os requisitos do acordo:

Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente.

O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) é negócio jurídico decorrente de uma opção de política criminal, utilizado para solucionar de forma abreviada situações que envolvam prática de infração penal cometida sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 anos. O acordo é celebrado entre o Ministério Público e o autor do fato delituoso, devidamente assistido por seu defensor, por meio do qual o autor do fato confessa formal e circunstancialmente a prática de um delito, sujeitando-se ao cumprimento de determinadas condições não privativas de liberdade em troca do compromisso do Ministério Público de não oferecer denúncia contra o autor.

Trata-se de instituto que tem como principal objetivo impedir que seja ajuizada ação penal contra o autor do fato, daí porque recebe o nome de acordo de não persecução penal.

Destaque-se que, por meio deste acordo, não será imposta nenhuma pena ao acusado, justamente porque o objetivo do instituto é impedir o ajuizamento da ação penal, por isso recebe o nome de Acordo de “não” Persecução Penal. Haverá, no entanto, a imposição de deveres e obrigações para ambas as partes. Desta forma, o autor do delito celebra acordo com o titular da ação penal, por meio do qual se sujeita ao cumprimento de determinadas condições enquanto o Ministério Público se compromete a não oferecer denúncia. Ao final, caso o autor do crime cumpra corretamente as condições acordadas, terá declarada extinta a sua punibilidade.

Neste ponto, ressalte-se que um dos requisitos para a celebração do acordo é a confissão do atleta, que irá admitir, portanto, sua participação nos fatos criminosos investigados. Mas não basta admitir o seu envolvimento. A lei exige mais. Essa confissão precisa ser formal e circunstancial. Confissão formal é aquela realizada por escrito (as declarações do atleta serão reduzidas a termo). Confissão circunstancial é aquela por meio da qual o investigado indica de maneira minuciosa e detalhada todas as circunstâncias referentes ao cometimento do delito objeto do acordo. Ao fazê-lo, o atleta estará munindo a autoridade responsável pela investigação de todos os elementos de prova necessários, que poderão inclusive ser compartilhados com outras autoridades. Essa confissão poderá – e certamente será – utilizada por outras esferas a fim de responsabilizar o atleta pelos fatos praticados.

Por fim, importante também mencionar que o acordo não gera reincidência ou qualquer tipo de antecedente criminal. Ou seja: se o autor do crime for primário, não perderá a sua primariedade. E se já tiver praticado algum outro delito anteriormente, não terá nenhum apontamento em sua ficha criminal (antecedentes criminais). Isso porque como o objetivo do acordo é justamente o não ajuizamento de ação penal, sequer será analisada eventual culpabilidade do autor do delito e também não será proferida nenhuma sentença contra ele.

Nada obstante, é importante ressalvar que a celebração do ANPP não impede que o atleta venha a ser responsabilizado em outras esferas tais como a cível, trabalhista ou mesmo a desportiva.

Devemos acompanhar o desdobramento das investigações, pois certamente surgirão novos fatos e novos envolvidos.

*Stephanie Carolyn Perez é mestre e bacharel em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Andrés Ramón Perez é advogado com atuação nas áreas do direito desportivo, esportes e entretenimento

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