Secretaria afasta PMs envolvidos na morte de morador de rua em SP
De acordo com testemunhas, o morador de rua identificado apenas como Ricardo pedia comida em uma pizzaria quando a polícia foi acionada
Estadão Conteúdo
Publicado em 13 de julho de 2017 às 21h59.
São Paulo - A Secretaria da Segurança Pública afastou cinco policiais que atenderam a ocorrência que terminou na morte do morador de rua Ricardo Silva Nascimento, de 39 anos, na noite de quarta-feira, 12, em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo . O ouvidor das polícias do Estado, Júlio César Fernandes Neves, criticou o comportamento dos policiais no caso dizendo que os agentes agiram com "objetivos escusos" ao alterar a cena da morte e "afrontaram escancaradamente" o protocolo.
Em nota, a secretaria disse que tanto os dois policiais do 23º Batalhão que se envolveram diretamente na ocorrência como os três PMs da guarnição da Força Tática que prestaram apoio "foram recolhidos ao serviço administrativo, sendo afastados do trabalho nas ruas".
O batalhão instaurou inquérito policial militar "para investigar todas as circunstâncias do fato, acompanhado pela Corregedoria", e o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) também investiga o caso. A polícia deve analisar imagens de câmeras de segurança na região para entender como a morte aconteceu.
O sepultamento de Ricardo deve ocorrer na tarde desta sexta-feira, 14, no Cemitério Dom Bosco, na zona norte.
O ouvidor se referiu à resolução de 5 de janeiro de 2013 da Secretaria da Segurança Pública, que estabelece parâmetros aos policiais que atendam ocorrências como lesões corporais graves e homicídios, para avaliar o procedimento da ocorrência de quarta. Em seu artigo 1º, a resolução fala que os policiais que primeiro atenderem a ocorrência deverão "acionar imediatamente a equipe de resgate, Samu ou serviço local para pronto e imediato socorro".
"Teria que ter acionado a equipe de resgate do Samu, o que não foi feito, resultando numa afronta visível e testemunhada por mais de cem pessoas que assistiam ao ocorrido. Isso deixa indícios claros que eles queriam descaracterizar a cena do crime", disse. "Fica claro que não queria que a perícia ocorresse de forma fidedigna à realidade dos acontecimentos", completou.
Equipes da Polícia Científica e do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) estiveram no local cerca de duas horas após os disparos realizados pelo policial militar e saíram cerca de 20 minutos depois. "Não é culpa desses policiais, já que não tinha muito mais o que fazer lá depois que a cena foi alterada com objetivos escusos", acrescentou o ouvidor.
De acordo com testemunhas ouvidas pela reportagem na quarta-feira, o morador de rua identificado apenas como Ricardo pedia comida em uma pizzaria quando a polícia foi acionada.
A vítima, com um pedaço de madeira, e um policial discutiram até o momento em que o objeto foi empunhado pelo morador de rua, que recebeu ao menos dois tiros na sequência. Respirando, o corpo permaneceu imóvel no cruzamento da Mourato Coelho com a Navarro Andrade até ser colocado na parte de trás da viatura, que o levou ao Hospital das Clínicas.
O Hospital informou à reportagem que a morte de Ricardo foi declarada às 18h30 após cinco minutos de procedimentos médicos que não obtiveram sucesso. "O Estado têm de dar uma resposta imediata. É isso que estamos cobrando diante da situação visível e flagrante. Sem dúvida, a ação foi totalmente desproporcional, ilegal e resultou numa tristeza enorme para habitantes da região que conheciam Ricardo", disse o ouvidor.
Protesto
Nesta quinta-feira, dezenas de moradores da região e colegas que trabalhavam com Ricardo no serviço de catador de material reciclável realizaram uma manifestação na Rua Mourato Coelho. Os manifestantes reclamaram da truculência da ação policial e pediram justiça para o caso. A rua ficou fechada por cerca de duas horas e o ato seguiu pela Rua Teodoro Sampaio, interrompendo o trânsito no local.
O ato foi marcado pela consternação dos que conheciam o morador de rua. Segundo amigos da vítima, ele vivia em situação de rua há quase 20 anos, sem episódios de violência e sempre recolhendo material pelas ruas de Pinheiros, trabalho com o qual recebia de R$ 40 a R$ 100 por dia. A carroça que Ricardo usava no serviço serviu como parte da homenagem, recebendo flores, velas e fotos do morador.
Cartazes cobravam investigação rigorosa do caso, criticavam a PM e enalteciam a personalidade da vítima. "Todo mundo o conhecia por aqui, sabemos que ele não causava problema. Foi desumano o que fizeram com ele", disse o morador de rua Givanildo Marinho da Silva, de 52 anos.
Fabiano da Silva Soares, de 25 anos, que trabalha com coleta de material reciclável, exaltou a energia de Ricardo de, com três carroças, trabalhar todos os dias do amanhecer ao anoitecer. "Era 'brother' nosso que estava aqui há 20 anos fazendo o serviço dele. Será que um pedaço de pizza vale uma vida?", questionou, enquanto empunhava um megafone usado para entoar as palavras de ordem por justiça no caso.
Sônia Regina Pias, que trabalha próximo ao local da morte, disse ter ficado "revoltada" com a atuação policial. "O que assisti foi a uma cena de assassinato. Foi uma ação completamente maluca contra um homem que tinha um pequeno pedaço de pau", disse.
O padre Júlio Lancellotti, da Pastoral Povo da Rua, integrou o protesto. "Viemos aqui demonstrar nosso repúdio a esse assassinato, a essa execução, deixando claro o pico de violência policial. Manifestamos a nossa solidariedade", disse.