Discussão sobre anterioridade aplicada ao imposto de renda ganhou a pauta nacional. Por sorte, o princípio não se aplica à redução de tributos, diz a advogada Maria Carolina Gontijo em artigo à EXAME (Buellon/Thinkstock)
Da Redação
Publicado em 20 de janeiro de 2023 às 06h32.
Por Maria Carolina Gontijo*
Em maio de 2019, eu tive vontade de “desabafar” nas redes. Ouvi uma bobagem sobre uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em matéria tributária e quis explicar, com gifs e em pequenos trechos de 140 caracteres, como aquela confusão funcionava e porque a Corte decidiu o que decidiu. Na época, debochei da minha própria vontade de explicar um assunto que, muito provavelmente, ninguém se importaria. Pelo menos era isso que eu pensava.
Passados quase quatro anos, eu continuo a me surpreender diariamente em como as pessoas realmente querem saber sobre esse assunto. Direito tributário é chato? Muito. Dá para ignorá-lo? Não dá. Nada melhor do que ter companhia para não passar raiva sozinha.
E entender um pouquinho de como funciona o Direito Tributário nunca foi tão útil em tempos de guerra de narrativas. E, olha, por essa nem eu esperava: todo mundo discutindo sobre anterioridade aplicada ao imposto de renda.
Nos últimos dias a indignação tomou conta de parte das redes sociais quando, finalmente, as pessoas parecem ter se dado conta da situação absurda envolvendo a tabela do imposto de renda. Sem atualização desde abril de 2015, acumulando uma defasagem de mais de 50% só entre este período e dezembro de 2022, o imposto de renda iria alcançar contribuintes que recebem pouco mais de 1,5 salário-mínimo. Uma tremenda injustiça.
Promessa de campanha de ambos os candidatos que chegaram ao 2º turno, a atualização da tabela parecia ser um consenso político – muito embora desde cedo tenhamos percebido não ser um consenso orçamentário. Após 15 dias de desculpas “deixa que eu deixo” ou “na volta a gente compra”, o partido do presidente resolveu divulgar essa semana uma “justificativa” para a não atualização: a anterioridade.
Depois do sucesso das fake news, vem aí, as mixed news: misture conceitos, confunda pessoas.
Em sua campanha, curiosamente chamada de “verdades sobre o imposto de renda” – que de verdade mesmo tem só a metade – o partido explica que é preciso respeitar a regra da anterioridade. Por esta regra, continuam, as alterações em tributos só podem entrar em vigor no ano seguinte à aprovação das medidas. Seria boa justificativa, se fosse verdade.
O princípio da anterioridade, que está na no art. 150, III, b da Constituição Federal, nada mais é do que uma garantia, um “sossego”, uma “previsibilidade” ao contribuinte de que determinados tributos não serão cobrados no mesmo exercício em que forem criados. Imagina que você tem todo um planejamento financeiro, seja para você mesmo ou para sua empresa. Aí, completamente de surpresa, criam um tributo ou dobram a alíquota do imposto de renda. Como isso afetaria a sua vida financeira? É para isso que existe o princípio da anterioridade. Segurança (ou pelo menos o mínimo que possamos ter dela).
Então por que a justificativa para a tabela do imposto de renda apresentada não é verdadeira?
Porque este princípio não se aplica para a redução de tributos. Na prática, ao atualizar a tabela do imposto de renda, teremos uma redução do imposto, uma vez que o limite de isenção seria ampliado e, por consequência, mais pessoas deixariam de pagar o imposto ou pagariam alíquotas menores. E antes que ressuscitem outra fake news, a de que seria necessário um projeto de lei para atualização da tabela, a última vez que isso aconteceu, durante o governo da ex-presidente Dilma, o instrumento utilizado foi uma medida provisória.
Outro elemento que tem sido bastante ventilado durante as discussões é justamente a aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal. Fato é que a interpretação de que esta atualização representa uma renúncia fiscal não é unânime, uma vez que se trata de isenção de caráter geral, ou seja, para todos, indistintamente. Neste caso, ou seja, concessão ampla e geral, a própria lei considera uma exceção ao conceito de renúncias fiscais.
É claro que não podemos ou devemos ignorar os impactos relacionados à diminuição de receita que a atualização da tabela acarretaria. E sabemos também que existem discussões relacionadas à criação de novas faixas ou cobrança do imposto de renda sobre dividendos – estas sim, sujeitas à anterioridade. Mas não é correto utilizar de notícias enviesadas para confundir as pessoas a ponto de manipulá-las a acreditar que estão diante de uma vedação legal quando não é o caso.
Em resumo: não há nenhum princípio de anterioridade que proíba a correção da tabela do imposto de renda para aplicação imediata em 2023. Novas faixas e novos fatos geradores? Estes sim, se aprovados em 2023, deverão esperar 2024. Simples. Claro.
Para quem já sofreu tanto com fake news, que a gente se liberte também das mixed news.
*Maria Carolina Gontijo é advogada, diretora de tributos da Moore Brasil, professora e palestrante. Para não passar raiva sozinha, explica direito tributário nas redes sociais pelo perfil @duquesadetax no Twitter, no Instagram e no TikTok