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Combate à sonegação no Brasil: desafio para além do Direito Penal

Para o criminalista Augusto de Arruda Botelho, não é função do Direito Penal ser um mero braço do Estado para arrecadação

Dinheiro (Priscila Zambotto/Getty Images)

Mariana Martucci

Publicado em 13 de novembro de 2020 às 16h32.

Nos manuais de Direito Penal uma expressão é bastante conhecida: ultima ratio. Na prática, significa dizer que o Direito Penal é e sempre deverá ser a última solução para resolução de um conflito. Mais ainda, significa que o Direito Penal deve ser sempre acessório, ou seja, acionado apenas quando outras formas de solução não obtiveram êxito. A razão para isto é bastante clara: só o Direito Penal e a Justiça Criminal são capazes de cercear a liberdade de alguém e, em razão da gravidade desta medida, precisa ela ser tomada apenas e tão somente quando não há outra resposta possível.

E para o que serve uma punição? Mais ainda, para que serve o Direito Penal?

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Podemos começar pela parte mais teórica, afirmando que ele tem como motivo de ser a proteção do que chamamos de bem jurídico. Traduzindo este juridiquês, vamos ao artigo 121 do Código Penal: “matar alguém”. Neste caso, qual é o bem jurídico que o Direito Penal tutela? A vida. A vida, neste caso, é o bem jurídico tutelado.

Agora, vamos falar do assunto que efetivamente este breve artigo trata: os crimes tributários. Qual é o bem jurídico protegido nos crimes tributários que justificariam a mão e o peso do Direito Penal? Há uma grande discussão na doutrina brasileira e internacional sobre o tema, mas, de alguma forma, elas orbitam sob um mesmo núcleo. Para ser mais didático, vamos resumir e apontar como bem jurídico protegido neste caso a arrecadação tributária e todos os reflexos posteriores dessa arrecadação.

Há de se perguntar aqui: o Direito Penal, mais especificamente o Direito Penal Tributário, tem respondido e enfrentado o problema da sonegação de impostos à altura? A resposta me parece óbvia: não. A lei tributária, por mais que preveja pena de prisão para sonegadores, pouco traz para evitar a sonegação em si. E aqui não é uma razão de ser esta lei branda, ou com penas baixas – afinal, sabemos que aumentar a pena de qualquer crime que seja, pouco ou nenhum reflexo tem na redução da incidência deste crime.

Mais do que não evitar, a própria política tributária brasileira é, ao fim e ao cabo, um incentivo a uma anterior sonegação. Aqui explico: os incontáveis programas de parcelamento de tributo, as incontáveis benesses que a lei ao longo das últimas décadas vem oferecendo ao sonegador, fazem com que tenhamos em nosso país a máxima de que “pagou, não há crime”. Temos até a mera promessa de um pagamento como algo que impacta diretamente na persecução criminal. Inquéritos Policiais e Ações Penais têm que ficar suspensos a partir do momento em que o contribuinte, ao aderir a um programa de parcelamento, realiza, por exemplo, o pagamento da primeira parcela, prometendo e comprometendo-se a pagar as dezenas de outras parcelas já pactuadas em seu acordo.

Portanto, uma necessária reflexão precisa ser feita: de que adianta uma lei penal dizendo que é crime sonegar, se constantemente os governos oferecem possibilidades de parcelamentos ou descontos gigantescos ao contribuinte, que ao aderirem a estas propostas tem toda e qualquer imputação criminal afastada? Esse sistema funciona? A resposta também me parece clara: não.

E essa reflexão não terminará com algum tipo de proposta de endurecer mais a lei ou de punir com a força do Direito Penal aquele que sonega. Por outro lado, não podemos continuar a fazer uso de uma política criminal incentivada por uma política fiscal, que muitas vezes acaba por proteger aquele que pretende sonegar.

Sendo bastante objetivo, estamos usando o Direito Penal e o Sistema de Justiça Criminal, ambos, que justamente deveriam ser a última medida, como um mero braço do Estado para arrecadação de impostos. Não é esta a função do Direito Penal.

Precisamos com urgência de uma discussão sobre esse tema. Sem hipocrisia, moralismos, mais pragmática, realista e principalmente eficaz.

* Augusto de Arruda Botelho é advogado criminalista, especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra e especialista em Direito Penal pela Universidade de Salamanca. Conselheiro da Human Rights Watch e ex-Presidente e conselheiro do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa).

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