Bússola Vozes: não há espaço para conciliação
Os direitos de meninas e mulheres foram colocados em perigo no último mês e, sem a reação da sociedade civil, teriam sido exterminados. A lição é a de que não há espaço para recuar
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Publicado em 27 de junho de 2024 às 10h00.
Por Elisa Dinelli*
No último dezembro, escrevi para esta mesma coluna com um sentimento que chamei na época de “desapontamento” . Escolhi essa palavra porque ela sempre me soou uma versão mais contida, branda, de “decepção” .
Embora, em significado, as duas palavras não divirjam tanto em dicionários, a última quase sempre merece algumas linhas a mais nas descrições para dizer que o substantivo tem uma carga negativa, um sentimento de mágoa, tristeza.
À primeira só conferem o significado como de “uma surpresa desagradável”, quase como se o desapontamento viesse primeiro: algo de ruim acontece e, no momento exato do acontecimento inesperado, se sente o desapontamento. Nos passos seguintes, conforme se analisa, se tem mais informações e desenrolares, o que se sente é decepção.
Então nos vemos aqui, em junho, seis meses depois do desapontamento. E, seguindo a minha definição de “decepção”, acredito que não estejamos lá ainda. Mas nunca estivemos tão perto. E há algumas lições a serem aprendidas.
Lei do aborto
Depois da votação trágica da urgência do PL1904/2024 neste mês de junho, ficou cristalino para a sociedade brasileira que os direitos de meninas e mulheres à saúde e à segurança são negociáveis, com o valor de troca muito baixo.
Pelos seus projetos de poder individuais e partidários, deputados pautaram e votaram para impossibilitar que pessoas que engravidassem, mesmo em caso de estupro, tivessem acesso ao aborto legal. Temos um dos Congressos mais conservadores da história da democracia, mas que também tem temas muito mais urgentes que interferem na vida prática de brasileiras e brasileiros – como a reforma tributária, a regulação de inteligência artificial, o combate às fake news, entre outros – para discussão e votação.
A questão da urgência
Ao pautar urgência neste projeto espúrio, Lira demonstrou uma afronta à população brasileira e, ao buscar sigilo aos nomes de quem votou a favor ou contra a urgência, o partido do governo indica receio em deixar clara sua integridade com as próprias bandeiras e com a possível “saia justa” nas eleições municipais.
Para endossar o que parecia ser o combo do ataque às mulheres (às negras e pardas, principalmente), foi desenterrada também, na mesma semana, a PEC que objetiva anistiar partidos que desrespeitaram as regras de cotas de gênero e raça.
A reação dos brasileiros
O que, provavelmente, Arthur Lira e as deputadas e deputados não esperavam foi a reação da sociedade brasileira – em especial, grupos de mulheres que lutam pelos direitos reprodutivos e pela equidade de gênero no Brasil – a este ataque.
O avolumamento de declarações de repúdio, com o aparecimento exponencial de expressões como “ Criança não é mãe” e “PL do estuprador” nas redes, e a replicação de conteúdos que resumiam a absurdidade de se ter, em um país que se diz laico e democrático, uma regulação que poderia punir por mais anos uma vítima de estupro por ter abortado, do que o estuprador que abusou dessa vítima; todas essas reações ajudaram a criar o ambiente para manifestações de ruas em inúmeras cidades brasileiras, e logo na semana do acontecido.
Votação adiada devido à repercussão
Diante da repercussão negativa, Lira adiou a votação para o segundo semestre deste ano. Embora haja um suspiro de alívio e uma sensação de que a articulação teve consequências reais para que o PL não fosse votado, é preciso entender a realidade que estamos.
Seria, de fato, uma vitória, estar em uma situação em que precisamos gastar tanto tempo e energia para dizer o óbvio e combater a crueldade com as nossas crianças? Ou, ao expor autores e apoiadores de leis como essas, conseguimos mostrar à população geral, que não acompanha tanto a política, quem são os políticos que atacam sua própria população e quem nos defende?
Essas dúvidas estão postas e suas respostas são complexas, não acredito que haja uma conclusão definitiva: se perdemos ou ganhamos nessa discussão e na defesa dosdireitos das mulheres, o tempo dirá em médio prazo.
Contudo, um argumento é certo: não pode haver espaço para a conciliação entre visões reacionárias e as tentativas de progressos na liberdade de escolha quando este é o tema:
Saúde e direitos das mulheres
Em decisões já definidas por lei, como é o acaso do aborto em decorrência de estupro, houve um vilipêndio desse direito com o aval da Casa do Povo. Houve quem argumentasse que o limite de 22 semanas seria razoável porque é um período extenso para descoberta da gravidez.
Finge-se esquecer, porém, da realidade de meninas sem educação sexual no território brasileiro e, do ponto de vista de estratégia para ampliação dos nossos direitos, se determina uma limitação gradual, encaminhando-se para uma redução ainda maior e mais radical no futuro.
Ou seja, quando há alguma conciliação ou recuo do pouco que já temos, ao menor sinal de vulnerabilidade, exige-se mais concessões.
Outra certeza que temos é a de que a sociedade civil, representada neste caso específico da PL 1904/2024 por grupos de mulheres e organizações do terceiro setor, deve sempre exercer sua função política de fiscalizar o Congresso Nacional.
A eleição é mais um rito, de extrema importância, mas que compõe outros tantos que indicam aos parlamentares que alguns limites não devem ser cruzados.
Mesmo assim, estamos em ano de eleições por todo o país. Por tudo que vimos neste primeiro semestre que está quase encerrado, e pelos quase 100 anos de voto feminino e luta por equidade e mais respeito, não existe espaço para eleição de quem não se compromete com os nossos direitos à saúde, à dignidade e à segurança. Votar em mulheres em outubro próximo é o mínimo. Votar em mulheres progressistas é urgente.
Não há conciliação.
Elisa Dinelli é diretora de comunicação na Elas no Poder.
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