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A educação é transformadora e a corrida ainda é desigual

A gestão e toda a comunidade escolar precisam estar sensibilizadas para o letramento racial

 (Leonardo Bento/Divulgação)

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Publicado em 28 de novembro de 2021 às 09h00.

Por Fernando Shayer e Leonardo Bento*

Eu tive todos os privilégios que têm um jovem branco brasileiro de classe média. Fui a uma boa escola, paga pelos meus pais. Frequentei uma excelente faculdade pública gratuita e, até hoje, me pergunto o porquê de não pagar as mensalidades. O mercado de trabalho estava aberto para mim, e jamais alguém questionou minhas origens. Demorei para notar com clareza como sou parte de um país muito opressor, em todos os sentidos, e como eu ajudava a preservação dessa situação, com minha omissão. Percebo hoje que estamos num momento histórico, em que muitos passos estão sendo dados, no mundo todo, para uma transformação na maneira como abordamos o racismo. Trabalho com o professor Leonardo Bento, na Camino School, que tem uma história de muito mais luta e conquistas do que a minha, e que me inspira diariamente a evoluir, bem como nossos colegas e alunos. Na semana da consciência negra, convidei-o para contribuir com sua visão nesta coluna. É o lindo texto que segue:

Numa corrida de atletismo, normalmente vence quem está melhor preparado. Mas imagine que a corrida envolvesse um competidor que teve acesso a todas as possibilidades de alimentação, treino, acompanhamento médico e psicológico, e o outro que estivesse com seus músculos atrofiados, por ter, desde o início de sua vida, ficado amarrado. Como seria o resultado?   

Na época em que tinha a idade dos meus alunos atuais, entre dez e 13 anos, eu já me fascinava com português, inglês e história. Algo me dizia que precisava aprender bem a minha língua e inglês para conversar com pessoas de outros países. Com o tempo, entendi que aprender outra língua numa escola de periferia seria algo inalcançável.

Já a história, eu sabia que me daria a possibilidade de ler o mundo. Desde pequeno, eu gostava também de histórias de famílias. Nas atividades de construção de árvores genealógicas, percebi com angústia que as árvores de outras crianças pretas chegavam à raiz muito rapidamente, nunca passando da terceira geração, assim como a minha, que parava na minha avó materna. Já as dos meus colegas brancos, com auxílio dos pais e recorrendo a documentos bem guardados, chegavam até a quinta geração. Onde estava a minha história?

Certa vez, ao tratar do tema da escravidão numa turma de 40 alunos em que mais da metade eram crianças negras, a professora afirmou que os africanos e seus descendentes precisavam ter sido escravizados para terem tido acesso à civilização, a uma religião e a uma língua, para deixarem de ser preguiçosos. Ou seja, a minha história e a de tantas outras crianças negras iniciava-se e terminava na escravidão: naquele momento, fiquei de mal com a história.

Conforme fui crescendo, a razão para essa narrativa violenta e cristalizada, que faz parte de uma ideologia de apagamento de uma história de luta, resistência e superações, ganhava sentido para mim. Percebi a condição em que a maior parte da população negra se encontrava, pois as desigualdades sociais já eram muito evidentes e, muitas vezes, se confundiam com o viés racial.

Foi no período em que precisei entrar no mercado de trabalho como técnico em eletrônica e ajudar na renda familiar, que percebi que a minha realidade não mudaria, se eu não fizesse um curso de graduação. Ingressei no pré-vestibular para Negros e Carentes, movimento social em prol da educação, que tinha como meta preparar alunos negros e periféricos para ingressar em universidades de qualidade. Para além disso, o movimento nos tornava cidadãos conscientes de nosso lugar na sociedade e apresentava as nossas identidades negras e periféricas de forma positiva, como nenhuma escola em que passei havia sido capaz de fazer. Foi um professor desse cursinho, matemático e filósofo, que me fez retomar as pazes com a História e que me convenceu da importância de enxergá-la com outras lentes.

O PVNC foi a organização que mudou a minha vida e a de tantos outros jovens nos anos 2000. Além de voltar a ela para dar aulas nos núcleos, aos fins de semana, íamos espalhando cursinhos pela cidade do Rio de Janeiro e em seu entorno, pois nossa crença na educação se conectava com a mobilidade social. Por meio dela, poderíamos buscar resolver a atrofia dos músculos de nossos corredores.

Um ano após o meu ingresso na Universidade Federal do Rio de Janeiro, teve início um amplo debate sobre ações afirmativas nas universidades, com reserva de vagas para estudantes negros. Criavam-se, assim, políticas públicas que tinham como objetivo equilibrar desigualdades históricas que foram estabelecidas pelo passado escravocrata, pelos privilégios e pelo racismo estrutural. Teríamos uma onda de ampliação de direitos no país.

Passados quase vinte anos, assistimos um movimento de escolas básicas privadas que passaram a endossar a inclusão, ao reservar vagas para alunos negros. Vivenciar essa nova realidade me faz ver o quanto a diversidade é enriquecedora para o ambiente escolar. Aquela ideia que tinha quando menino, de poder conversar em outra língua com pessoas de outras partes do mundo, hoje tornou-se possível com alguns de meus alunos.

Mas percebo que a eficácia dessas ações antirracistas depende também de se alterar a postura dos docentes, e o próprio currículo, para que os jovens negros sejam acolhidos sem hostilidades e sejam verdadeiramente valorizados. Ou seja, a gestão e toda a comunidade escolar precisam estar sensibilizadas para o letramento racial. 

As soluções aos problemas do racismo vão além da denúncia por quem as sofre.  Elas incluem o engajamento e ação cotidiana de pessoas brancas que assumam para si posturas antirracistas. Indico aqui a leitura do Pequeno Manual Antirracista de Djamila Ribeiro, um bom início para quem não tem familiaridade com o tema.

Hoje, graças à luta incansável de Zumbi dos Palmares, Dandara, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Luís Gama, André Rebouças, Antonieta de Barros e Abdias do Nascimento, pessoas negras que dedicaram parte de suas vidas à equidade social, podemos começar a vislumbrar uma corrida em que os jovens negros das futuras gerações entrem em igualdade de condições com os demais. Mas ainda há muito a ser feito.  

*Fernando Shayer é cofundador e CEO da Cloe, plataforma de aprendizagem ativa e Leonardo Bento é professor da Camino School

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